Por: Padre José Ernanne Pinheiro 1e Ana Paula DaltoéInglêz Barbalho – Jornal Brasil Popular/DF
Muito além dos católicos: uma mobilização ecumênica
A Campanha da Fraternidade completa 60 anos em 2024. Circula em grupos das redes sociais mensagens atacando a Campanha da Fraternidade 2024, que tem como tema a Amizade Social. Em resposta às mensagens, diversas entidades assinaram nota conjunta, emitida em Brasília (DF) em 02 de março de 2024, em apoio a Campanha da Fraternidade.
A nota destacaa importância da Campanha da Fraternidade como momento de mobilização, reflexão, compaixão e ação solidária para os católicos e comunidades cristãs, enfatizando que seu conteúdo está alinhado com a mensagem evangelizadora do Papa Francisco, que conclama à construção de pontes e à abertura de novos caminhos para uma Igreja comprometida com os pobres e marginalizados.
Confira a nota na íntegra
EM DEFESA DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE
Brasília (DF), 02 de março de 2024.
Estamos presenciando, em alguns lugares, grupos fundamentalistas atacando a Campanha da Fraternidade. Qual a finalidade de criticar e atuar contra a Campanha? Gerar conflito e romper a comunhão da Igreja? Deixar de dividir o pão e de acolher os que mais necessitam, ou seja, ir contra a prática da solidariedade cristã? A Campanha da Fraternidade é um importante momento de reflexão, compaixão e uma ação crucial de solidariedade dos católicos.
Expressamos nossa total comunhão com a Campanha da Fraternidade coordenada pela CNBB, que neste ano traz o tema da amizade social.
A Campanha da Fraternidade está em sintonia com a mensagem evangelizadora do Papa Francisco e sua profunda capacidade de construir pontes e abrir novos caminhos na efetivação de uma Igreja em saída. Uma Igreja dos pobres e para os pobres em sua luta diária contra as guerras, a indiferença, a fome e a dor dos órfãos e oprimidos.
Conselho Nacional do Laicato do Brasil
Conferência dos Religiosos do Brasil
Conferência Nacional dos Institutos Seculares do Brasil
Comissão Nacional dos Diáconos
Comissão Nacional dos Presbíteros
Pontifícias Obras Missionárias no Brasil
Comissão Brasileira de Justiça e Paz
O tema da Campanha da Fraternidade 2024 não é apenas uma questão social, mas o próprio horizonte de solução como princípio de justiça e de paz:
Fraternidade e Amizade social: Vós sois todos irmãos e irmãs (Mt 23,8)
A Campanha da Fraternidade é uma convocação ao diálogo sobre a intolerância, o ódio, as inimizades entre as pessoas, até a questão da violência e das guerras.
Encorajar o despertar para o valor e a beleza da fraternidade humana é uma ferramenta para a construção da justiça e da paz.
É o fim em si mesmo e uma forma eficaz de evangelização e de transformação de realidades!
O texto-base da Campanha da Fraternidade ressalta que a
“amizade não é um clube exclusivo, mas uma escola onde treinamos competências a serem universalmente aplicadas. […] É viver livre de todo desejo de domínio sobre os outros. É o amor que se estende além fronteiras.”
O texto nos inspira a superar a cultura dos muros, eliminando a rejeição a tudo que é do outro, conhecido como alterofobia, e a supervalorização da individualidade, quando somente o “eu” é a referência, o chamado hiperindividualismo.
Do ponto de vista individual, é perceber o outro como digno de cuidado, de respeito e de amizade social, independentemente da inclinação religiosa, política e da percepção de mundo. No âmbito comunitário-eclesial, é promover a atitude de paz, “um processo de autêntica conversão, que passa pela reconciliação e pela acolhida do diferente”.
Mas você sabe como surgiu a Campanha da Fraternidade?
Uma outra forma de responder a estas mensagens apócrifas e repletas de ódio, é conhecermos e divulgarmos o contexto da Campanha da Fraternidade (CF), sua história e a mensagem de fraternidade 2024.
1. De Natal para o Brasil: nasce a Campanha da Fraternidade
Inicialmente protagonizada pela Arquidiocese de Natal em 1962,assumiu caráter nacional em 1964. Tornou-se parte do calendário da Igreja Católica no Brasil e, desde o ano 2000, a cada 5 anos, a Campanha assume caráter ecumênico.
A Campanha da Fraternidade (CF) é uma campanha de evangelização que ocorre especialmente no período da Quaresma eperdura ao longo de todo o ano, trilhando as diversas ações pastorais da Igreja. A CF permite que, “em ambiente quaresmal, se alcance o coração dos cristãos, fazendo-lhes retornar ao coração do Evangelho”.
As campanhas selecionam temas atuais, pertinentes à realidade brasileira e que, à luz do Evangelho, despertam nos cristãos a necessidade de conversão – não só pessoal, mas também social. Elas tocam feridas abertas da sociedade e possuem caráter profético, de anúncio e de denúncia.
O surgimento da CF na Arquidiocese de Natal reflete aspectos do contexto brasileiro que o teólogo Raimundo Caramuru, em seu livro “Para entender a Igreja no Basil, a caminhada que culminou no Vaticano II”, publicado pela Vozes em 1994, indicacomoa década de 1950 mais criativa da Igreja no Brasil:
a. A criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, em 1952, e suas regionais;
b. A liderança forte de alguns bispos, sobretudo de Dom Eugênio Sales, então bispo auxiliar da arquidiocese de Natal;
c. Influência da Juventude Agrária Católica – JAC que formou uma geração de leigos e leigas de grande significação para a Igreja;
d. A presença das Irmãs Vigárias Missionárias de Jesus Crucificadona paróquia de Nísia Floresta, que foram pioneiras ao assumir uma paróquia e tiveram uma missão chave para a primeira Campanha;
e. A criação dos sindicatos rurais;
f. A relaçãoFé-Vida, com o uso do rádio como comunicação com o povo organizado – aschamadas escolas radiofônicas;
g. O papel do Movimento de Educação de Base – MEB, com uma grande preocupação com a superação do analfabetismo reinante, especialmente com influência do método do pedagogo Paulo Freire.
A Campanha da Fraternidade teve início neste clima eclesial, a partir da diocese de Natal,e logo irradioupara o Nordeste II da CNBB, que tinha sua secretaria naquela diocese.Do Nordeste,se expande para o Brasil com animação do Secretário Geral daCNBB Dom Helder Câmara, em 1964.
2. O contexto inicial
A CF desde seu início teve direta relaçãocom a Quaresma.Deixa-se, a cada ano, banhar na espiritualidade da Quaresma, tempo litúrgico que incentiva todos os cristãos e cristãs, na viva fé em Jesus Cristo, à conversão, a qual deve revelar-se pela mudança de visão, sentimentos, atitudes e práticas.
A ideia da Campanha da Fraternidade na Quaresma é a harmonia com o tempo litúrgico que convoca à conversão, considerando não só a liturgia, mas também os aspectos da vivência da fé.
Constitui uma oportunidade, um tempo kairológico, expressão de que referencia que todos precisamos nos converter ao amor ao próximo (cf. 1Jo 4,20-21).Trata-se de uma busca de conversão pela fraternidade e pela solidariedade,sobretudo ao serviço dos mais pobres.
Além disso, o papel educativo das Campanhas, que atuou como fundamento para o nascimento das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs,é também terreno fértil para acolher o resultado do Concílio Vaticano II.
A escolha das temáticas, desde seus primeiros passos, foi feita com uma participaçãodos cristãos leigos, o que muito a comprometia com as causas da realidade da população.Os primeiros anos tiveramtemática mais eclesiais e, a partir de 1971 por influência daSegunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, conhecida por Conferência de Medellín, os temas sociais afloraram a partir dos questionamentos que surgiam das bases – sinais dos tempos.
A Conferência de Medellín realizou-se em Medellín – Colômbia no período de 24 de agosto a 6 de setembro de 1968. A Conferência foi convocada pelo Papa Paulo VI para aplicar os ensinamentos do Concílio Vaticano II às necessidades da Igreja presente na América Latina.As coletas e a relação da quaresma na vida-fé-políticavigoram desde o início da Campanhas.
3. CF 2024: Fraternidade e Amizade Social
O tema da Campanha da Fraternidade 2024 anuncia algo inédito: acolhe a mensagem do Papa Francisco, na sua carta encíclica Fratelli Tutti (FT) sobre a fraternidade e a amizade social.
Ao aprofundarmos a leitura, o tema demonstra ser extremamente atual e exigente, tal como a mensagem presente no texto papal. Na carta encíclica Fratelli Tutti (FT), o Papa, ao escrever, “apresenta o seu projeto de fraternidade, baseado na amizade social e no amor político, tendo o diálogo como caminho necessário para a cultura do encontro” (n.15).
A Campanha da Fraternidade chama nossa atenção à perspectiva da amizade social, incluindo também o cuidado com a terra e com a biodiversidade. Nos relembra, de certa forma, a vivência de São Francisco que reconhecia todas as coisas da criação como nossas irmãs.
O texto base da Campanha da Fraternidade 2024 nos alerta
“há muito por fazer no mundo. Há muito por transformar no Brasil. São desafios sociais. São causas ambientais. E, tanto em um aspecto quanto em outro, são seres humanos sofrendo situações profundamente interligadas, que pedem de nós um esforço único. Foi isso que o Papa Francisco indicou, ao nos alertar de que estas situações provocam gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”
A Amizade social e o diálogo são as chaves de leitura da Fratelli Tutti. A encíclica faz um
“convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si”.
A fraternidade universal, o respeito e a convivência harmoniosa entre os seres que coabitam nossa casa comum preza por:
Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contacto: tudo isto se resume no verbo «dialogar».Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de dialogar.
Não é necessário dizer para que serve o diálogo; é suficiente pensar como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades.(cf.n.198).
Como irmãos e irmãs, somos convidados a construir uma verdadeira fraternidade universal que favoreça a nossa vida em sociedade e a nossa sobrevivência sobre a Terra, nossa Casa Comum, sem jamais perdermos de vista o Céu, onde o Pai nos acolherá a todos como seus filhos e filhas.
4. A Mensagem do Papa Francisco para a CF 2024
Tradicionalmente, desde 1970, o Papa envia uma mensagem especificamente para motivar a Campanha da Fraternidade, conectando a mística da Quaresmacom a preparação para a Páscoa,e com uma evangelização que promova a relação da fé com a vida.
Neste ano de 2024, o Papa Francisco nos ofereceu uma bela mensagem que termina com as seguintes palavras proféticas:
“…
Infelizmente, ainda vemos no mundo muitas sombras, sinais do fechamento em si mesmo. Por isso, lembro da necessidade de alargar os nossos círculos para chegarmos àqueles que, espontaneamente, não sentimos como parte do nosso mundo de interesses (cf. FT 97), de estender o nosso amor a “todo ser vivo” (FT 59), vencendo fronteiras e superando “as barreiras da geografia e do espaço” (FT 1).
Desejo que a Igreja no Brasil obtenha bons frutos nesse caminho quaresmal e faço votos que a Campanha da Fraternidade, uma vez mais, auxilie às pessoas e comunidades dessa querida nação no seu processo de conversão ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, superando toda divisão, indiferença, ódio e violência.
Confiando estes votos aos cuidados de Nossa Senhora Aparecida, e como penhor de abundantes graças celestes, concedo de bom grado a todos os filhos e filhas da querida nação brasileira, de modo especial àqueles que se empenham pela fraternidade universal, a Bênção Apostólica, pedindo que continuem a rezar por mim”.
A Campanha da Fraternidade 2024 propõe o ecumenismo, reconhecendo a pluralidade religiosa no Brasil, estimulando a experiência de respeito e de diálogo inter-religioso e intercultural.
A CF 2024 nos chama a enfrentar, de forma corajosa, tudo que corrói a amizade social: o que o Papa Francisco define como “os muros” que tentam nos separar.
(*) Por Padre José Ernanne Pinheiro[1] e Ana Paula DaltoéInglêz Barbalho[2]
[1]Padre José Ernanne Pinheiro (Jaguaretama, 11 de agosto de 1938) é sacerdote católico brasileiro, membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília. Cursou Filosofia no Seminário da Prainha, em Fortaleza, e Teologia em Roma, na Universidade Gregoriana, esta última concluída em 1964. Publicou Memória e missão – ed. Paulinas, dentre outros.
[2] Advogada, Mestre em Biologia Animal e Bióloga pela Universidade de Brasília, servidora pública há 17 anos. Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília.