É possível que essa sanha punitivista se arrefeça agora que a criminalidade, depois do 8 de janeiro de 2023, veste colarinho branco
JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR
Ex-reitor da UnB (2008-2012); coordena o projeto O Direito Achado na Rua
A Comissão de Segurança Pública (CSP), do Senado Federal, aprovou na terça-feira, 6 de fevereiro, Projeto de Lei (PL) 2.253/2022 que restringe o benefício da saída temporária para presos condenados. O projeto, da Câmara dos Deputados, recebeu relatório favorável do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e segue para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), com requerimento de urgência aprovado para a votação da matéria no Plenário
Os parlamentares se pautam numa impressão, muito mais fruto do senso comum que de dados precisos, de que a saída temporária tem trazido problemas na execução da pena, com a consideração de evasão e pior, de que esses presos cometem crimes. Essa impressão é sabidamente errônea, conforme referências técnicas. E mesmo jornalisticamente, o G1, por exemplo, ofereceu a informação, que “pouco mais de 52 mil presos deixaram a prisão na saidinha de Natal de 2023. Dos 52 mil, 49 mil retornaram (ou 95%) e somente 2,6 mil (ou 5%), não retornaram”. Um dado quase irrelevante para justificar substituir políticas penais, de reabilitação e de reinserção social, por opções punitivistas fáceis e ao gosto da reação social.
A rejeição epistemológica da abordagem preliminar e causal de crime questiona, em contrapartida, o próprio fenômeno da incriminação como pressuposto e base de toda análise das condições de emergência do delito, assim procurando as suas raízes histórico-sociais. O ponto de partida para o estudo sistemático do crime não é indagar por que alguns se tornam criminosos e outros não; mas perguntar, primeiro, por que alguns atos são definidos como criminosos e outros não.
Com esses contornos, Roberto Lyra Filho traçou um programa dotado de elementos paradigmáticos para reorientar estudos criminológicos em perspectiva crítica, desde que os direitos humanos, em vez de definições legais operantes, possam ser adotados para marcar o comportamento criminoso, tanto de indivíduos que negam esses direitos a outros, e são criminosos, como igualmente criminosas são as relações e os sistemas sociais que causam a abrogação destes direitos.
Penso que um tanto desse apelo ao midiático se reduziu ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo e que esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção — erigida em metonímia da categoria criminalidade — reunidas no PL 4850/16 — (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o número: 1017/16 24/08/2016-16), como no PL que quer restringir saídas.
Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo é uma leitura de um sentido civilizatório, cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva, revela a história do direito penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão.
Num texto de Evandro (De Beccaria a Filippo Gramatica. Uma visão global da história da pena. Edição do autor, 1991), ele traz para nossa atenção uma leitura do então ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente.
Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão.
Agora que nos deparamos com uma nova orientação no campo da Justiça e da segurança pública, talvez se abra a possibilidade humanista, já demonstrada pelo ministro Lewandowski quando foi presidente do Supremo Tribunal Federal e colocou no seu programa a educação dos magistrados para a cidadania e os direitos humanos. Essa sim é uma política pública de vanguarda, que estimula a pacificação de conflitos, a redução do desarmamento, o controle de fronteiras e o financiamento de um mercado clandestino e altamente lucrativo.
É possível que essa sanha punitivista se arrefeça agora que a criminalidade, depois do 8 de janeiro de 2023, veste colarinho branco e alcança, passados 85 anos da Conferência de Sutherland, lançando a tese do white colar crime (1939), e da famosa exposição de Séverin-Carlos Versele, perante o Consórcio Europa de Investigações Políticas, em abril de 1976, ocasião em que formulou a sua célebre noção relativa à cifra dourada da delinquência, a nossa consideração criminológica sob o impacto de práticas de agentes em posição muito privilegiada, enfim cominadas de caráter delinquencial. O benefício da saída, que se erigiu em direito, em sentido civilizatório, corre o risco de voltar a ser um privilégio para nous, les gens honnêtes, que não entendemos por que nos colocam no calabouço.
Artigo retirado do Correio Braziliense.