Religião, golpismo e atentado ao Estado de Direito: violação aos Princípios de Defesa da Democracia e da Imunidade Tributária

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

O pastor Silas Malafaia afirmou nesta quinta-feira 15 que a manifestação convocada por Jair Bolsonaro (PL) para 25 de fevereiro, em São Paulo, será financiada com recursos da Associação Vitória em Cristo, ligada à Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo: “A entidade [por] que somos responsáveis, no nosso estatuto, prevê que ela pode fazer manifestações públicas. Então, os recursos são exclusivos da Associação Vitória em Cristo“, disse o pastor. “Não tem recursos de políticos, não tem recurso de caixa dois, de onde quer que seja. Estamos amparados legalmente para fazer esse tipo de manifestação.”

A declaração foi concedida após uma reunião com Bolsonaro e aliados políticos na sede do Partido Liberal, em Brasília ((https://www.cartacapital.com.br/politica/associacao-de-igreja-bancara-ato-de-bolsonaro-em-sao-paulo-diz-malafaia/amp/).

Fiquei aturdido com essa declaração, embora não surpreendido. Desde as mobilizações que levaram ao afastamento de uma Presidenta da República e a calçar as base de ascensão de um sistema proto-fascista (uso a expressão com aquele alargamento caracterizado por Umberto Eco como etapa de um fascismo eterno), tem ficado cada vez mais nítida a aliança de um segmento confessional dito cristão, conduzido por um pastoreio remotamente ligado a uma teologia da abundância ou da prosperidade, mas muito mais ativada por impulsos ideológicos e mundanos no sentido político publicamente assumidos, no púlpito, nas instituições quando não em conspirações.

O meu aturdimento veio em parte, por confirmar o que já não é somente uma teoria ou modo de análise política. Conforme o texto DA EXPANSÃO JUDICIAL À DECADÊNCIA DE UM MODELO DE JUSTIÇA, de Boaventura de Sousa Santos, publicado em O Direito Achado na Rua: Introdução crítica ao direito como liberdade / organizador: José Geraldo de Sousa Junior [et al.] – Brasília: OAB Editora ; Editora Universidade de Brasília, 2021.  v.10 (texto completo, acesso livre: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/116/303/1008), fez parte da estratégia do Império (hegemonia norte-americana no hemisfério),  “a entrada dos evangélicos no Brasil, conservadores neopentecostais, que data de 1969, [a atentar-se para]  um relatório de Nelson  Rockefeller,  que  vai  considerar  a  teologia  da  libertação  uma  ameaça  à  segurança  nacional  dos Estados Unidos, e diz “É preciso uma resposta conservadora”, e a resposta religiosa conservadora são os evangélicos   neopentecostais.   Não   quero   ofender   ninguém   que   seja   evangélico, nem   todos   são, obviamente, conservadores a esse ponto, mas essa foi a estratégia” (p. 59).

Mas veio também, o aturdimento, com o despertar de minha memória biográfica, da qual consta três mandatos de membro do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, tendo chegado a vice-presidir o 2º Conselho de Contribuintes e, nessa condição, a integrar a Câmara Superior de Recursos Fiscais (ao tempo em que presidida pelo grande tributarista, servidor da Fazenda, Amador Outerelo Fernandez). Apesar de representar os contribuintes, foi inestimável o meu aprendizado sobre a função social do tributo e o que representa uma boa arrecadação para o desenvolvimento do País.

Certo que também aprendi o significado da equidade e da precedência dos princípios constitucionais tributários, aplicados sempre com muito zelo apara não frustrar seus objetivos institucionais e civilizatórios.A imunidade, por exemplo,dos templos de qualquer culto, porque concerne com o princípio da liberdade de crença e prática religiosa, está assim inscritona Constituição Federal,  no artigo 5º, nos Incisos VI a VIII. Nenhum obstáculo poderá ser criado para proibir ou impedir esse direito de todo cidadão.

Templo de qualquer culto é, o edifício e suas instalações ou pertenças adequadas àquele fim; templo, assim, “compreende o próprio culto e tudo quanto vincula o órgão à função, ensina que o patrimônio das instituições religiosas abrange seus bens imóveis e móveis, desde que afetados a essas finalidades – vale dizer, o prédio onde se realiza o culto, o lugar da liturgia, o convento, a casa do padre ou do ministro, o cemitério, os veículos utilizados como templos móveis”, é a síntese da continuidade desse entendimento no Supremo Tribunal Federal, em matéria já debatidacom contribuições recentes dos Ministros Ricardo Lewandowski,  Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, que destacaram suas prerrogativas, desde queafetadas as suas finalidades constitucionais.

Uma boa compreensão desses fundamentos pode ser encontrada na tese de Doutorado – Imunidade tributária e pragmatismo, defendida na PUC-SP, por Marcos PereiraOsaki, em 2010 (https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/5372). Forte na tese é constatar a situação limite em que a imunidade tributária se contrapõe a uma situação até de competência tributária legislativa quando os elementos de imunidade, na sua extensão, provocam o dever da autoridade tributária de aferir se aquelas condições de imunidade estão de fato afetadas as suas finalidades constitucionais.

Situações em que o contribuinte ainda que imune (todos são contribuintes imunes ou não),e gozando de imunidade, dá ensejo a que possa o fisco rever essa condição e instaure procedimento de suspensão à imunidade. Constrangidos as condicionantes e requisitos que devem ser obedecidos pelo contribuinte, ainda que disfarçando as suas finalidades, opera em violação ao princípio da imunidade. Nessa situação,há que se ativar o procedimento que começa com a identificação pelo fisco do descumprimento supracitado, no modo estabelecido nos termos do art. 123 do Decreto de n. 7574/2011:Art. 123. A suspensão da imunidade tributária, em virtude de falta de observância de requisitos legais, deve ser procedida em conformidade com o disposto nesta Seção ( Lei nº 9.430, de 1996, art. 32 ).

gato agora quer se esconder mas deixou o rabo de fora: “depois de anunciar que a Associação Vitória em Cristo financiaria a manifestação convocada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para o próximo dia 25 na Avenida Paulista, o pastor evangélico Silas Malafaia mudou o discurso, afirmando que o ato será pago com recursos próprios. A decisão do líder religioso de custear o evento com seu próprio dinheiro ocorre após críticas nas redes sociais sobre suposto uso de dízimo de fiéis para o ato bolsonarista”.

Mas é exatamente nesse ponto que se dá a clivagem entre a violação a princípio constitucional que resguarda o culto, e o uso do culto (a Igreja está onde o povo está mas também onde se manifesta o pastor) para sabotar a democracia e atentar contra o Estado de Direito (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/na-reuniao-golpista-bolsonaro-orientou-aliados-a-usar-a-religiao-para-atacar-lula/). Uma realidade que o refinamento da investigação técnica – Ministério Público e Polícia Federal – começa a revelar (https://www.intercept.com.br/2021/08/18/catolico-espanha-citizengo-treinou-extrema-direita-2013-bolsonaro/;https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/02/08/saiba-quem-e-o-padre-que-participou-de-reuniao-sobre-golpe-segundo-a-pf.ghtml).

Tem razão Clive Staples Lewis (1898 – 1963), escritor irlandês, conhecido por seus trabalhos sobre literatura medieval e por suas palestras e escritos cristãos: “De todos os homens maus, os maus e religiosos são os piores”.


(*) Por José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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