Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Título original Por Trás das Chamas. Mortos e desaparecidos políticos – 60 anos do golpe de 1964. Da casa da morte aos fornos da Cambahyba: práticas nazistas da ditadura – e outros relatos sobre Memória, Verdade e Justiça. Nilmário Miranda, Carlos Tibúrcio e Pedro Tierra (Hamilton Pereira). São Paulo: Expressão Popular, 2024, 192 p.
O título e sub-títulos da capa dessa edição comemorativa (comemorativa não no sentido de celebração, mas no de memória), de 60 anos do golpe de 1964, são um libelo. Não por outra razão, suas expressões finais são Memória, Verdade e Justiça.
Um livro “de intervenção política e pedagógica”, explicam seus autores, o ex-ministro dos Direitos Humanos e atual chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Nilmário Miranda; o jornalista Carlos Tibúrcio, ex-Coordenador da Equipe de Discursos dos Presidentes da República, Lula e Dilma; e o poeta Pedro Tierra (Hamilton Pereira), ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo e autor de vários livros. Por trás das chamas apresenta nove histórias sobre a luta contra a ditadura militar, entre elas, um relato contundente das práticas efetivamente nazistas dos agentes da repressão que, além das torturas e assassinatos cometidos na Casa da Morte em Petrópolis, esquartejavam os corpos dos militantes para incinerá-los na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes.
O livro também recupera nos Anexos essa farta bibliografia, filmografia, peças de teatro, gráficos estatísticos e homenageia os advogados que enfrentaram a ditadura, incluindo as recomendações ao Estado brasileiro feitas pela Comissão Nacional da Verdade. Da pesquisa para o livro, segue uma listagem de 150 biografias e autobiografias dos nossos heroicos combatentes. Uma pequena homenagem aos que protagonizaram a luta pela liberdade de que hoje usufruímos.
Ainda da apresentação, os organizadores realçam que o livro vem a propósito de 2024 e a marca de 60 anos do golpe de 1964, que gerou uma ditadura civil-militar de 25 anos.
Para os organizadores, “o regime de exceção acabou formalmente em 1985” e “lá se vão 39 anos, tempo suficiente para que o povo brasileiro já tivesse feito um pleno e total acerto de contas com os responsáveis pela violação da democracia em nosso país e por crimes bárbaros contra a humanidade, imprescritíveis, e até hoje impunes”.
De minha parte, penso que uma das formas de inibir recrudescências autoritárias, de atentados à democracia e de afronta ao estado de direito é o antídoto da memória e da verdade, da responsabilização, da reparação e da justiça.
De fato, me referi a esse entendimento, em texto para marcar os 60 anos do golpe – https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/ em minha coluna O Direito Achado na Rua, publicada no Jornal Brasil Popular. Efetivamente, não recuperamos a nossa subjetividade política de autores de nossa própria história, sem que as lições da justiça de transição promovam o nosso aprendizado democrático.
No artigo lembrei os quatro pilares da Justiça de Transição: direito à memória e à verdade; reparação; responsabilização penal; e reforma das instituições democráticas e de segurança. À luz desses elementos, o que não se pode perder de vista é que a Justiça Transicional admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente não só processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre os delitos, conceder reparações, materiais e simbólicas às vítimas, mas também reformar e ressignificar as instituições responsáveis pelos abusos e educar para a democracia, a cidadania, os direitos humanos e para a não repetição desses atentados.
Além disso, cuidei desses fundamentos ao co-organizar o livro O direito achado na rua: introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina, que pode ser conferido em https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf. E não posso deixar de considerá-los em face da grande mobilização, tanto de ativistas quanto de personalidades, no transcurso dos dramáticos acontecimentos que atentaram contra a Constituição, as instituições e a democracia brasileiras.
Numa virulência — que me permite resgatar o que anotei em artigo para o livro Democracia: da crise à ruptura. Jogos de armar: reflexões para a ação —, sugerindo o passo em que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Um passo descrito no golpe de Luiz Bonaparte (ironicamente chamado por Marx de o 18 Brumário de Luiz Bonaparte), escancarando situações em que a própria legalidade se torna um estorvo e põe em prática políticas reacionárias e antidemocráticas.
Estou seguro de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional. E isso significa estar atento às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis.
Especificamente sobre o monitoramento que exercita em relação ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu último relatório (2021), ofereceu recomendações sobre ações que tendem a fragilizar e até extinguir esse sistema, como o enfraquecimento dos espaços de participação democrática, indicando, entre as recomendações, a necessidade de “investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os autores de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes inaplicáveis a crimes contra a humanidade”.
Por isso lembramos eu e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade), que é necessário “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade”.
Por trás das chamas, é um modo de acicatar a nossa consciência de sociedade civil para ativar a ação política que nos convoque a pensar e agir ao aprendizado de que se tivesse sido feita a justiça para os fautores de 1964, 2023/2024 não teriam acontecido. Reivindicar a verdade e resgatar a memória, como referências éticas contribui para estancar a mentira na política. Referi-me à grande pensadora Hannah Arendt exatamente para reter, sobre esse tema (cf. meu Memória e Verdade como Direitos Humanos in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 99-100) a sua advertência de que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”.
Aliás, remetendo ao meu texto da Coluna O Direito Achado na Rua, digo poeticamente, com Milan Kundera, para o homenagear, há um ano de seu falecimento (11/07/23): “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história” (O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978).
Por trás das chamas, começa, indicam os Organizadores, “com um relato dramático e revelador sobre práticas verdadeiramente nazistas de agentes da repressão tanto na Casa da Morte, em Petrópolis, como na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, ambos no município do Rio de Janeiro. Além de prender arbitrariamente, sequestrar, torturar e assassinar cidadãs e cidadãos brasileiros, a grande maioria jovens, que se insurgiam contra o regime ditatorial, mutilavam e incineravam seus corpos nos fornos da usina”.
Da Casa da Morte aos fornos da Cambahyba: práticas nazistas da ditadura é o primeiro capítulo do livro. Seguem-se: Os anjos morrem jovens. Relâmpago Molipo/ALN; A saga do Capitão da Guerrilha: contraofensiva, impasse e massacre – VPR-VAR-MR8; ‘Só queria agasalhar o meu anjo… MR8 Stuart e Zuzu Angel; Ações, resistências e mortes. PCBR, MRT, AP e Polop-POC; Guerrilha do Araguaia: PCdoB epopeia sem fim; Chacina da Lapa. Comitê Central do PCdoB; Geração de profetas: igreja entre a ditadura e os pobres; A asa do condor: rede de repressão na América do Sul. Vem depois os Anexos, Romances e poesias, HQ e fotografia, Peças de teatro, Filmografia e biobibliografia dos autores.
O livro abona a importância de uma iniciativa, à frente da qual estão os Autores, de promover a desapropriação da Casa da Morte e da Usina Cambahyba para tombá-las como sítios de memória. A pedido de Hamilton cheguei a esboçar um parecer para calçar os fundamentos de nota técnica com esse objetivo. Dei ao parecer o título Casa da Morte: Desapropriação para Marca de Memória e Resgate da Verdade.
Reproduzo os seus termos:
Esta Nota Técnica remete à proposição de diretriz política visando à “desapropriação do imóvel residencial conhecido como Casa da Morte, localizada no município de Petrópolis, no Rio de Janeiro, em razão dos acontecimentos políticos ali ocorridos nos anos 1970 durante a ditadura militar”, apoiando-se “em argumentos aglutinados em duas camadas: a primeira condizente com a relevância histórica que motiva o pedido de desapropriação e a segunda, de ordem prática, que orienta as possibilidades que podem ser acionadas para a adoção de medidas que viabilizem o pleito”.
A proposição se fundamenta em duplo pressuposto. De um lado, com documentação consistente procedente de fontes seguras, indica “a relevância do local”, para o que agrega “o reconhecimento público em muitos níveis também é reforçado pela posição contundente” de apoiadores da causa, incluindo a manifestação de parlamentares; o “reconhecimento público em nível nacional, estadual e municipal/local em relação ao histórico da Casa”, firmados por organizações e institucionalidades credíveis. De outro lado, fortes comprovações, lastreadas em depoimentos e sindicâncias “que atribuem lastro ao funcionamento clandestino e repressivo da Casa da Morte”.
Ainda no que “diz respeito sobre a relevância da Casa da Morte como espaço a obter reconhecimento oficial de Estado”, ressaltam-se entre os pontos que reiteram a base orientadora deste processo, “os entendimentos defendidos no âmbito da Comissão Nacional da Verdade, sobretudo a partir de seu Relatório Final de 2014: 111. A Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), foi um dos principais centros clandestinos utilizados pelo regime militar para a prática de graves violações de direitos humanos: detenção ilegal e arbitrária, tortura, execução e desaparecimento forçado (BRASIL. CNV, 2014, p. 532)”.
Sob essa perspectiva, aliás, destaca a proposição: “O Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, expediu uma série de recomendações que deveriam ser tomadas pelos três poderes que constituem o Estado brasileiro como um roteiro para o fortalecimento da democracia, rompimento com o passado de violações e como medidas de não-repetição. Nesse ínterim, é a recomendação de número 28, que estipula a preservação da memória de graves violações de direitos humanos, que abrange o que diz respeito a possíveis espaços de memória ao estabelecer que: Devem ser adotadas medidas para preservação da memória das graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV e, principalmente, da memória de todas as pessoas que foram vítimas dessas violações. Essas medidas devem ter por objetivo, entre outros: a) preservar, restaurar e promover o tombamento ou a criação de marcas de memória em imóveis urbanos ou rurais onde ocorreram graves violações de direitos humanos (BRASIL. CNV, 2014, p. 974)”.
Acresça-se, tendo por referência o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 10 de dezembro de 2014 (http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/), que a facticidade caracterizada relativamente à Casa da Morte, circunscreve-se ao fundamento, também posto nas conclusões do Relatório (28), de exigência de “preservação da memória das graves violações de direitos humanos”, devendo (48) “ser adotadas medidas para preservação da memória das graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV e, principalmente, da memória de todas as pessoas que foram vítimas dessas violações”.
Essas medidas – recortam as conclusões – devem ter por objetivo, entre outros:
- a) preservar, restaurar e promover o tombamento ou a criação de marcas de memória em imóveis urbanos ou rurais onde ocorreram graves violações de direitos humanos;
- b) instituir e instalar, em Brasília, um Museu da Memória.
No mesmo sentido, recomendação 49: “Com a mesma finalidade de preservação da memória, a CNV propõe a revogação de medidas que, durante o período da ditadura militar, objetivaram homenagear autores das graves violações de direitos humanos. Entre outras, devem ser adotadas medidas visando:
- a) cassar as honrarias que tenham sido concedidas a agentes públicos ou particulares associados a esse quadro de graves violações, como ocorreu com muitos dos agraciados com a Medalha do Pacificador;
- b) promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas de qualquer natureza, sejam federais, estaduais ou municipais, que se refiram a agentes públicos ou a particulares que notoriamente tenham tido comprometimento com a prática de graves violações.
Esses são fundamentos que se inscrevem nos enunciados cogentes que formam os conceitos designativos da justiça de transição, forjados nos pressupostos éticos de memória e verdade, necessários a constituir, o que já denominei “hiato de credibilidade para fazer possível a verdade na política, como base de confiança entre governo e cidadãos” (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Memória e Verdade: os Mortos do Araguaia. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 31-32); e, nesse passo, “completar a transição, abrindo-se à experiência plena da democracia, da justiça e da paz” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Memória e Verdade como Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Op. cit., p. 99-100).
Nos elementos constitutivos desses fundamentos, referidos à justiça de transição, remeto aos estudos desenvolvidos em profundidade na obra Sousa Junior, José Geraldo de. O direito achado na rua : introdução crítica à justiça de transição na América Latina / José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015. – (O direito achado na rua, v. 7).
Nesse aspecto um relevo para meu texto, em co-autoria com Nair Heloisa Bicalho de Sousa: Justiça de Transição: Direito à memória e à verdade (p. 23-31):
Trinta e cinco anos depois da edição da lei que estabeleceu a anistia no País, seguindo o que também ocorria em outros países do chamado Cone Sul que vivenciaram a exacerbação repressora em um mesmo período, avoluma-se o movimento muito consistente para rever o vício da autoanista inscrito no modelo comum da conjuntura de violência institucional que liberou o ciclo de violência política.
Essa disposição não tem a intenção de reduzir o alcance próprio das leis de anistia, cujo significado político é, historicamente, reconhecido e bem definido em um horizonte de reconciliação nacional, mediante o fundamento de revelação da verdade, mas de expurgar – na melhor direção do princípio de inviolabilidade das normas impimperativas do Direito Internacional dos Direitos Humanos (jus cogens) – elementos que lhe são incompatíveis, entre eles os que expressam razoavelmente a condição de crimes contra a humanidade.
Contudo, arquivos da repressão ainda permanecem restritos à sociedade civil, em parte por se manterem deliberadamente ocultados e em parte por apresentarem objeção sonegadora de agentes ainda resistentes e insubordinados ao comando legal e das autoridades constituídas. Isso retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (POLLACK , Michael. Memó ria, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Ja neiro, v. 2, n. 3, 19 8 9), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade.
Do que se extrai que a democratização da memória permite a uma sociedade apropriar- se de seu p assado para escolher melhor os passos a serem dados no presente. Povo sem memória torna-se incapaz de julgar seus governantes e perde força para construir uma sociedade pautada nos interesses da maioria. Daí, a importância de garantir que a memória coletiva de nosso País possa conter todos os fatos políticos essenciais, de modo a possibilitar uma interpretação histórica pautada nas memórias subterrâneas dos dominados que se opõe à versão oficial das classes dominantes.
Resolução da OEA de 2006 reconhece a importância do direito à verdade para pôr fim à impunidade e para proteger os direitos humanos. A resolução traduz a ideia de que são necessários não só dar resposta às expectativas de familiares de pessoas torturadas e mortas nos anos da ditadura (sem que, em muitos casos, sequer os corpos tenham sido localizados), mas também poder recuperar arquivos ainda em mãos de órgãos de segurança e de repressão de modo a elucidar casos de desaparecimentos e a identificar situações e agentes que tenham dado causa a violações.
Recupero, nesse sentido, do livro em referência (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O direito achado na rua : introdução crítica à justiça de transição na América Latina / José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015. – (O direito achado na rua, v. 7), o artigo Rede Latino-Americana de Justiça Transicional: Objetivos e Perspectivas para a Promoção da Justiça de Transição na América Latina (p. 264-269). Este artigo traz a autoria de Carol Proner (Professora de Direito Internacional da UFRJ; Doutora em Direito Internacional pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha (2005); Codiretora do Programa Máster Oficial da União Europeia, Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo – Universidade Pablo de Olavide/Universidad Internacional da Andaluzia, Espanha; Conselheira da Comissão Nacional da Anistia – Brasil; Membro do Tribunal Internacional para Justiça Restaurativa de El Salvador; Membro da Secretaria Executiva da Rede Latino-Americana de Justiça Transicional).
Se se puder resumir esse texto, ele alude ao empenho da “Rede Latino-Americana de Justiça Transicional (RLAJT), concebida como espaço capaz de reunir, de retroalimentar e de permitir o apoio mútuo das instâncias e de projetos regionais involucrados na prática ativa de Justiça de Transição. A RLAJT tem como objetivos principais facilitar e promover a comunicação e a troca de conhecimentos no campo da Justiça de Transição na América Latina”.
Tomando em causa o que recorta a autora (Carol Proner) no texto, “as experiências latino-americanas no tema da Justiça transicional costumam ser estudadas por especialistas pela frequência e pela qualidade em matéria de julgamentos por violações contra os direitos humanos e pelo expressivo desenvolvimento jurisprudencial e teórico nacional e supranacional”.
O fundamental é abrir-se, não só aos estudos, mas às ações políticas concretas que trazem “consequências nos campos cultural e político e gerando reação de disputa social pela busca da realização dos direitos da transição: direito à memória e à verdade, direito à reparação e direito à justiça”. Do que se trata, é propor e realizar “alternativas de superação criativas e adaptadas aos processos de (re)democratização em andamento, alternativas que avançam e retrocedem de acordo com as disputas que se impõem em cada sociedade”.
Esse o alcance da proposição em curso, sem objeções do proprietário ou da edilidade, sobre poder ultimar a desapropriação, mobilizados os recursos financeiros que atendam as exigências constitucionais e legais para que a afetação da propriedade se complete, em face da função e política de sua nova utilidade social, “frente ao fato, o caminho que se apresenta possível guarda relação com a possível destinação do imóvel para gestão e administração”, conforme a finalidade que o ato venha a atribuir, nos termos da proposição.
O livro, não obstante a crueza de seu conteúdo, oferece uma narrativa até literária, bem representativa do estilo e modo de mergulhar no real de seus autores. Lembrei muito, referindo-me nesse aspecto a Pedro Tierra, conforme uma de suas obras que resenhei aqui no Estado de Direito, Coluna Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/pesadelo-narrativas-dos-anos-de-chumbo/ – Pesadelo. Narrativas dos Anos de Chumbo. Pedro Tierra. São Paulo: Autonomia Literária: Fundação Perseu Abramo, 2019
Conheço Nilmário Miranda, desde seu percurso militante na causa dos direitos humanos e, mais proximamente, ao tempo em que ministro dos Direitos Humanos, quando participei convocado ad hoc de grupos de trabalho para a cumprir agenda programática do órgão; e conheço bem o poeta e escritor Pedro Tierra de Poemas do Povo da Noite, Menção Honrosa no Prêmio Casa de las Américas, em 1977, da Missa da terra sem-males, em parceria com Dom Pedro Casaldáliga e Marin Coplas e da Missa dos Quilombos, também com Dom Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento, tantas vezes recitados, cantados e encenados em saraus de resistência, além de outros escritos e poemas. Com o político Hamilton Pereira, compartilhei projetos quando ele era Secretário de Cultura no Distrito Federal e eu Reitor da UnB, bastando lembrar a realização do FLAAC 2012, Festival Latino-Americano e Africano de Arte e Cultura, para marcar o jubileu da universidade. Então procuramos dar concretude ao que Hamilton chamou de Sonho de Vanguarda, para designar nessa realização, o que ele compreendeu: A UnB viveu, irmanada com a cidade, todos os momentos decisivos da construção do país nos últimos 50 anos: do sonho e da epopeia da construção e da vanguarda do desenvolvimento, no início dos anos 60, à noite sombria da repressão e do arbítrio, entre 1964 e 1984. Da luta pela reconquista da democracia, ao enfrentamento dos novos desafios de um país que se afirma como nação perante seu povo e no cenário internacional” (Revista FLAAC2012, Brasília, UnB/Decanato de extensão, 2012, p. 2). Sobre ambos, confiram no livro o registro notícia de vida de Pedro Tierra (e de Hamilton Pereira da Silva).
Pesadelo, conforme o próprio Autor indica, é ficção, mas olhando com atenção, percebe-se que o imaginário é um álibi para mergulhar com obstinação numa realidade dramática que só assim logra vir à tona. Como na obra de Arthur Koestler que se disfarça de literatura mas que revela um processo terrível que vai do zero ao infinito, dilacerando um caleidoscópio de memórias que embalam o que o autor viveu e que não pode deixar de contar, ou ao menos do modo como, se não viveu propriamente, é como lembra para contar (Garcia Marquez, Viver para Contar: “A vida não é o que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”). No romance de Koestler (Darkness at noon, publicado em português com o título O Zero e o Infinito), o dramático é que o personagem central construído com os traços de um perfil real, é implicado de tal modo num interrogatório, no qual enquanto todos os seus camaradas confessam-se arrependidos, uns por força de tortura física, outros sem entender as acusações, já que fariam tudo o que a Autoridade lhes ordenasse, ele um revolucionário sincero é convencido a concordar com sua culpa, numa atitude sem alternativa ditada por suas próprias e fidedignas convicções.
O livro se compõe de narrativas, exaltadas nas cores e nos traços de ilustrações de Elifas Andreato. Fulgurantes nos anos de chumbo, prosseguem na conjutura, como testemunhos de tempos bárbaros, o mandato social que Pedro Tierra assume, como literatura de resistência, cumprindo, assim, um chamado para dizer por meio da ficção a verdade que não se comporta inteiramente no oficialismo de documentos e que com a imaginação fecundada por memórias, permite iluminar as zonas de sombras que ainda predominam sobre acontecimentos dramáticos.
Pode ser que tenha passado pela Casa da Morte e tido seu corpo dissolvido nas chamas dos Fornos de Cambahyba, o estudante da UnB e ex-Prsidente da UNE Honestino Guimarães. Por isso foi muito simbólico o ato do Conselho Universitário da Universidade de Brasília, de revogar o desligamento e de outorgar post mortem, diploma de geólogo ao grande líder estudantil – https://noticias.unb.br/institucional/7379-unb-concede-diploma-de-geologo-a-honestino-guimaraes:
Sob aplausos que duraram mais de um minuto, o Conselho Universitário (Consuni) da Universidade de Brasília anulou a decisão que desligou Honestino Guimarães da UnB e aprovou, por aclamação, a concessão do diploma post mortem ao geólogo. A decisão foi tomada nesta sexta-feira (7), no Auditório da Reitoria. Honestino Guimarães é um dos nomes mais importantes do Brasil na luta contra a ditadura militar e na defesa da democracia, dos direitos estudantis e da autonomia universitária. Ele foi expulso da Universidade de Brasília em 1968, antes de concluir a graduação, e desaparecido pelo regime autoritário em 1973.
A reunião, que lotou o Auditório da Reitoria, foi marcada pela emoção. Este é o primeiro registro de diplomação post mortem da UnB. “A Universidade de Brasília sofreu muito com a ditadura militar, quando quase foi fechada. E, depois, em um momento muito difícil, nós perdemos estudantes, perdemos professores e perdemos Honestino Guimarães, estudante de Geologia. Temos esse compromisso histórico com a verdade. Isso representa não só a reparação ao Honestino, mas a tudo que ele representa. Eu, como geóloga formada pela Universidade de Brasília, tenho esse compromisso com meus colegas e com Honestino, que, tenho certeza, seria um excelente geólogo”, destacou a reitora Márcia Abrahão.
Decano de Ensino de Graduação, Diêgo Madureira leu seu parecer favorável à anulação da decisão de desligamento de Honestino Guimarães da UnB e à concessão do diploma post mortem ao geólogo. Foto: Beto Monteiro/Ascom GRE
“O simbolismo desse ato transcende esses aspectos mais diretamente relacionados ao próprio Honestino para compor uma inequívoca mensagem da instituição a toda a sociedade, deixando explícito o compromisso da UnB com a justiça, a democracia e a história, a despeito daqueles que insistem em contestar os fatos de inúmeras formas testemunhados de um período sombrio no nosso país, um negacionismo que precisa ser combatido com todas as forças, sobretudo em respeito a cada vítima, direta ou indireta, da ditadura, a cada mãe que sofre a perda prematura de um filho ou a eterna angústia de seu desaparecimento, a cada pessoa torturada por insistir em fazer valer seu direito de ser livre para discordar, a cada instituição também ferida pelo autoritarismo e a cada ser humano que condena a barbárie”, disse o decano de Ensino de Graduação, Diêgo Madureira, durante a leitura do parecer que recomendou a aprovação da proposta. O parecer foi aplaudido de pé por todos os presentes, que entoavam as palavras de ordem: “Honestino presente!”
O vice-reitor Enrique Huelva avaliou que a memória de Honestino Guimarães impacta até hoje a atuação da Universidade de Brasília. “Ficou muito claro que o que nos inspira há décadas é um estudante. A gente não tem como mudar aquilo que foi, mas podemos trazer para o presente, repará-lo, dignificar a nós e a Universidade e construir um futuro em que esses elementos da história não se repitam nunca mais”, comentou.
Reitor da UnB entre 2009-2012, José Geraldo de Sousa Junior salientou a resistência política da UnB desde sua fundação e principalmente durante o regime de repressão. “A ditadura militar sempre escolhe um alvo preferencial, que é o pensamento crítico, e trabalha com métodos como a censura, a tortura e a morte. Ainda não superamos o negacionismo, que insidiosamente se instalou como uma postura antidemocrática, antipovo, anticiência. Um ato como esse reforça a nossa responsabilidade com a verdade estabelecida no livre intercâmbio das ideias”, analisou. Foi na gestão de José Geraldo que houve a criação da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.
O livro – Por trás das chamas; e a reparação à memória de Honestino, representam marcas de memória, a possibilidade de repor na política um hiato de credibilidade como designava Hannah Arendt. Teria sido possível apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas o que nele se configurou como perigo?
Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter”.
A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.
Valter Campanato | José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |