Embora o contexto trazido pela citação pareça contemporâneo às nossas cidades, ele faz parte de trecho da Carta de Atenas, escrita pelo urbanista Le Corbusier em 1931, durante o Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos que ocorreu na Grécia
JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR*
BENNY SCHVARSBERG**
SABRINA DURIGON MARQUES e LUDMILA CORREIA***
“Ficando a cidade saturada, sem poder acolher novos habitantes, fez-se surgir apressadamente cidades suburbanas, vastos e compactos blocos de caixotes para alugar ou loteamentos intermináveis. A mão de obra intercambiável, que absolutamente não está ligada por um vínculo estável à indústria, suporta de manhã, à tarde e à noite, no verão e no inverno, a perpétua movimentação e a deprimente confusão dos transportes coletivos. Horas inteiras se dissolvem nesses deslocamentos desordenados.” (Carta de Atenas)
Embora o contexto trazido pela citação pareça contemporâneo às nossas cidades, ele faz parte de trecho da Carta de Atenas, escrita pelo urbanista Le Corbusier em 1931, durante o Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos que ocorreu na Grécia.
Brasília, erguida no período que imediatamente antecede à ditadura militar e dentro do propósito modernista, teve como um de seus principais inspiradores Le Corbusier, membro de um grupo de urbanistas modernos que acreditavam serem capazes de mudar a vida das pessoas a partir da arquitetura e do urbanismo. Tivemos, no início da década de 1960, uma conjuntura que minava fortemente a participação popular nas discussões sobre os rumos que a cidade tomaria a partir de sua ocupação e consolidação. Ao mesmo tempo em que o momento político reprimia a vontade popular e a ocupação das ruas, o ideário arquitetônico e urbanístico moderno se julgava com potencial de resolver, de cima para baixo, os problemas da cidade.
Mas a tomada da rua pelo povo não desapareceu, ficou desvanecida até a redemocratização do país e, recentemente, passou por novo processo de esvaziamento por quase uma década, quando vivemos um momento de forte repressão política nas ruas. Vivemos agora novas oportunidades de resgatar as esferas democráticas representadas pela rua — enquanto espaço público da ação —, por meio dos processos de caráter participativo em andamento, mesmo que limitadamente, no Distrito Federal.
O Plano Diretor de Ordenamento Territorial passa por processo de revisão, tendo sido realizadas oficinas nas diferentes regiões administrativas. A estrutura de governança para sua revisão conta com um Comitê de Gestão Participativa, que vem gerindo, junto à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação do DF, os debates que culminarão com uma proposta legislativa a ser enviada à CLDF. Antes disso, no entanto, serão promovidas as audiências públicas, para as quais é indispensável, amparada no marco legal do Estatuto da Cidade, a participação da população distrital.
Outro projeto em debate público atualmente na CLDF é o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), que regula a área tombada como patrimônio pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e traz a possibilidade de pensar a requalificação de diversas áreas pouco ocupadas ou esquecidas pela mudança dinâmica da cidade.
Também este ano, o governo federal convocou a Conferência Nacional das Cidades para novembro, com o mote Cidades Inclusivas, Participativas e Socialmente Justas, com subtemas: cidades dignas, solidárias, sustentáveis e dinâmicas. Transformar Brasília, uma das cidades mais desiguais do mundo, em uma cidade justa e solidária, é um dos desafios que está colocado para nós, seus habitantes.
A Conferência Distrital é etapa do ciclo local precedente à nacional, e está prevista para setembro deste ano, com o tema Função Social da Cidade e da Propriedade Urbana, oportunidade em que poderemos reivindicar a escala humana de Brasília, repensando a cidade enquanto bem comum, que deve ser igualmente usufruída por todas as pessoas, independentemente do local de moradia. As cidades têm caráter dinâmico, mudam constantemente. A Brasília de 1960 não existe mais. É preciso adequar a legislação às demandas populares a fim de que tenhamos uma cidade democrática e em conformidade com os objetivos da Nova Agenda Urbana, proporcionando um espaço público que acolha toda a população.
Passados 64 anos de criação da nossa capital, já acumulamos experiência suficiente para adequar o espaço concebido ao espaço vivido, e por isso “vamos precisar de todo mundo” para construir a Brasília que queremos para as presentes e futuras gerações. A transformação de nossa capital em uma pólis só será possível com a efetiva tomada do protagonismo pela população.
Cada um de nós — técnicos do governo, comunidade acadêmica, entidades de classe, os movimentos sociais, os coletivos e todas organizações da sociedade civil — dentro de nossas competências, tem um papel fundamental a desempenhar. Enquanto os técnicos do governo trazem sua experiência em políticas, planejamento e gestão públicos; a comunidade acadêmica desenvolve pesquisas, análises e propostas embasadas em conhecimento científico; as entidades de classe representam os interesses de diversos setores da sociedade; e os movimentos sociais e coletivos trazem a voz das comunidades vulnerabilizadas, defendendo seus direitos e necessidades. Agindo de forma articulada, poderemos avançar no sentido de efetivar a participação social no planejamento das cidades, rompendo com a lógica autoritária de cima para baixo e fortalecendo as dinâmicas democráticas e participativas.
*Professor emérito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
**Professor titular da UnB e integrante do Comitê de Gestão Participativa
***Professoras universitárias e integrantes do Comitê de Gestão Participativa, acompanham a revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial
Publicado originalmente no Correio Braziliense