Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
José Leonardo Cavalcanti Magalhães. ARQUITETURA DO CONTROLE DE ARMAS NO BRASIL. Um estudo criminológico sobre a atuação do Exército e da Polícia Federal no mercado da morte. Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, na área de concentração “Direito, Estado e Constituição”, linha de pesquisa “Criminologia, Estudos Étnicos-raciais e de Gênero”. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2024, 125 fls.
A Dissertação foi apresentada e defendida perante a Banca Examinadora formada pela Professora Cristina Zackseski (Presidente/Orientadora – UnB) e pelos professores Daniel Ricardo de Castro Cerqueira (Primeiro Membro – IPEA), Gabriel Ignacio Anitua (Segundo Membro – Universidade de Buenos Aires) e por mim, terceiro membro, da UnB.
Do que ela trata, conforme o título, é o que está no resumo elaborado pelo Autor:
Esta dissertação aborda o controle de armas no Brasil, com base nas regras estabelecidas e nas autoridades investigadas de poder, como o Exército e a Polícia Federal. As duas instituições têm a cultura do segredo em comum, que compromete a transparência e a prestação de contas à sociedade. Sob a ótica da criminologia crítica, exploramos brechas da fiscalização, que levam à cooptação estatal e, em última instância, à corrupção. Avaliamos atores envolvidos nos processos decisórios, tanto do setor público quanto do privado. Destacamos a influência política sobre essas agências militares e policiais, que, historicamente, regulam aspectos importantes da vida social, especialmente em períodos autoritários da história brasileira. A pesquisa identificou fragilidades na fiscalização de armas das duas corporações, de maneira mais contundente no caso dos militares, mas não menos importante entre os policiais federais, dada a facilidade de captura por integrantes do próprio governo central e dos lobistas de empresas.
E logo desdobrado no Sumário, destacando-se, além da Introdução, dezessete capítulos, mais as conclusões e as referências bibliográficas. Os capítulos: (I) O modelo do atoleiro e a distribuição das armas; (II) A tropa paramilitar dos CACs e os portes da Polícia Federal; (III) A espiral do segredo e a confiança nas corporações; (IV) Assimetrias, discricionariedades e os registros para criminosos; (V) Atos por decretos e portarias e a lógica do confronto militar; (VI) O triângulo de ferro e os lobistas treinados pelo Estado; (VII) O perfil de armas e os crimes associados; (VIII) A dificuldade do governo Lula em recomprar as armas; (IX) Os brinquedos de guerra e a burocracia envolvente; (X) Os clubes de tiros e as pistas sobre quem se armou; (XI) Os senhores da morte e o rompimento com a política; (XII) A calibragem dos discursos, a defesa pessoal e a “liberdade”; (XIII) O esteio para as forças de segurança e o baixo orçamento; (XIV) Os evangélicos e a dificuldade eleitoral com as mulheres; (XV) O rastilho dos discursos de ódio e a armadilha eleitoral; (XVI) Weaponization, o celular como arma e a auto-incriminação; (XVII) O impacto das armas nas 24.274 postagens nas redes sociais.
Muito atual e relevante o tema, conduzido por meio de uma narrativa fluida, não fosse o Autor um veterano e qualificado jornalista, mas agora, adensada pelas aquisições epistemológicas aferidas no curso de mestrado, a partir do enquadramento da Criminologia Crítica. Com efeito, já na Introdução ele localiza seu estudo – este trabalho é referenciado em autores da criminologia e em estudos interdisciplinares – com a convicção de que a adesão ao campo, não se deixa enredar em limites que nele possa se dar: “Os dados aqui apresentados representam uma tentativa de preencher parte de lacuna nos campos da sociologia e da criminologia, principalmente no debate sobre o poder do controle e na apresentação de informações sobre armas liberadas e a correlação entre mercado – incluindo o lobby desenvolvido nas esferas de poder – e mortes ocasionadas por tal política. A brecha no marco dos estudos desta ciência no Brasil veiculada ao direito dá a falsa sensação de que não existe um problema. ‘Se não pergunto por algo, é porque creio que funciona bem’”. A ressalva é creditada a um dos autores de referência do estudo e do próprio campo: Eugênio Zaffaroni.
Muito recentemente, com colegas que formamos o Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – Padre Thierry Linard, oferecemos aos bispos reunidos em seu Conselho Permanente (março de 2024), um documento para reflexão “Desafios à Paz num País com Múltiplas Formas de Violências” (Dom Francisco Lima Soares apresentou a reflexão “Desafios à paz num país com múltiplas formas de violência”. https://www.cnbbne5.org/post/dom-francisco-lima-soares-apresenta-an%C3%A1lise-de-conjuntura-no-primeiro-dia-do-conselho-permanente-em, onde se pode ler a íntegra do documento).
Fizemos constar da Análise, com preocupação equivalente a do Autor, a resultante de “vários estudos, nacionais e internacionais, comprovam a relação entre armamento da população e aumento dos homicídios e formas de violência, como os feminicídios”. Entre os registros, “Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, permitiu avaliar o impacto da legislação armamentista durante o governo Bolsonaro e o aumento nos índices de homicídio do país. A investigação constatou que 6.379 vidas poderiam ter sido poupadas entre 2019 e 2021, quando o governo federal publicou dezenas de decretos que levaram ao afrouxamento das regras para obtenção do porte e da posse de armas entre a população civil. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, o número de vidas perdidas equivale a todos os homicídios da Região Norte em 2021.17”, acrescentando que “Desde 2019, foram publicados mais de 40 atos normativos e decretos para fragilizar os mecanismos estabelecidos pelo Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/03). Essas ações resultaram no crescimento de 476,6% nos registros ativos de caçadores, atiradores e colecionadores entre 2018, quando os decretos ainda não haviam sido publicados, e 2022, último período de coleta dos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A política armamentista criou estoques particulares de armas que somam 4,4 milhões de unidades, número que supera o arsenal das forças de segurança”.
Contribui para inserir no documento de Análise de Conjuntura oferecido a CNBB essa atualização sobre o tema, valendo-me de consideração que lancei mais ou menos na mesa ocasião, em artigo de opinião para minha Coluna O Direito Achado na Rua publicada regularmente no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/comercio-de-armas-e-cultura-de-paz-quando-lucrar-se-torna-cumplicidade/).
Menciono essa referência porque Leonardo a traz para a sua dissertação, nos termos em que formulei o argumento, ao registar que “no início de dezembro de 2023, na etapa final deste trabalho, um grupo de freiras dominicanas processou a fabricante de armas Smith & Wesson em um tribunal de Las Vegas, nos Estados Unidos. No dia anterior, um atirador havia matado três pessoas no campus da Universidade de Nevada. O processo, mesmo um tanto embaralhado, reforça a perspectiva de responsabilização de diretores de empresas de armamentos. A ação das dominicanas segue uma linha de formulação político-moral que vem propugnando por fim à violência com medidas que valorizem a cultura de paz. Cidades norte-americanas entram na Justiça para receber gastos com danos provocados por armamentos. Desde o final dos anos 1990 que grupos da sociedade despertaram para a possibilidade de processar a indústria das armas nos Estados Unidos. Uma ação foi iniciada por cidades como Nova Orleans. Mas não é uma tarefa simples, afinal os juízes consideram os assassinos os únicos culpados. Não deixa, entretanto, de ser uma boa oportunidade para pensar sobre os meandros e as motivações da indústria armamentista”.
Com efeito, Leonardo aproveita a minha anotação, citando a fonte, para concordar que “numa perspectiva mais ampla, além das próprias empresas, não seria tão inusitado imaginar a co-responsabilização dos próprios atores do Estado, a cadeia de comando. Numa teia de normas, um presidente poderia assumir o risco ao publicar decretos e portarias – sem a devida chancela do Congresso – flexibilizando o acesso às armas. Por sua vez, o Exército e a Polícia Federal também podem ter sido, no mínimo, omissos ao não cumprir o papel eficiente de controladores. Assim como as empresas também seriam culpadas, a administração pública poderia entrar em tal rol” (Sousa Júnior, José Geraldo de. Comércio de armas e cultura de paz: quando lucrar se torna cumplicidade. Jornal Brasil Popular/DF, em 18 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.brasilpopular.com/comercio-de-armas-e-cultura-de-paz-quando-lucrar-se-torna-cumplicidade/. Acessado em: 15 jan. 2024), e constatar, comigo, que “Assim como as empresas farmacêuticas sendo julgadas depois de anos de lucros com a venda de opioides perigosos, o conselho da Smith & Wesson ignora a exposição potencialmente arruinante que a empresa enfrenta por seu marketing e venda de armas projetadas especificamente para matanças”, aliás, como assim disse o advogado Jeffrey Norton, que se associou ao processo das feiras.
No documento oferecido aos bispos da CNBB, deixamos anotado, corroborando o que assenta Leonardo, que “recentes reportagens divulgadas pela mídia nacional mostraram resultados de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) confirmando que a política armamentista do governo Bolsonaro facilitou o acesso a armas ao crime organizado, que teria usado ”laranjas” em registro dos chamados Colecionadores, Atiradores e Caçadores junto ao Exército. A “farra dos armamentos” naquele período criou uma milícia nacional, com o Exército concedendo registros de Colecionador, Atirador e Caçador, os chamados CACs, a condenados por tráfico, homicídio e até mesmo a brasileiros já mortos.18 O relatório do TCU mostra que durante o governo Bolsonaro, os recursos para o Exército fiscalizar os CACs e as armas de fogo caiu 37%, passando de R$ 30,8 milhões em 2018 para R$ 19,4 milhões em 2022. No mesmo período, o aumento de certificado de CACs saltou de 191,4 mil para 898,3 mil, uma alta de 469%”.
Retomo um tema que eu havia trazido a debate em 2005 – Revista do Sindjus-DF Agosto de 2005 • Nº 26 (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Comércio de armas e cultura de paz: dilemas de um referendo. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 67-68), para debater, tal o título do artigo: Comércio de armas e cultura de paz: dilemas de um referendo.
O centro da matéria era a pauta do Congresso Nacional ao estabelecer a realização, em 23 de outubro de 2005, de referendo popular, previsto no Estatuto do Desarmamento, como instrumento de consulta democrática, para que a população, com o voto obrigatório dos eleitores, decididisse se era ou não favorável à “proibição da comercialização de armas de fogo, acessórios e munições”.
Pela primeira vez um referendo, instrumento democrático de participação direta por meio do qual o eleitorado aprova um ato legislativo ou de governo, foi exercitado no Brasil e, no mundo, sobre este assunto.
Essa manifestação completava um processo iniciado pelo governo do presidente Lula sob a forma de uma clara política de desarmamento e controle de armas de fogo, cujas dimensões mais visíveis foram exatamente a aprovação legislativa do Estatuto do Desarmamento e a implementação de uma Campanha Nacional de Desarmamento, coordenada pelo Ministério da Justiça.
Com o Estatuto do Desarmamento, procurou-se estabelecer mecanismos de restrição à posse de armas tanto para os cidadãos como para policiais e militares; controle de armas de fogo com a centralização dos registros e portes e de munições. Com a Campanha, buscou-se a adesão da população para os fundamentos morais dessa política, voltados para o desenvolvimento de uma cultura de paz.
A meta inicial da Campanha era a de recolher e destruir 80 mil armas em seis meses. A forte mobilização, estimulada pelos meios de comunicação, por organizações da sociedade civil e por organizações governamentais e não-governamentais, logo ultrapassou a meta inicial, levando à prorrogação da Campanha até o dia do referendo. Duas frentes parlamentares antagônicas se formaram: a Frente Parlamentar por um Brasil Sem Armas pretende mobilizar a opinião pública pelo voto “sim” à pergunta proposta pelo referendo; e, em sentido oposto, com a mobilização pelo voto “não”, constituiu-se a Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa.
Alguns dados, tendo como fonte o Ministério da Justiça, motivaram a posição contrária à comercialização de armas de fogo: o Brasil gastava cerca de R$ 41 milhões por ano com pessoas feridas por arma de fogo; um terço das pessoas hospitalizadas com lesões por arma de fogo deram entrada por uso acidental da arma; cerca de cem brasileiros morrem por dia vítimas de disparo de arma de fogo (só a Campanha de Desarmamento levou a reduzir em 15% as internações hospitalares por arma de fogo); 65% das condenações em júri recaiam sobre réus primários, apontando para uma violência das relações do cotidiano e não para uma violência provocada pela criminalidade organizada.
Por sua vez, os defensores do comércio de armas de fogo apoiavam a sua posição no “direito” de escolha do cidadão de autodefender-se, especialmente numa sociedade mal estruturada em que a segurança pública é precária. Em tal contexto, enquanto o cidadão se desarma, os criminosos têm acesso a armas de fogo no comércio ilegal, principalmente, no contrabando.
Estes foram os dilemas do referendo. Contudo, no que diz respeito ao ceticismo relativo a medidas que impliquem restrição de fabricação e de comércio, a desconfiança não procede do mesmo fundamento que inspirou críticas a proibições a exemplo da “lei seca” ou de outros tipos de tóxicos, cuja demanda sempre estimula, como dizia o velho professor Roberto Lyra Filho, “o engenho criminoso a forjar meios e modos para contornar a ação repressora”. A letalidade conseqüente ao comércio de armas, diferentemente do que sucede no comércio de drogas, conduz a uma atividade que pode considerar-se “com vítima”, porque não se trata apenas de autodestruição física ou moral, que não afronta a tutela penal. Por isso mesmo, nos Estados Unidos, hoje, juízes têm condenado como co-autor de homicídio o fabricante que põe à disposição do mercado armas cuja letalidade exceda a auto-defesa razoável.
Não descuido das exigências de segurança na sociedade democrática. Já manifestei em artigo – Segurança, Democracia e Cidadania, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 57-58 – lembrando o papel da polícia, qualquer polícia, de prevenir e gerenciar conflitos. Mas acentuando que a ação da polícia numa democracia tem como pressuposto o estado de direito, no qual, como condição democrática, os cidadãos ou os seus representantes têm ascendência sobre as ações das instituições e dos agentes públicos.
Todos os dias o noticiário exibe ocorrências de altíssima gravidade envolvendo atitudes letais facilitadas pela disponibilidade de armas de fogo. Enquanto escrevo localizo matéria atual – https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/quem-e-e-como-agiu-empresario-que-atirou-em-policiais-nos-jardins-segundo-policia,cf6cb89eb8af2f4b6f1deadec0888b36dbqkjqpg.html# – dando conta de homicídio duplo e morte decorrente de intervenção policial pelo Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), unidade da Polícia Civil acionada quando o caso envolve a morte de agentes da corporação. Segundo o boletim de ocorrência inicial, a perícia encontrou na casa duas pistolas de calibre .45 e .380, usadas pelo dono da casa durante a reação à abordagem.
Mas o quadro geral da violência pela facilitação de acesso a armas de fogo, hoje sabidamente, uma intencional política para a formação de milícias, não só urbanas mas também rurais, ao limite engajáveis em mobilizações golpistas contra a democracia, a constituição e ao estado de direito democrático, está configurado em estudos e pesquisas que dão uma medida visível de sua resultante. Para números gerais ver o estudo do IPEA – https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/filtros-series/5/bitos-por-armas-de-fogo.
Na mesma linha, levantamentos oficiais – https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/armas-de-fogo-e-homicidios-no-brasil/. Nesse estudo específico, a conclusão é a de que “a violência letal no Brasil atingiu o recorde histórico em 2017, quando mais de 64 mil pessoas foram assassinadas e a taxa de mortalidade chegou a 30,9 por 100 mil habitantes. Desde 2018, no entanto, o país tem reduzido anualmente a taxa de mortes violentas intencionais, chegando a 22,3 em 2021. A partir de 2019 o Governo Federal passou a afrouxar a legislação sobre armas e munições, fazendo com que houvesse crescimento vertiginoso nos registros e compras de armas em todo o país. O objetivo principal desse trabalho foi investigar se a redução da letalidade violenta seria consequência da mudança na legislação. Para tanto, desenvolvemos uma análise econométrica de dados em painel com o uso de variável instrumental, como forma de resolver os problemas de endogeneidade presentes. Os resultados robustos e estatisticamente significantes indicaram que quanto maior a difusão de armas, maior a taxa de homicídios. Isso implica dizer que se não fosse a legislação permissiva quanto às armas de fogo, a redução dos homicídios (provocada por outros fatores, como o envelhecimento populacional e o armistício na guerra das facções criminosas após 2018) teria sido ainda maior do que a observada. Com base nesse cálculo aproximado, estimamos que se não houvesse o aumento de armas de fogo em circulação a partir de 2019, teria havido 6.379 homicídios a menos no Brasil. Ou seja, o aumento da difusão de armas terminou por impedir, ou frear uma queda ainda maior das mortes”.
Uma escalada, aliás, já antevista pela UNESCO, desde 2015, conforme https://brasil.un.org/pt-br/69515-unesco-mapa-da-viol%C3%AAncia-revela-que-116-brasileiros-morrem-todos-os-dias-por-arma-de-fogo.
E olha que nem estou recortando os dados no sentido da violência como ação política em sua aplicação neocolonial (ou decolonial), racista, misógina, de classe, que se institucionaliza e se faz estrutural, contra negros, mulheres, indígenas, camponeses, trabalhadores, presidiários.
Nas conclusões de seu estudo Leonardo Cavalcanti faz afirmações de princípio sobre os pontos que sua dissertação se assentou. Ele afirma que a “dissertação se enredou em tais pontos, numa tentativa constante de não se afastar do olhar da criminologia crítica, a mais ampla e adequada das ciências para se avaliar a recente política armamentista. Ao mirar nas duas instituições que controlam as armas no Brasil, o que sobrou foi a captura. No caso do Exército, pela incapacidade de controle e pela expectativa de avanço de poder nos cargos da Esplanada”.
Ele forma com Anitua, muito presente no texto e na banca, o balizamento de um “programa” para confrontar a realidade da violência e do armamentismo no Brasil e o desenha com base em entrevista que realizou com o professor argentino, visando a orientar os estudos criminológicos:
- Questionar a “etiquetagem” de quem pode ou não usar armas;
- Informar quem usa as armas e contra quem;
- Alertar para os perigos do comércio legal e ilegal de armas;
- Expor os dados possíveis sobre políticas armamentistas;
- Estabelecer um discurso de não-violência e a favor da redução das mortes;
- Ampliar o debate sobre a responsabilização de empresas e do Estado;
- Analisar criticamente os modelos de privatização da segurança;
- Avaliar modelos de controle do Estado sobre as armas.
Estou de acordo com esse “programa”, não fosse a concordância geral com Gabriel Ignacio Anitua, convidado por mim, por Salo de Carvalho e por José Carlos Moreira Silva Filho, para compor a obra que organizamos – Criminologia Dialética, 50 Anos: um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
Aliás, dupla omissão no trabalho de Leonardo – Lyra Filho, que fundou na UnB o campo da Criminologia Crítica, como se demonstra na obra citada e ao próprio Anitua que no livro, no que pode ser considerado uma âncora para apoiar o “programa”, colabora com um belo e profundo artigo: Roberto Lyra Filho y los Antecedentes de una Criminología Crítica Latinoamericana: Dialéctica, Integralidad y Pluridisciplinariedad en los Comienzos de los Años Setenta.
Penso que recuperar Roberto Lyra Filho poderia ser um movimento de imantação da proposta consistente que resulta dos compromissos sugeridos por Leonardo para a Criminologia Crítica nesse campo: a importância de disposição e inteligência como indicava velho professor Roberto Lyra Filho, para superar “o engenho criminoso a forjar meios e modos para contornar a ação repressora”. Não podemos esquecer que a letalidade conseqüente ao comércio de armas, diferentemente do que sucede, por exemplo, no comércio de drogas, conduz a uma atividade que pode considerar-se “com vítima“, porque não se trata apenas de autodestruição física ou moral, que não afronta a tutela penal. Por isso mesmo, nos Estados Unidos, hoje, juízes têm condenado como co-autor de homicídio o fabricante que põe à disposição do mercado armas cuja letalidade exceda a auto-defesa razoável. O problema não é só técnico, é também político e, em última razão uma questão que desafia o processo democrático.
Aludi a isso em https://expresso61.com.br/2023/01/02/desarmamento-um-valor-simbolico-para-marcar-que-governar-e-construir-a-paz-fundada-na-cidadania/. Com efeito, marca o imaginário político o simbólico de que com o novo governo, o social também tomou posse e participa da governança, no conteúdo das propostas e no método de as materializar. É nesse sentido que deve ser entendida a manifestação uníssona, em bom som, na Praça dos Três Poderes, da sentença popular “sem anistia”, no instante em que o discurso no Parlatório, caracterizava a desconstrução “genocida” da governança que se encerrava.
Nesse aspecto simbólico mas também concreto deve ser compreendido o conjunto de atos – despachos e decretos – imediatamente assinados após a posse dos ministros e das ministras (uma fotografia diversa, plural, policolorida).
Ponho em relevo, o conjunto denominado “revogaço” e nele, a suspensão de novos registros de CACs e de clubes de tiro (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/01/lula-assina-decretos-e-da-posse-a-ministros.htm).
De fato, o decreto de armas, conforme mostra a matéria de UOL, suspende registro de novas armas de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores); barra a autorização de novos clubes de tiro até a publicação do novo regulamento; reduz de seis para três o número de armas para o cidadão comum; proíbe a prática de tiro desportivo para menores de 18 anos; reduz acesso a armas e munições; autoriza porte de arma apenas a quem comprovar necessidade; ordena que todas as armas adquiridas a partir do decreto n° 9.785, de 2019 (do governo Bolsonaro), sejam recadastradas, em 60 dias, no Sinarm (Sistema Nacional de Armas); cria grupo de trabalho sobre o tema.
Com o cuidado que as medidas de governo devem ter, elas definem uma disposição, tal como saliento no título deste artigo: o desarmamento é um valor simbólico para marcar que governar é construir a paz fundada na cidadania.
Óbvio que no plano sociológico e mais especificamente, no criminológico, o tema já indicava um certo entrelaçamento daquelas “variáveis de um continuum onde a variação depende do grau de espontaneidade de organização e de envolvimento do Estado”, para determinar uma inclusão de modo político, do que se denominava como vigilantismo, porém fora da ação constitucional ou legal da atuação política do próprio Estado.
Aprendi isso ouvindo e lendo a caríssima Martha K. Huggins, do Union College de Nova Iorque. Ali em 1990 ela chegou a proferir, em bom português, uma aula muito explicativa para minha turma de Criminologia da UnB (Faculdade de Direito).
Um pouco depois, ela chegou a publicar, como co-organizadora, uma obra pela Editora da UnB – Operários da Violência: Policiais Torturadores e Assassinos Reconstroem as Atrocidades Brasileiras, 2006 – que analisa entrevistas com policiais brasileiros, entre eles perpetradores diretos de tortura e assassinato durante as três décadas que incluíram o regime militar de 1964-1985. São o que no livro são designados de ‘operários da violência’ e os membros do grupo de ‘facilitadores de atrocidades’ (que supostamente não participaram diretamente na violência) ajudam a responder às perguntas que assombram o mundo de hoje; por que e como homens comuns são transformados em torturadores e assassinos do Estado? Como os perpetradores de atrocidades explicam e justificam sua violência? Qual é o impacto das suas ações assassinas para eles mesmos, para suas vítimas e para a sociedade?.
Entretanto, assim considerados ou em outras denominações esquadrões de morte, justiceiros, parapoliciais, paramilitares, permanecem num limbo de ação privada, mais próximos do ambiente delinquente de organizações criminosas, clandestinas, guerrilheiras, insurreicionais, sem que se pudesse conferir dados precisos de seus eventuais vínculos com o burocrático-estatal, em contexto continental.
Por tudo, ver em Martha Huggins – O Vigilantismo e o Estado: uma Vista para o Sul e para o Norte, in O Alferes, Belo Horizonte 10 (33): 17-38, abril/junho 1992. Para a autora, então, faltavam estudos mais profundos para estabelecer, no continuum das relações entre todas essas formas, “a localização exata desses tipos de um fenômeno já discernível, o vigilantismo”.
Agora não. Agora, no Brasil, já é possível estabelecer-se uma vinculação clara entre ação de estado e mobilização privada da violência, sob a forma de milicianismo. Tratei desse tema aqui no Jornal Brasil Popular em minha Coluna O Direito Achado na Rua. A propósito, conferir (https://www.brasilpopular.com/agrobanditismo-que-mata-e-fere/). Acrescento, ao que mostra a bem desenvolvida e documentada matéria de Carol Castro (https://theintercept.com/2022/11/16/clubes-de-tiro-cercam-indigenas-e-municiam-agromilicias-na-amazonia/) com mapas que revelam todos os pontos de localização caracterizando esse cerco.
Ela mostra, além disso, como a “flexibilização torna mais fácil a atuação de empresas de vigilância armada em regiões já marcadas pela violência rural”. Agora, “as agromilícias se formam no mesmo modus operandi, mas com dois facilitadores: os CACs e os clubes de tiro. ‘Você não precisa mais abrir uma empresa, basta ir lá e tirar um registro de caçador’. A lei mudou mesmo o cenário no campo. Em 2019, Bolsonaro aprovou uma lei de posse de arma estendida no campo. Ou seja, desde então, os fazendeiros podem andar armados por toda sua propriedade – e não apenas na sede, como era antes. “Essas propriedades na Amazônia são do tamanho da região metropolitana de São Paulo. Então essa pessoa pode andar por milhares de quilômetros armada. Ela agora pode botar um fuzil legal dentro da sua propriedade”.
Ainda sobre o tema, em outra coluna: https://www.brasilpopular.com/artigo-armamentismo-uma-estrategia-miliciana-assumida-como-metodo-de-governo/, chamo a atenção para o texto de ZALUAR, A.; CONCEIÇÃO, I. S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: que paz?. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 21, n. 2, p. 89-101, jul./dez. 2007. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v21n02/v21n02_08.pdf
É desse campo minado que advém a Lei nº 12.720/2012, cuja ementa indica a busca para proteger a paz pública, a segurança e os direitos do cidadão, já desmistificando o caráter de vigilantismo ou justiciamento ou qualquer aura de serviço que possa recair sobre milícias, mas entende-las como organizações formadas para a prática de crimes, assim definidos: Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código.
Desde a prática da extorsão às ameaças de morte de opositores, os crimes cometidos por uma milícia estão previstos nos casos em que a organização paramilitar: é destinada à prática de crimes previstos na lei de drogas; é destinada à prática de genocídio, ou seja, de extermínio de pessoas; tem como objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado; é destinada à prática de crimes previstos na formação de quadrilhas ou bandos, como o transporte alternativo de vans ou mototáxis e a cobrança de taxa por segurança.
As medidas ontem adotadas são um começo razoável para debelar uma corrupção sistêmica e devem ser aprofundadas, mobilizando funcional e pedagogicamente as instituições públicas e da sociedade civil para conferir ao desarmamento um valor simbólico que demarque o governar como modo de construir a paz fundada na cidadania.
A dissertação de José Leonardo Cavalcanti Magalhães caminha para esse desiderato. A necessidade de retomar o imperativo político-democrático, que imante as tarefas de uma Criminologia Crítica, pois essa é uma questão que se coloca na perspectiva ética que busca desenvolver e aperfeiçoar sistemas alternativos de produção, fundados em concepções de comércio justo, que reclamam regimes jurídicos especiais para atribuir condições justas às suas práticas, inspiradas em movimentos que se põem contra toda forma de mercadorização e trivialização da vida no social e que insira a questão da segurança na agenda dessa alternatividade até que ela possa se revestir de valores e fundamentos que definam o que deva ser a segurança na democracia.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |