por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF em 21 de setembro de 2023
Recebi de João Almeida, antigo diretor da Associação de Moradores da Vila Telebrasília e um dos principais narradores de sua história social e política, um vídeo que marca 67 anos de sua saga memorável. O vídeo está circulando nas redes sociais e a versão que tenho está no facebook: https://www.facebook.com/joao.almeida.98229/videos/624211739839604.
O título é simbólico: Que a Vila Telebrasília tem História…Nós já Sabemos! Mas como Começou?!. Recebi a mídia no dia 18 de setembro, mesmo dia em que, a convite da Reitora Simone Benck, da recém instalada Universidade do Distrito Federal, criada pela Lei Complementar nº 987/2021, me reuni com a comunidade universitária para uma roda de conversa que pudesse contribuir para pensar a nova institucionalidade acadêmica, tendo por base, eis o escopo do encontro: A Formação para a Cidadania no Ensino Superior e a Construção de uma Cultura Democrática no Distrito Federal.
Claro que parti do argumento do vídeo para assinalar a dimensão cultural-instituinte das lutas por cidadania e por reconhecimento de direitos que caracterizam as lutas sociais no Distrito Federal. O exemplo da Vila Telebrasília não é único, mas é paradigmático.
Na minha experiência acadêmica, a partir da dinâmica indissociável entre ensino, pesquisa e extensão, o chão dessas lutas tem sido o espaço comunitário e do protagonismo dos sujeitos coletivos que nele atuam. Assim foi e continua sendo na ação solidária com a Vila Telebrasília (confira-se o livro que organizei com meu colega Alexandre Bernardino Costa, da Faculdade de Direito da UnB: Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: Faculdade de Direito, 1996).
De modo mais reflexivo esse registro veio a integrar um texto de mais profundidade publicado na edição especial (nº 56, dezembro de 2009 – Brasília, Cidade, Pensamento) da Revista Humanidades, Editora da UnB, para dar conteúdo a um conceito que procurei inserir no meu ensaio. O de entender Brasília, Capital da Cidadania (p. 18-27).
Esta é também uma reflexão mais densificada, base da edição do volume 9, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). Brasília: Editora UnB, 2019), na qual, mais uma vez em co-autoria com meu colega Alexandre Bernardino Costa, projetando experiências de afirmação de direitos, na Vila Telebrasília e em outros planos de lutas, pudemos falar de Brasília, urbs, civitas, polis: moradia e dignidade humana (p. 69-80).
No vídeo, certamente contendo além da narração, o argumento de João Almeida, até me vi, jovem professor, em diálogo com a Comunidade junto com os alunos e alunas sob orientação, tecendo parte da fundamentação que deu lastro à reivindicação e à realização do direito de morar naquele espaço.
Uma outra precisa descrição desse processo está lançada em Revista do SindjusDF – Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público no Distrito Federal, na edição alusiva a Ano XVII – nº 55 Fevereiro de 2009 (Vila Telebrasília. A Conquista da Cidadania). A matéria CIDADANIA O direito de ter direitos (P. 6-11), da jornalista Usha Velasco, abre o tema de capa: “Os moradores do antigo Acampamento da Telebrasília, no extremo sul da Avenida das Nações, à beira do lago Paranoá, podem dormir tranqüilos desde janeiro. Mais de cinqüenta anos após se estabelecer no local, e depois de duas décadas de uma acirrada luta para não ser removida, a comunidade comemora o recebimento das escrituras e a urbanização definitiva da Vila, com asfalto, posto policial e outras benfeitorias. Não se trata de uma dádiva do governo. Pelo contrário. Essa conquista é resultado de uma mobilização sem precedentes no DF, tanto pelo grau de envolvimento e de organização dos moradores quanto pelo tempo em que eles conseguiram resistir às tentativas de remoção. “A comunidade não aceitou ser colocada à margem da história e do espaço urbano; ela conseguiu estabelecer uma interlocução com a cidade, com a sociedade brasiliense”, afirma José Geraldo de Souza Júnior, reitor da Universidade de Brasília e professor da faculdade de Direito, que desde 1988 acompanha o caso (leia na p. 5)”.
Com efeito, na minha coluna (mantive uma coluna regular nesse periódico), lembro comono final de 2008, às vésperas do Natal, o governador do Distrito Federal, em cerimônia pública na Vila Telebrasília, outorgou os títulos de propriedade definitivos aos ocupantes históricos do velho acampamento dos tempos da construção de Brasília. Quase cinquenta anos depois de muita luta, o ato representou o momento culminante de uma história de resistência e perseverança de uma comunidade mobilizada pela conquista do direito de morar.Não é por acaso que à entrada da Vilase mantenha instalada uma placa com a inscrição singular: “Aqui tem história!”
Não conheço um registro igual de uma comunidade que se reconheça na identidade de seu protagonismo histórico, mas como professor orientador, em projeto de assessoria jurídica universitária desenvolvido pela Faculdade de Direito da UnB, com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos (então vinculada ao Ministério da Justiça), acompanhei por vários anos o percurso dessa luta, em suas diferentes fases, boa parte dela documentada em livro de cuja organização participei (Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília, 1998, citado).
Este livro põe em relevo as circunstâncias complexas de diferentes momentos da manifestação de uma consciência de direitos, afirmada na ação da comunidade, afinal inscrita na formação de uma Associação de Moradores, que soube conduzir a unidade de um movimento social constituído como sujeito coletivo de direito e em condições de realizá-lo. Nesse passo, e de forma nítida, pôde-se constatar claramente a ação da coletividade em sua subjetividade mediadora pronta para abrir, como lembra Marilena Chauí, “o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Foi desse modo, e em ações semelhantes nas periferias dos espaços urbanos desde os anos 1970, que movimentos sociais com crescente legitimação forjaram a agenda internacional do direito de morar, inscrevendo-o nas declarações de direitos (conforme a Declaração de Istambul, Habitat II, ou Cúpula das Cidades, 1996), para depois projetá-lo nas legislações de zoneamento urbano e, no caso brasileiro, na Constituição Federal, após 1988, por impulso dos movimentos sociais por moradia (tratei disso num texto de 1982, Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Revista Direito e Avesso, Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, nº 1).
A luta da comunidade da Vila ganhou adensamento nesse trânsito, primeiro como ação política de movimento, depois como construção social de sentido. Destaca-se aí a vitória obtida com a promulgação da lei distrital 161/91, de autoria do deputado Eurípedes Camargo, fundador do Movimento Incansáveis Moradores de Ceilândia, inicialmente vetada pelo governador e afinal sancionada com a derrubada do veto, aliás o primeiro veto derrubado na história da Câmara Distrital.
Mas a principal vitória da comunidade deu-se, a meu ver, no campo simbólico. Refiro-me ao enfrentamento da objeção de fixação da Vila, apoiada no discurso do tombamento do Plano Piloto como forma seletiva de apropriação da cidade.
Lembro o espanto do pesquisador norte-americano James Holston, autor de A Cidade Modernista. Uma Crítica a Brasília e a sua Utopia (São Paulo: Companhia das Letras, 1993), livro que une análise formal de convenções arquitetônicas e de planejamento urbano e análise sócio-econômica; e que exibe as contradições inerentes à racionalidade e ao projeto utópico modernos, tal como encarnados na nova capital do país. Levei Holston à Vila. Ele até se deixou fotografar ao lado do outdoor Aqui tem História. Visitamos toda a Vila ciceroneados por João Almeida que ria do espanto de que a comunidade não sucumbira à ganância de alienar os terrenos escriturados (primeira vez em que a política de moradia optou pela outorga de escritura e não pela cessão de uso de imóvel, talvez um ardil para dar ao mercado o papel que a repressão não lograra de arrematar os bens sociais pela voragem privatizante). Não esquecer que a Vila está encravada na orla do Lago Sul – a Escandinávia brasiliense – na avenida das Nações, tendo como vizinhos as principais embaixadas acreditadas em Brasília.Menos de 5% alienou seus imóveis. A mobilização comunitária reorientou suas pautas para aprofundar os fundamentos urbanos-jurídicos de sua conquista.
Foi nessa circunstância que a comunidadeda Vila reivindicou uma dimensão social para configurar o Plano de Brasília, ao lado das escalas arquitetônica, monumental e bucólica, estabelecendo, para além de sua condição de urbs e de civitas, bela, moderna e funcional, concebida na genialidade do projetista, para se realizar numa verdadeira polis,construída pelo protagonismo social, inscrito na História, dando a Brasília a dimensão que lhe faltava, a escala humana.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).