Secretaria de Reforma do Judiciário: uma experiência de política de justiça para democratização do acesso à justiça no Brasil

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Kelly Oliveira de Araújo. Secretaria de Reforma do Judiciário: uma experiência de política de justiça para democratização do acesso à justiça no Brasil. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília. Brasília, 2023, 168 fls.

O trabalho destacado resulta de Dissertação de Mestrado apresentada, defendida e aprovada perante a Banca Examinadora assim formada: Professoras Talita Rampin, UnB/FD, Orientadora; Rebecca Lemos, Membra Interna, Universidade de Brasília; Márcia Pellegrini, Membra Externa (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Também participei, como membro suplente, arguidor.

Conforme o resumo, a Dissertação “apresenta os resultados alcançados com o desenvolvimento de pesquisa de mestrado voltada à análise da Secretaria de Reforma do Judiciário, que foi criada em 2003 no primeiro ano de governo do Partido dos Trabalhadores no Brasil, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Vinculada ao Ministério da Justiça, órgão do Poder Executivo, essa Secretaria tinha como atribuição a formulação e a implementação de políticas e medidas voltadas para a modernização, eficiência e democratização da justiça no país. O objetivo geral da pesquisa foi compreender as contribuições da Secretaria para a reforma do judiciário”.

Com uma possibilidade de observadora participante, nas circunstâncias bem indicadas pela Autora, a Dissertação reúne um material bem documentado para favorecer aproximações analíticas diversas, para além daquela por ela oferecida na Dissertação, tanto mais valiosa porque a experiência objeto de estudo foi interrompida com a extinção da Secretaria de Reforma do Judiciário, junto com um período de desmantelamento das estruturas de cidadania, democracia, justiça e direitos por uma governança necropolítica, atualmente com sinais de retomada inclusive com a criação da Secretaria de Acesso à Justiça, cuja direção muito se beneficiará com os resultados do estudo ora apresentado.

Assim que, orientada por um sumário didaticamente analítico, a Dissertação oferece o seguinte conteúdo:

No primeiro capítulo dessa pesquisa, é apresentado o contexto político do surgimento da SRJ e uma introdução da revisão bibliográfica sobre acesso à justiça, além do conceito de políticas públicas, com objetivo de identificar a referência teórica utilizada desta pesquisa, bem como a contextualização do acesso à justiça a partir da Constituição de 1988. Em seguida, é realizado o estudo desde da criação da Secretaria de Reforma do Judiciário, analisando a sua competência, sua estrutura administrativa e a sua atuação até o final do segundo mandato do segundo Governo Lula, no ano de 2010.

O segundo capítulo da pesquisa tem como foco e marco temporal a atuação da Secretaria de Reforma do Judiciário no Governo Dilma Rousseff (2011-2015) até a sua extinção, em fevereiro de 2016. O objetivo aqui é identificar não só a atuação da Secretaria, mas também as políticas de justiça elaboradas, executadas e institucionalizadas por ela, bem como investigar os motivos da sua extinção, além de analisar as mudanças das competências para a Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania.

Tratando do período após a extinção da Secretaria de Reforma do Judiciário, o terceiro capítulo tem como objetivo analisar e identificar a atuação dos órgãos do Ministério da Justiça, que assumiram as suas competências e projetos: Secretaria Nacional de Justiça e Cidadania e a Secretaria Nacional de Justiça (SENAJUS), nos respectivos governos dos ex-presidentes Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022); trata também da secretaria que substituiria a então extinta SRJ, no início do terceiro mandato do presidente Lula, em 2023, a Secretaria de Acesso à Justiça (SAJU), criada no âmbito do Ministério da Justiça, seguindo uma mudança de direcionamento já prevista pelo último secretário da SRJ, e que tem como competência a promoção dos direitos e o acesso à justiça, apresentando sua base normativa, a sua estrutura administrativa e informações sobre a sua atuação da nova Secretaria, a fim de compreender o seu propósito e a sua relação com o legado da extinta Secretaria de Reforma do Judiciário.

 Folgo em me ver apontado entre as referências epistemológicas que formam o marco teórico do estudo, orientado por designar as perspectivas democráticas sobre o acesso à Justiça.

Assim, com outros interlocutores da Autora, de resto todas e especialmente todas presentes na Banca, considero que o modo como estou posto no trabalho condiz bem com os esforços que venho fazendo para dar relevo ao conceito de acesso à justiça para além de sua funcionalidade burocrático institucional e mesmo procedimental.

Assim que me vejo bem inserido na formulação da Autora conforme o recorte que ela faz de minha consideração sobre o tema, que deu ensejo a nota 33 de seu trabalho, até porque me põe em associação com a sua orientadora professora Talita Rampin:

Segundo José Geraldo de Sousa Junior, a compreensão de acesso à justiça deve transcender o acesso ao Judiciário. Trata-se, de acordo com o autor, de uma forma de mediação que possibilita a criação de condições para a emancipação de grupos sociais. Para Talita Rampin,  as teorias da justiça são resultantes de teorias de valores de justiça, resultados de escolhas guiadas por preferências, interesses, esquemas morais e processos culturais. E a alteração ou a concorrência pela mudança do conceito da “justiça” e sobre o acesso a ela é premissa necessária que recai na infraestrutura social. É importante observar, nesse sentido, que qualquer discussão sobre acesso à justiça deve conter o exercício de reflexão crítica acerca da infraestrutura, sob pena de apenas servir para contribuir para a sua manutenção.

A propósito, participando com a professora Talita Rampin de banca recente – apresentada por Verônica Fonseca de Resende – disse eu ali e repito aqui, considerar de muita pertinência o enquadramento do tema sob a perspectiva do alargamento não só funcional e modernizante mas também epistemológico do acesso à Justiça. Percebo que o bom diálogo com autores muito qualificados nesse tema. E que, a partir dessa interlocução na qual me reconheço, tenho que podemos nos entender sobre realizar a promessa democrática da Constituição que era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.

Com sua orientadora tenho discutido muito essa questão, inclusive ao tempo da elaboração de sua tese de doutoramento. Sobre esses temas, além das referências DAS NOTAS 33 E 34, remeto aos livros nos quais travamos uma boa parte desse diálogo: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br; REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br. Sobre essas obras ver a minha recensão em http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/.

Aliás, nessa resenha, abro uma nota de identidade que se estabelece para aferir a coerência e o potencial utópico desse material, está na sua virtualidade, inclusive semântica (CORREIA, Ludmila Cerqueira, ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Exigências Críticas para a Assessoria Jurídica Popular: Contribuições de O Direito Achado na Rua. Coimbra: CesContexto, Debates  n. 19, outubro de 2017), de se instalar como plataforma para um direito emancipatório (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Concepção e Prática do O Direito Achado na Rua: Plataforma para um Direito Emancipatório. Brasília: Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, 6(1), abril/junho, 2017), para o exercício protagonista, crítico e criativo, operando novos e combinados mecanismos políticos e técnicas jurídicas, para o alargamento democrático do sistema de justiça.

Penso que a Dissertação dá bem conta dessa sofisticada tessitura de uma bem imaginada abertura institucional para a expansão do acesso nesses termos alargados. Sou testemunha disso em meus contatos sempre que o acadêmico foi convocado para contribuir com a gestão.

Anoto, por exemplo, para marcar um dos nós dessa tessitura, a construção do Atlas de Acesso à Justiça. Inscrevi no catálogo das matérias que documentam essa experiência, minha participação, juntamente com o então coordenador-geral de modernização da Administração da Justiça da SRJ.

Aqui o registro é para o programa da TV Brasil CENAS DO BRASIL – 23.10.14: O Atlas de Acesso à Justiça reúne informações úteis para contato da população com o Poder Judiciário. A publicação tem como objetivo democratizar a relação e facilitar a vida do cidadão. Sobre o assunto, no Cenas do Brasil conversei com a âncora do Programa, avaliando a iniciativa, conforme – https://www.youtube.com/watch?v=qG8PUC4XtJk.

Assim também e porque especialmente referido – p. 66 – “o espaço instituído pelo CEJUS para articulação de conhecimento e ações relacionadas aos diferentes atores do Sistema de Justiça era o projeto “Diálogos sobre a Justiça”, organizado em três eixos: revista periódica, pesquisas e seminários”. Registro para reforço a minha contribuição – A Cultura de Litígio e o Ensino Jurídico no Brasil – para o número 3, ano 1, setembro/dezembro de 2014, Brasília, de Diálogos sobre Justiça (a professora Talita Rampin, na qualidade de consultora PNUD compôs o Conselho Editorial da publicação).

Aproveito o ensejo dessa arguição e do fato que ela acaba sendo publicada no formato da Coluna Lido para Você que mantenho no Jornal Estado de Direito, um elemento de conhecimento e de utilidade para a pesquisa da Dissertação, que pelas circunstâncias se perdeu e não poderia ser conhecido. Refiro-me exatamente ao processo de institucionalização, no âmbito da Secretaria de Reforma do Judiciário, de um Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça (CEJUS) e, sobretudo, da proposta de Diálogo sobre Justiça, do qual a Revista “Diálogos sobre Justiça” foi a tribuna mais eloqüente, levou ao aprofundamento dessas diretrizes e logrou criar um repositório de estudos muito relevantes que mais evidenciaram a pertinência da formulação de alternatividades.

Com certeza, tendo contribuído para configurar aproximações metodológicas para protocolos de investigações, numa contribuição singular para fortalecer o enfoque empírico de pesquisa, modalidade de investigação a que se faz ainda relutante o campo jurídico, disso deu conta a entrevista que o CEJUS fez comigo e que as circunstâncias de desmonte do setor naquela conjuntura, acabaram por interditar. Por isso aqui, agora, o ensejo para compartilhar a ENTREVISTA, em tudo útil para mais completude à Dissertação:

 1.Qual seu diagnóstico da pesquisa empírica em direito no Brasil? [Há mudanças significativas no interesse dos pesquisadores pelo uso de metodologias empíricas nos últimos anos? Se sim, a que você atribui esse maior interesse?

A criação dos cursos jurídicos no Brasil, no século XIX, em que pese o caráter retórico inscrito no seu modelo de origem, ainda muito colado à ideologia do jusnaturalismo idealista e da reprodução ideologizada do modelo coimbrão que o inspirou, se implantou num tempo epistemológico de mudança paradigmática orientada pelo positivismo cientificista da modernaidade. Assim, o Direito logo se viu inserido em seu contexto de ciência social e fortemente instigado pelo empirismo da abordagem sociologista que foi a expressão científica do jurídico nesse contexto.

Basta ver, nesse aspecto, já o mencionei em outro lugar(Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possibilidades Teóricas, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002), não ser acaso que o movimento contraposto à idéia de sistema que serviu para constituir a ciência jurídica e que se realizou teoricamente no Século XIX, sob a epígrafe de jurisprudência dos conceitos, tenha arrancado, como anota Karl Larenz (Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbekian, Lisboa, 2ª edição, 1969), “não do terreno da filosofia, mas da recentemente surgida ciência empírica da realidade social, isto é, da sociologia”.

Cabe anotar, não obstante o desvio retórico e meramente abstrato da orientação que passou-se a imprimir na formação jurídica, a preocupação empírica presente no contexto da sistematização do ensino superior e do ensino jurídico no Brasil. Não é demais lembrar, também registrei em meu trabalho já mencionado, o Parecer de Rui Barbosa, afinal nunca aprovado em razão da queda do Gabinete em 1882, para a análise do Projeto de Reforma da Educação Superior e Primária no qual se propôs para a Faculdade de Direito, em substituição ao jusnaturalismo metafísico, o estudo da Sociologia: “(…) o princípio do progresso social que Comte enunciou, e que é o determinante de todos os deveres, pelo único meio de verificação que a ciência dispõe: aquele da relação visível das coisas; aquele da observação real dos fatos; aquele da sucessão natural das causas e efeitos. Esta é a base da Sociologia, enquanto o direito natural procura se apoiar na natureza: que a história não descobre em nenhuma época, em nenhuma reunião de criaturas pensantes…; ao direito natural, que é metafísica, nós preferimos a Sociologia”.

Sabe-se que até pelo 1994, com a mais recente reforma do ensino jurídico no Brasil, prevaleceu uma axiomatização retórica do jurídico movido pela ideoligização positivista e suas formas redutoras (conhecimento reduzido à ciência; política reduzida ao estatal e jurídico configurado como exclusivamente legal), infletindo, com as novas diretrizes, para o conhecimento do real pela mediação do empírico, com o retorno aos currículos das matérias sociologia, antropologia e história.

Todavia, aquela preocupação epistemológica de um conhecimento que não se evolasse em nefelibatismo abstrato manteve seu espaço de busca empírica do real, bastando registrar as pesquisas de Victor Nunes Leal (Coronelismo Enxada e Voto), de Cláudio Souto e Solange Souto (e suas pesquisas empíricas desenvolvidas na Universidade Federal de Pernambuco desde os anos 1970, O que é pensar sociologicamente; A explicação Sociológica, entre outras, todas resultado de pesquisas empíricas), de Joaquim Falcão (com seus trabalhos realizados com apoio do Departamento de Pesquisas da Fundação Joaquim Nabuco, de Pernambuco, entre outros Conflito de Direito de Propriedade – Invasões Urbanas; Pesquisa Científica e Direito). Sobre as características empíricas desses estudos, vale consultar o trabalho realizado por João Maurício Adeodato e Luciano Oliveira, a partir de edital do Conselho da Justiça Federal, O estado da arte da pesquisa jurídica e sócio-jurídica no Brasil, editado na Série Pesquisas do CEJ, 4, Brasília: CEJ – Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, 1996, exatamente para demarcar esse percurso.

Quero salientar que o projeto Pensando o Direito, instituído no âmbito da Secretaria de Assuntos Legislativos, do Ministério da Justiça, se insere nessa vertente e contribuiu e contribui para estimular grupos de pesquisa nas universidades e em outros centros de investigação, essa vertente fundamental para o conhecimento do Direito, seu ensino e a formulação de políticas públicas nesse campo.

2.Quais as dificuldades para a internalização da pesquisa empírica como um instrumento mais comum nas análises dos pesquisadores?

Mencionei que toda a questão está inserida num processo dramático de mudança paradigmática. Crise de modelo de conhecimento e de legitimação das racionalidades que o orientam, tal como vêm indicando os intérpretes dessa transição, marcante também no campo do Direito. Remeto aos estudos de Edgar Morin e de Boaventura de Sousa Santos, em geral e de Roberto Lyra Filho, especificamente, no Brasil. As interpelações radicais formuladas por Roberto Lyra Filho, propugnando precisamente o que configurou como O Direito Achado na Rua, estão em nosso horizonte atual de busca de localização, com todas as dificuldades que isso acarreta – teóricas e políticas. Penso aqui em seus textos-manifestos: O Direito que se ensina errado (mostrando o duplo equívoco que a expressão título pretende mostrar: inadequada percepção do objeto de conhecimento e os defeitos pedagógicos que disso derivam, o não ensinar bem o que se apreende mal); Para um direito sem dogmas (contra o fetichismo ideológico do jurídico na modernidade); O que é direito? (para acentuar que o Direito não é norma, antes a “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”; e, com relevo, Pesquisa em QUE Direito?, síntese das preocupações que são lançadas aqui nas questões desta entrevista, na medida em que procura “situar o papel e o trabalho do pesquisador em Direito”, com bem equilibrada articulação entre o teórico e o empírico, de modo a, diz ele, assegurar, valendo-se da metáfora de uma usina hidrelétrica que, na pesquisa, “a correnteza dos fatos sociais – isto é, a práxis jurídica inteira e sem mutilações – forma a energia esclarecedora das idéias, que logo regressam às mesmas águas potentes, estabelecendo a conexão com o fluxo da realidade móvel, sem a qual não há luz, nem se faz avançar o saber”.

Chamo a atenção, dada a preocupação exatamente de confrontar dificuldades e de procurar internalizar a pesquisa empírica como instrumento relevante para o conhecimento do Direito, porém, não sem as tensões a que alude Roberto Lyra Filho, a criação da Rede de Pesquisa Empírica em Direito, que reúne pesquisadores e grupos de pesquisa institucionalizados, tal como a sua denominação indica. Em seu último (IV) encontro nacional realizado em Brasília, na UnB, em setembro deste ano de 2014, todas essas preocupações estiveram presentes e foram abordas em diferentes painéis, como eu disse, não sem tensões e conflitos epistemológicos e técnicos. Participei do primeiro painel, logo após a abertura, com o tema “O direito achado na rua e a antropologia do direito”. Detalhe, o Encontro instalou-se com uma homenagem inscrita na convocatória: Roberto Lyra Filho: Pesquisa em (que) Direito?.

3.Você acredita que projetos como o Pensando ao Direito tem influência direta no incentivo a pesquisa empírica?

Certamente. Além de instalar um campo de fomento formidável, bastando ver a mobilização de grupos de pesquisadores para responder aos editais e, logo, a qualidade dos trabalhos apresentados, sabatinados e publicados no repertório criado pelo projeto. O impacto desse fomento é duplamente constatado. Primeiro, pelo incentivo á formação de grupos de pesquisa, mobilizando competências e gerando formas de integração de diferentes perfis de investigadores: iniciação científica, jovens talentos, bolsistas inscritos em grupos de pesquisa e investigadores seniores, líderes de projetos institucionalizados em diferentes plataformas (por exemplo, Plataforma Lattes de Grupos de Pesquisa, do CNPq); segundo, pela possibilidade, real, de implementação de políticas públicas inscritas nas projeções dos resultados das pesquisas. Cito a minha experiência, que levou à institucionalização de um Observatório da Justiça, numa interessante interinstitucionalidade acadêmico-funcional envolvendo o Ministério da Justiça, um centro internacional de estudos e pesquisas (CES da Universidade de Coimbra) e uma universidade pública (UFMG).

4.Como você descreveria sua experiência com o projeto Pensando o Direito, do Ministério da Justiça [métodos empregados na seleção e no acompanhamento das pesquisas, e.g]

Reporto-me aqui ao que já manifestei na Carta de apresentação da pesquisa, por mim assinada na qualidade de coordenador da pesquisa “Observatório do Judiciário”, volume nº 15/2009, da Série Pensando o Direito, já mencionado. A resposta que pudemos oferecer à convocação do Mistério da Justiça, nesse projeto, que também serve para descrever a minha própria experiência, pode se expressar de duas formas: Em primeiro lugar, identificar dimensões de análise e acompanhamento da Justiça com base na experiência de Observação da Justiça desenvolvida no âmbito do projeto. Em segundo lugar, o ter podido indicar arranjos para institucionalização dessas experiências e de suas lições aprendidas, com a expectativa de vê-las transformadas em atividade permanente. Sinto-me como realizado naquela orientação que Marx atribuiu aos pensadores, de não apenas nos conformarmos com a interpretação do mundo, mas contribuir para transformá-lo.

No trabalho pude exercitar estratégias de abordagem do objeto de estudo, combinar técnicas e instrumentos de pesquisa, incluindo entrevistas, articular teoria e prática e experimentar, com rigor, possibilidades inclusive de “transgressão”, como propõe Boaventura de Sousa Santos, lembrando que a racionalidade não reside num único modo de conhecer, mas na integração e no diálogo entre todos eles.

Mas pude, principalmente, participar de uma experiência riquíssima de construção de um protocolo de pesquisa que levou a concertar aproximações interinstitucionais (UnB/Faculdade de Direito e UFRJ/Faculdade de Direito) e agendas para o diálogo interpessoal, no sentido de colocar em um mesmo projeto, pesquisadores com trajetórias e aquisições muito distintas mas que lograram estabelecer um programa comum e uma carta de princípios para levar a cabo os consensos razoáveis que souberam manter num bem elaborado consenso.

Uma anotação. Na entrevista, conduzida no interesse do CEJUS, há incisiva referência ao projeto Pensando o Direito. Esse projeto foi conduzido e concluído pela Secretaria de Assuntos Legislativos. Mas o projeto nº 15/2009 – Observatório do Judiciário, teve seu protocolo e objetivos concertado pelos dois Secretários Pedro Abramovay (SAL) e Rogério Favreto (SRJ), atualmente desembargador federal. E nesse caso, sob a moderação do ministro Tarso Genro (com quem viajei a Portugal para apresentar seus resultados ao CES – Centro de Estudos Sociais de Coimbra), atendeu todos os marcadores estabelecidos pela SRJ que implementou suas proposições. Essas sobreposições e também o corte estrutural-temporal da pesquisa reduziu a visibilidade desse projeto.

Todavia quero dizer que escrevi sobre ele, conforme http://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/, tendo em causa o texto Observatório do Judiciário, Série Pensando o Direito, UnB/UFRJ, PNUD/Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, nº 15/2009.  Coordenação Acadêmica José Geraldo de Sousa Junior, Fábio de Sá e Silva, Cristiano Paixão e Adriana Andrade Miranda, que pode ser examinado na íntegra em (http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf).

No link acima, logo no cabeçalho que designa a publicação, a edição-síntese do relatório da pesquisa de que trata o volume 15 de 2009, é apresentada por seus coordenadores acadêmicos. Antes, em 2008, em texto mais analítico, esses resultados foram antecipados, conforme o artigo Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça. José Geraldo de Sousa Jr., (Coordenador), representando a qualificada equipe que produziu o trabalho, todos e todas designados na edição do texto (Rev. Jur., Brasília, v. 11, n. 90, Edição Especial, Abr./Mai. 2008 www.planalto gov.br/revistajuridica; file:///Users/JoseGeraldo/Downloads/30-23-PB%20(1).pdf). Além do coordenador, integraram a equipe de pesquisa e nominalmente estão mencionados na edição. Integraram a equipe de pesquisa: Professores Coordenadores: José Geraldo de Sousa Junior, Menelick de Carvalho Netto, Alexandre Bernardino Costa, Alexandre Garrido da Silva, Cristiano Paixão, Fernando Gama Miranda Netto,  José Ribas Vieira, Juliana Neuenschwander Magalhães, Marcus Firmino Santiago, Margarida Maria, Lacombe Camargo, Noel Struchiner. Pesquisadores: Adriana Andrade Miranda, Alexandre Melo Soares, Aline Lisboa Naves Guimarães, Beatriz Cruz, Bistra Stefanova Apostolova, Bruno Borges, Carolina, Martins Pinheiro, Carolina Pereira Tokarski, Daniel augusto Vila-Nova Gomes, Daniel Bartha, Daniel Pitangueiras de Avelino, Daniela Diniz, Denise Gisele de Brito Damasco, Diego Nepomuceno Nardi, Douglas Alencar Rodrigues, Douglas Rocha Pinheiro, Eduardo Gonçalves Rocha, Fabiana Gorenstein, Fabiana Perillo de Farias, Fabio Costa Morais de Sá e Silva, Fernanda Nathalí Carvalho Soares, Flávia Carlet, Gilsely Barbara Barreto Santana, Guilherme Cintra Guimarães, Guilherme Scotti, Jan Yuri Figueiredo de Amorim, João Gabriel Pimentel Lopes, João Paulo Santos, Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, José, Eduardo Elias Romão, Judithi Karine Cavalcanti Santos, Laís Maranhão, Leonardo Barbosa, Liana Lyrio, Lívia Maier, Luciana Ramos, Luisa de Marilac, Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira, Mariana Veras, Marthius Sávio Cavalcante Lobato, Milena Pinheiro Martins, Paulo Henrique Blair de Oliveira, Paulo Rená da Silva Santarém, Paulo Sávio Peixoto Maia, Pedro Mahin, Raissa Roussenq Alves, Raquel Negreiros, Renan Dutra Labrea, Renato Bigliazzi, Ricardo Machado Lourenço Filho, Rosane Freire Lacerda, Saionara Reis, Silvia Regina Pontes Lopes, Soraia da Rosa Mendes, Tahinah Albuquerque Martins, Talitha Selvati Nobre Mendonça, Thiago Gabriel dos Santos, Vanessa Schinke, Vinicius Iglesias, Vítor Miguel Naked de Araújo, Vitor Pinto Chaves, Werlen Lauton de Andrade (p. 1).

A Série, dentro da qual por meio de chamada em edital o protocolo de pesquisa foi estabelecido, remonta a uma conjuntura de forte mobilização democrática dentro do princípio de inserção do Estado e de sua alta burocracia no paradigma de governança participativa, nos marcos da Constituição de 1988, uma condição que desde os acontecimentos de 2016 (afastamento da Presidenta da República), entra em refluxo, num claro processo de desconstitucionalização e de desdemocratização do País.

A Série, portanto, no âmbito do Ministério da Justiça, respondeu a esse protocolo, assim como a institucionalização, na Secretaria de Reforma do Judiciário, sob a lúcida direção de Flávio Caetano (infelizmente extinta já naquela ocasião), da Revista Diálogos sobre Justiça, produzida pelo Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça, da SRJ (tenho um texto publicado no número 3, ano I, setembro-dezembro de 2014, A Cultura de Litígio e o Ensino Jurídico no Brasil, p. 52-62).

Vou às considerações finais da Dissertação, naquilo que mais diretamente indica os pontos com os quais tenho concordância:

A percepção de que o acesso à justiça sempre esteve ligado ao conhecimento dos direitos e deveres de cada cidadão foi outra importante descoberta da SRJ, por meio de diagnósticos e registro de dados, modernização do aparato do sistema judiciário, que possibilitou a criação de cursos, oficinas, reuniões, debates, e agora até mesmo a formação de mediadores por meio de cursos à distância, mudando completamente o cenário, e fazendo com que a realidade brasileira estivesse mais condizente com o que instiui a Constituição de 1988, uma das melhores do mundo.

Em uma democracia, não se faz as reformas necessárias por meio de autoritarismos ou considerando o interesse de alguns que se acham privilegiados, e a equidade que a SRJ sempre promoveu demonstra o seu compromisso com a Constituição, que prevê a inclusão de todos no acesso à justiça também ao dar subsídios aos hipossuficientes, o que foi a marca da atuação da secretaria.

O mais impressionante foi ver as tronsformações serem possíveis por meio de esforços de muitos que acreditam na democracia brasileira precisa dar a devida importância à democratização do acesso à justiça a todas as pessoas, pois só assim se estaremos exercendo a plena liberdade.

Muitos viram a criação da Secretaria de Reforma do Judiciário pelo Poder Executivo como uma forma desse controlar, de certa forma, o exercício do trabalho do Poder Judiciário, o que, pelos balanços, acordos, conversas, que a SRJ promoveu ao longo dos anos de sua existência são suficientes para mostrar que este nunca foi o objetivo da secretaria.

A minha questão então como arguição necessária após o exame da Dissertação é a seguinte:

No trabalho de recensão sobre o que mais chamamos de observação da Justiça que que observação do Judiciário, acabamos por constatar ser possível estabelecer pesquisa com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.

Em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.

Estão esses marcadores inscritos no potencial democrático de uma secretaria de acesso à Justiça, no contexto de tudo que analisou e do marco teórico de seu trabalho – relembro: marco teórico do estudo, orientado por designar as perspectivas democráticas sobre o acesso à Justiça? Estamos os operadores de Direito e os agentes mediadores dos sistemas de justiça e judiciários em condições de compreender e operacionalizar estratégias e instrumentos para realizar uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal?

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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