Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Eu acabara de publicar em minha Coluna O Direito Achado na Rua, no Jornal Brasil Popular, um artigo – https://www.brasilpopular.com/o-stf-e-a-acao-consciente-contra-a-aporofobia-oasco-a-pobreza/ – em comentário à decisão liminar proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, determinando que os estados, o Distrito Federal e os municípios passem a observar, imediatamente e independentemente de adesão formal, as diretrizes do Decreto Federal 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua. A decisão liminar, proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, será submetida a referendo do Plenário.
Na decisão o ministro concedeu prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população de rua, com medidas que respeitem as especificidades dos diferentes grupos familiares e evitem sua separação.
Ele também determinou que estados e municípios efetivem medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes, inclusive com apoio para seus animais. Além disso, devem proibir o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua e o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população.
No artigo avanço em meus comentários, aludindo à repercussão que logo se seguiu à decisão, afirmando, porém, que “essa disposição precisa ser ampliada por todas as esferas federadas, por impulso do protagonismo do Governo Federal, no qual pontua um ministro que tem clareza sobre os limites da ação política numa realidade funcional que opera sob o emperramento do que ele próprio conceitua como racismo estrutural. Amplificado num sistema permeado pelo que se denomina aporofobia, que designa a aversão à pobreza”.
Vali-me de posicionamentos fortes da Comissão Justiça e Paz de Brasília, de militantes da luta pelo reconhecimento da população em situação de rua, do meu caríssimo advogado e jurista popular Jacques Alfonsin, do Padre Júlio Lancellotti e até do Papa Francisco, de cuja homilia retirei parte do título do artigo.
Pena que ao escrever o artigo ainda não me tivesse chegado às mãos, embora já tivesse lido o trabalho acadêmico do qual o livro deriva, e que me serviu para elaborar, a pedido do Autor, um prefácio à obra publicada. Do que trata o prefácio é o que exponho a seguir neste Lido para Você.
O acesso à justiça para a população em situação de rua: perspectivas frente às práticas autoritárias aporofóbicas e a atuação da Defensoria Pública, de Gustavo de Assis Souza, que a Editora Lumen Juris publica, deriva de sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, em 2022, lançada no Repositório de Dissertações e Teses da Universidade de Brasília, com o título Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados numa Concepção Alargada de Acesso à Justiça.
A pesquisa que resultou na publicação “investigou o (in)acesso à justiça para a população em situação de rua. Mais especificamente foi problematizado como (re)pensar o acesso à justiça para essa população, em um contexto de emergência de práticas autoritárias aporofóbicas, e frente aos desafios impostos à Defensoria Pública. Para jogar luz a essa questão, inicialmente, e por meio da pesquisa bibliográfica, investigou-se a imbricação entre acesso à justiça e o princípio da dignidade humana, bem como este último tem sido violado atualmente, por meio das práticas autoritárias aporofóbicas que são gestadas em detrimento aos pobres”.
No primeiro capítulo, o Autor estabelece como o cerne do acesso à justiça (princípio da dignidade da pessoa humana) no campo dogmático e, posteriormente, por meio da literatura interdisciplinar, como esse princípio tem sido violado na contemporaneidade, o que foi denominado de práticas autoritárias aporofóbicas, empreendidas pelo estado e sociedade em face da população, especialmente, pobre; conceito esse criado a partir da literatura no campo da ciência política e filosofia.
No capítulo 2, a análise focaliza em um grupo em específico, a População em Situação de Rua e o seu (in)acesso à justiça, tendo em vista que é uma população pobre ainda mais vulnerável, apresentando desafios semelhantes aos que foram identificados no primeiro capítulo, mas outros tantos que lhe são próprios.
No capítulo 3, a investigação volta-se para a instituição que, muitas vezes, é a primeira porta de acesso à justiça para esses indivíduos em situação de rua, chamada de Defensoria Pública. Cuida-se de examinar desde a missão institucional e organização, bem como suas prerrogativas judiciais e extrajudiciais para defender os grupos invisibilizados tanto por meio da legislação quanto pela literatura específica relativa à instituição.
Por fim, a proposta do Autor, orientada para “uma nova forma de (re)pensar o acesso à justiça para a população em situação de rua, de modo a expandi-lo. Foi identificado a Educação em/para os Direitos Humanos, como o veículo necessário para o estímulo ao surgimento de comportamentos fraternos, de acolhimento do outro e, por conseguinte, como uma arma para o rompimento das práticas autoritárias aporofóbicas. Com uma educação nesses moldes, formal e informal, haverá uma tendência maior do afloramento de políticas públicas plurais, bem como da democratização da justiça, a partir da manifestação de diferentes atores que reverberará diretamente no funcionamento das instituições e, consequentemente, no acesso à justiça dos invisibilizados em situação de rua”.
O livro de Gustavo de Assis Souza avança com muita intensidade temática e compromisso funcional, numa senda que, mesmo institucionalmente, tem procurado orientar a ação da Defensoria Pública para um âmbito mais definido de sua atribuição constitucional, no sentido de envolver a sua tutela de modo estratégico, na defesa dos coletivamente vulnerabilizados, com o alcance político-epistemológico de alargamento do acesso à Justiça.
Essa orientação transparece na ação editorial que resultou, por exemplo, no livro Defensoria Pública e a Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados. (Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, 948 p.
Lançamento primoroso da Editora D’Plácido, este livro, conforme a nota de seus organizadores “aborda temas sensíveis à atuação das defensoras e defensores públicos na seara transindividual, pautando-se pela narrativa doutrinária atrelada a casos práticos relevantes”.
As suas 948 páginas compreendem uma apresentação, a cargo de Maria Tereza Aina Sadek, um prefácio assinado por Boaventura de Sousa Santos uma nota dos organizadores, seguindo-se doze partes. Além desses, 62 autores e co-autores assinam textos, distribuídos nessas doze partes, examinando-se no seu conjunto: 1 – diversos ramos do direito material – liberdades (religiosa, de expressão etc), infância e juventude, idoso, mulher, populações de rua, imigrantes, quilombolas, indígenas, direito à cidade, trabalho, moradia, saúde, pessoas com deficiência, em privação de liberdade, consumidor, meio ambiente etc; 2 – atuação judicial e extrajudicial via projetos de educação em direitos, de mediação, grupos de trabalho, requisições administrativas, recomendações, audiências públicas, TAC e outras formas de resolução consensual de conflitos, acordos de cooperação, atuação em rede, ações civis públicas, mandado de injunção coletivo, HC’s coletivos etc; 3 – Defensoria como parte e também 3ª interveniente via amicus curiae, custos vulnerabilis, custos plebis, amicus communitas, ombudsman (defensor del pueblo) e 4 – concepção das vulnerabilidades e sua organização coletivizada.
Para a apresentadora os artigos que compõem a obra “apresentam teses inovadoras e práticas que demonstram não apenas a preocupação de defensores públicos, professores e operadores do direito com questões relevantes, mas sobretudo evidenciam como suas atuações, em diferentes áreas, têm concretizado direitos, contribuindo para superar situações vividas por vulnerabilizados”.
O livro, conforme o prefácio de Boaventura de Sousa Santos, mostra de modo eloquente como “um conjunto notável de juristas profissionalmente bem preparados e com um sentido extraordinariamente vincado de compromisso com mandato da Constituição, se manteve firme na defesa dos direitos das classes e dos grupos sociais coletivamente vulnerabilizados”.
Com Alberto Carvalho Amaral, Defensor Público em Brasília e como minha colega professora na Universidade de Brasília Talita Tatiana Dias Rampin, contribuímos para a obra com o artigo “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”, p. 803-826.
Na nossa abordagem, colocadas as questões pressupostas, focalizamos dois aspectos destacados para atender o plano da obra, que pede enfoque teórico e também prático: 1- A Defensoria Pública como necessário ator qualificado para o alargamento e a democratização do acesso à justiça; 2 – O projeto “Defensoras e Defensores Populares do Distrito Federal”: ação difusora e conscientizadora sobre direitos humanos, cidadania e ordenamento jurídico
No primeiro aspecto, para nós, o acesso à justiça constitui-se direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada aos 5 de outubro de 1988 – CF/88 e não significa, necessariamente, acesso ao Judiciário. Partimos de uma visão axiológica da expressão “justiça”, que representa uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. Esse tema tem sido pesquisado por juristas e sociólogos, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth , que consideram que o acesso à justiça pode ser encarado como o mais básico dos direitos humanos inseridos no contexto de um sistema jurídico moderno e igualitário, comprometido com a garantia (e não apenas com a proclamação) do direito de todos .
Com o ascenso da luta social e a conquista da CF/88, foram criados ou fortalecidos novos mecanismos de garantia de direitos e redesenhadas institucionalidades que prometiam um potencial democrático, como os conselhos gestores de políticas pública e a Defensoria .
Como uma espécie de síntese histórica entre as estratégias de luta social e a opacidade da institucionalidade de justiça, sobretudo em relação às violações e à agenda política de direitos carregada e instituída na práxis dos movimentos sociais populares, surge no Brasil o que viria a ser reconhecida como a assessoria jurídica e advocacia popular, uma espécie de subcampo político-jurídico no interior da advocacia brasileira, orientado por princípios humanitários, pedagógicos e políticos de compromisso e o diálogo com comunidades e movimentos de base organizados em torno da luta por direitos (como sindicatos, comunidades e movimentos de luta pela terra), e incumbidos de uma tarefa histórica de tradução jurídica da luta política por direitos .
Cuidei de distinguir esse processo em entrevista que concedi ao Boletim DPU Escola Superior Fórum DPU Defensoria Pública e Acesso à Justiça, para por em relevo a emergência de uma agenda relevante de temas estratégicos, nos planos teórico e de aplicação, que logo se fez interpelante para prosseguir em análises que aprofundem a relação entre o sentido institucional-funcional da Defensoria Pública e a questão desafiante do acesso à justiça. Apesar de inicialmente pensados na articulação da Defensoria Pública da União e de suas atribuições específicas, dada a própria temática da entrevista, esses temas são instigantes para a atuação de todas as Defensorias Públicas estaduais e do Distrito Federal, emergindo como vórtices para uma atuação para além dos fixos quadros de processualização formal (papelização) das violações a direitos.
Uma primeira questão para organizar essa agenda se coloca quase intuitivamente: quais seriam os principais desafios institucionais, econômicos e sociais de acesso à justiça?
Uma forte consideração nesse tema e, sobre ele, registros e reflexões que estão contidas em trabalhos nos quais as aproximações desde O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática vem acumulando, sempre pensando um modo alargado de concepção do tema que leve em conta exatamente confrontar e superar esses obstáculos. O pressuposto para tal é apostar na democratização da sociedade e da justiça, abrindo-as à crescente participação da cidadania de modo a reduzir as barreiras econômicas, institucionais e sociais por meio de reconhecimento de sujeitos coletivos e de protagonismos que desindividualizem as demandas, pela afirmação das dimensões políticas que ordenam os conflitos mais agudos em nossa sociedade. Esse é um modo para deslocar a questão dos entraves burocráticos que pedem medidas modernizadoras – novos códigos, mais agentes, novos procedimentos – quando a questão é o questionamento da Justiça a que se tem acesso e o modo democrático de ampliar esse acesso.
Em resumo desse acumulado, o que baliza uma aproximação, que nos caracteriza, é conceber a assessoria jurídica popular como uma estratégia para promover o acesso ao direito e à justiça dos cidadãos, especialmente os subalternizados, na medida em que atua para que estes conheçam seus direitos e não se resignem em relação às suas violações bem como tenham condições para superar os obstáculos econômicos, sociais e culturais a esse acesso. Tomando os pressupostos da assessoria jurídica popular, na perspectiva de O Direito Achado na Rua, trata-se de acentuar a relação de compromisso político com os sujeitos coletivos organizados e movimentos sociais cuja atuação expressa práticas instituintes de direitos, e a combinação de instrumentais pedagógicos, políticos e comunicacionais com a dimensão jurídica. O que significa realizar um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito, para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por libertação e dignidade.
Assim, em tal perspectiva, considerar o tema do acesso à justiça é fazê-lo desde uma certa perspectiva: a compreensão do direito como um instrumento de transformação social; a noção ampliada sobre o direito de acesso à justiça; a defesa da existência de um pluralismo jurídico comunitário-participativo; e a educação popular como abordagem pedagógica para educação jurídica emancipatória .
Critérios como esse reduzem o espaço de negociação, abreviam as possibilidades de ampla defesa e favorecem os mais bem posicionados econômica e culturalmente. Boaventura de Sousa Santos, um autor de referência na obra de Gustavo Souza, notadamente em Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, 3ª edição, 2011, abrindo horizontes para o impulso de se pensar em sentido alargado o acesso à justiça e mais ainda a própria justiça a que se quer acesso, numa mobilização que pôde ser conduzida em resposta a demandas de formulação de política públicas, a partir de convocações do poder público ao pautar esse tema.
Assim é que, respondendo a edital do Ministério da Justiça, sobre elaborar uma concepção de observação do sistema de justiça e judiciário, que chegamos a uma formulação que levasse em conta essa concepção alargada. A propósito, in https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/223, vol 10, n. 90, 2008, o meu texto Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça, representando todo o Coletivo que elaborou a proposta, se traduz num resumo pode ser assim lido: “Este trabalho tem o intuito de mapear a atual situação dos meios de acesso à justiça no Brasil, abordando o modo como as relações Estado-sociedade se fazem presente nas esferas públicas de construção do direito e até que ponto os movimentos sociais são reconhecidos como fonte criadora de direitos. Para tanto, propõe-se uma discussão acerca de temas levantados pela sociologia da pós-modernidade, discussão esta decorrente da ação dos movimentos sociais na dinâmica própria do direito plural por eles fundado. Ao fim, propõem-se mudanças na postura das estruturas jurídicas de ensino, pesquisa e aplicação para que haja um reconhecimento da construção social do direito”.
Aferindo os resultados alcançados com a pesquisa vê-se o quanto foi possível estabelecer diálogo com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
Constatando-se também, o quanto em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.
Voltei a empregar essa expressão ao produzir o prefácio “Uma concepção alargada de acesso e democratização da justiça”, para o livro editado pela Terra de Direitos e pela Articulação Justiça e Direitos Humanos, com a organização de Antonio Escrivão Filho, Darci Frigo. Érica de Lula Medeiros, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Luciana Furquim Pivato, “Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, vol. 2, Curitiba: Terra de Direitos, 2015, procurando corresponder às expectativas postas na publicação sobre “o aumento do interesse das organizações do campo popular pelo papel social do Poder Judiciário (que) aponta para necessidade de construir ações coletivas e estruturantes, que estejam além da litigância reativa e incidam sobre a agenda política de justiça, com uma perspectiva estratégica que vá muito além da busca de soluções para situações concretas e pontuais”.
Por isso que sempre estou retornando a esse tema e sempre que posso volto a ele, como agora neste Prefácio, conforme minha leitura de REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br, no qual, na dupla perspectiva proposta no conjunto da obra ressalto o que em meu texto no segundo trabalho destacado denominei Por uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça. Que Judiciário na Democracia?
Sustentei que realizar a promessa democrática da Constituição era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.
Por isso que, em procedimentos de pesquisa, ou em análises como a que oferece Gustavo, que intentem operar a partir dessa visão de alargamento, pensando o tema do acesso democrático à justiça, não pode descuidar-se da designação cartográfica das experiências que se fazem emergentes. Sob tal perspectiva, diz Boaventura de Sousa Santos, as características das lutas são ampliadas e desenvolvidas de maneira a tornar visível e credível o potencial implícito ou escondido por detrás das acções contra-hegemônicas concretas. Isso corresponde, completa Sousa Santos, a atuar “ao mesmo tempo sobre as possibilidades e sobre as capacidades; a identificar sinais, pistas, ou rastos de possibilidades futuras naquilo que existe” (SANTOS, Boaventura de Sousa, Poderá o direito ser emancipatório?, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003. p. 35).
Voltando à questão síntese desenvolvida na entrevista referida, são valiosas as iniciativas da Defensoria Pública, quando põe em foco como mostra Gustavo, a existência de grupos específicos para os quais a atuação merece destaque. De fato, a atuação da instituição é especialmente relevante quando se trate de grupos vulnerabilizados, dentre os quais, pessoas idosas, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes, mulheres em situação de violência doméstica e familiar, população em situação de rua. Vulnerabilizados porque, em um contexto de profundos processos de desigualdades – sociais, econômicas, culturais, dentre outras -, são sujeitos subalternizados, alvos de relações de opressão e dominação, e para os quais o Estado, assim como a sociedade, deve envidar esforços para fornecer a tutela adequada de direitos e dignidade.
Essa é uma tarefa que ganha alento com o conjunto de análises que obras de referência, agora entre elas a de Gustavo Souza. Para Boaventura de Sousa Santos, “neste momento histórico pleno de incertezas, a Defensoria Pública afirma-se como uma firme voz de esperança, de compromisso com a Constituição, de confiança na convivência democrática e na resolução pacífica e ordeira dos conflitos. Não lhe compete transformar por si só a sociedade brasileira no sentido de a tornar mais justa e menos discriminadora. Mas certamente, dá o seu contributo imprescindível, como bem atesta este livro”.
Matéria do Diário do Centro do Mundo (acesso em 11/12/2022), dá conta de um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, revelando que a população em situação de rua no Brasil cresceu 38% desde 2019, chegando a 281,4 mil pessoas sem-teto, que foram afetadas diretamente pela pandemia de Covid-19. A pesquisa divulgada ainda aponta que em uma década, o aumento foi de 211%, superior ao crescimento da população geral no Brasil, de 11%. (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/populacao-de-rua-no-brasil-cresceu-38-apos-pandemia-diz-ipea/).
Esse é um aspecto de uma realidade que dá a medida das ações que o novo governo, de corte democrático-popular, precisará implementar para atribuir função social ao seu programa. A mobilização para aprovar a chamada PEC da “transição” dá a medida da responsabilidade social que o novo governo assume, depois do caos produzido pela necropolítica da gestão que melancolicamente se encerra.
Foi preciso, nesse descalabro, convocar a institucionalidade instalada noutros âmbitos do Estado, no Legislativo para encaminhar medidas que preservassem a população carente, sobretudo na fase aguda da pandemia, que ainda traz ameaças, sobretudo em defesa da moradia (cf. o artigo da Deputada Natália Bonavides em co-autoria com Lorena Cordeiro: A Defesa da Moradia na Pandemia: uma Análise sobre a Aprovação de Lei que Suspende Despejos Durante a Crise Sanitária da Covid-19, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs) Direitos Humanos e Covid-19 vol. 2 Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022), para aprovar a lei e para derrubar o veto imposto pelo Presidente da República.
Também o Supremo Tribunal Federal, entre outras intervenções de salvaguarda dos direitos fundamentais e da cidadania, especialmente na ADPF 976-DF, que discute Estado de Coisas Inconstitucionais com a População em Situação de Rua. De fato, o Relator ministro Alexandre de Moraes, pediu informações ao presidente da República, aos governadores dos estados e aos prefeitos das capitais sobre a situação da população em situação de rua, para reunir dados para instruir a análise das medidas cautelares formuladas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, em que são pedidas providências para minorar as “condições desumanas de vida” dessas pessoas. O pedido de informações, a serem prestadas no prazo legal de cinco dias, está restrito aos prefeitos de capitais por razões de viabilidade e da celeridade do rito. Em seguida, os autos devem ser remetidos, sucessivamente, à Advocacia-Geral da União (AGU) e à Procuradoria-Geral da República (PGR), para que se manifestem.
Na ADPF, a Rede Sustentabilidade, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) sustentam que há um estado inconstitucional de coisas em relação à população de rua, com violação de diversos preceitos fundamentais, entre eles o da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais à vida, à igualdade, à saúde e à moradia. Pedem a concessão de medida cautelar para determinar que os Executivos federal, estaduais e municipais promovam ações para preservar a saúde e a vida dessa parcela da população e, no mérito, que seja determinada a adoção de providências legislativas, orçamentárias e administrativas a fim de auxiliar as pessoas em condição de vulnerabilidade.
O Ministro Alexandre de Moraes convocou audiênciapública referente à Ação, tendo recepcionado propostas e denúncias para, escritas ou na própriaaudência, contribuírem para o encaminhamento da questão. Ele sugeriu três eixos para balizar as manifestações: 1. Evitar a ida para a situação de rua; 2. Tirar as pessoas em situação de rua e; 3. Respeitar os sujeitos vulnerabilizados e evitar violência.
Entre as contribuições tornadas possíveis com a Audiência, ponho em relevo as que foram levadas a conhecimento na ADPF pela socióloga Paula Regina Gomes. Paula Regina é Vice-Presidenta da Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil.
Além disso, ou antes disso, ela desenvolve uma Dissertação de Mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, sob a orientação da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos). A pesquisa da dissertação, prestes a ser defendida tem o sugestivo título “Rueira Brasília – Educação Popular em Direitos Humanos, Vulnerabilização Social e Luta por Direitos no Contexto da Violência”.
Pedi a Paula um resumo do trabalho que ela prontamente preparou:
Rueira Brasília é uma pesquisa no campo dos direitos humanos orientada pela construção dialogal entre conhecimentos e saberes, que parte da realidade da violência e violação de direitos vivida pela população em situação de rua do Distrito Federal, pelos princípios da educação popular em direitos humanos, voltada para elaboração de propostas de melhorias das políticas públicas articulada com a promoção da participação social. Fundamentada na teoria crítica dos direitos humanos e na perspectiva metodológica da etnometodologia a partir do método etnográfico da técnica da pesquisa de campo, associou a pesquisa-ação à observação participante. Interpretativa e de intervenção social abrangeu dados qualitativos e quantitativos com a preponderância da análise qualitativa. A produção de dados aconteceu entre os anos de 2018 a 2022 com a aplicação de questionários, entrevistas, oficinas de aprendizado colaborativo, registro de denúncias, diários de campo e dados secundários em fontes oficiais, sendo recortada pela pandemia do novo coronavírus norteando uma análise comparativa. Com a sistematização dos dados foi traçado um perfil socioeconômico e da violência vivida pela população em situação de rua, com a categorização dos principais tipos definindo uma matriz de opressão interseccional. A partir daí temos a interpretação de soluções de melhorias construídas em diálogos de mundos fomentando o sujeito de direito no exercício cidadão. Assim, temos as principais contradições entre as políticas públicas concebidas e as praticadas a partir do conceito de violência institucional. As conclusões apontam os resultados da intervenção social com os avanços e desafios para a luta emancipatória por direitos humanos.
Esses fundamentos, juntamente com um profundo conhecimento que a pesquisadora tem da realidade desse tema, ela levou para seu depoimento no STF. Na Audiência ela sustentou estarmos diante do “cenário do aumento da fome, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, com 33 milhões de pessoas que não tem garantido o que comer, representando 14 milhões de novos brasileiros nessa condição. O cenário do aumento da população em situação de rua consta na Nota Técnica 73 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA que aponta um aumento expressivo de 140% da população em situação de rua ao longo do período de setembro de 2012 a março de 2020. Somado ao efeito da invisibilidade social desse segmento no planejamento das políticas públicas por falta de dados quantitativos e quantitativos precisos e qualificados. Cabe reconhecer que as políticas públicas atualmente não estão preparadas para atender as necessidades desse grupo social”. Necessário, pois,
melhorar as políticas públicas para de fato abranger e promover condições efetivas para superar o quadro de violações e ausência de acessos que marcam a realidade da população em situação de rua. Trata-se de uma trajetória histórica de exclusão social e violências apontando para um processo de extermínio social. É de conhecimento notório daqueles que atuam e pesquisam diretamente com a população em situação de rua o cenário cotidiano de extrema violência e violação de direitos humanos que na maioria das vezes não são alcançados pelos instrumentos públicos oficiais devido a um processo de invisibilização social e de falta de mecanismos adequados para a especificidade dessa realidade que nega acessos e direitos. Assim, se faz fundamental a superação das assimetrias sociais garantindo a sua participação direta para mudar esse quadro inconstitucional de coisas qualificando as políticas públicas de forma territorializada.
Em conclusão ela argumentou ser
imprescindível garantir uma política habitacional, com várias tipologias de moradia, que dê conta da complexidade de realidades sociais; uma política de soberania e segurança alimentar que dê condições para superação da fome e da desnutrição; uma política de assistência social que seja transformadora e norteada pelas melhores práticas de direitos humanos, adotando, inclusive renda básica; uma política pública de saúde que seja inclusiva e especializada, ampliando os consultórios na rua e garantindo celeridade para os pedidos de exames e cirurgias, com a construção de novos equipamentos voltados para a saúde mental; uma política pública de educação que garanta condições para o aprendizado; uma política pública de trabalho e renda que promova efetiva inserção no mercado de trabalho; uma política de segurança pública que seja inclusiva e garantidora de direitos humanos dos vulnerabilizados; uma política de direito a cidade que reconheça a condição de exclusão social e não promova a subtração dos poucos pertences daqueles que quase nada tem e que precisam desse pouco que é essencial para garantir da vida. A população em situação de rua representa um segmento social complexo recortado pela diversidade de minorias sociais que trazem o peso da opressão e da discriminação. É preciso que todas as políticas públicas e a atuação do sistema de justiça reconheçam e promovam ações reparatórias diante dos marcadores das diferenças sociais que reverberam as assimetrias sociais através do racismo, do machismo, do elitismo, da opressão contra LGBTQI +, dos idosos, dos jovens e das crianças, das mães e das mulheres em situação de pobreza extrema.
A obra de Gustavo de Assis Souza, se coloca nesse escopo, confiar na disposição de superar a aporofobia, e é nesse sentido, isto é, para vencer esse obstáculo de acesso à Justiça da População em Situação de Rua, que defende “a educação em/para direitos humanos, uma vez que ela tem a potencialidade, inclusive, para remodelar as instituições e estimular o surgimento de comportamentos fraternos para o acolhimento do outro, seja em espaços formais como o sistema de justiça ou mesmo em outros espaços não institucionais, como na família e na vizinhança. Somente com uma educação nesses moldes será possível romper com a cegueira social do senso comum aporofóbico e, por conseguinte, assegurar o acesso à justiça para a PSR”.
Para o Autor, esse o fecho da obra, “uma vez que o acesso à justiça para essa população deve ir além das instituições formais e se expandir para o corpo social, com o aperfeiçoamento e expansão não só da Defensoria Pública, mas em um contexto democrático mais amplo com o compromisso social contínuo para o rompimento das práticas autoritárias aporofóbicas, por parte da sociedade e instituições, utilizando como veículo uma educação em/para direitos humanos”.
Há, sim, no social, é o que afirma Gustavo em seu livro, um engajamento consciente para dar cobro a essa situação e para superá-la. Recentemente, numa ação carregada de simbolismo militante, o padre Júlio Lancellotti, numa ação do Observatório de Aporofobia com apoio da Pastoral do Povo de Rua, conduziu em São Paulo um Ato contra a Aporofobia, para a retirada de pedras da Biblioteca Cassiano Ricardo, “representando um marco da luta contra a aporofobia e a arquitetura hostil”.
Tenho dito (https://www.brasilpopular.com/populacao-em-situacao-de-rua-estado-de-coisas-inconstitucional/) que a marreta do padre Júlio Lancellotti é um símbolo real de atualização da Declaração Universal de Direitos Humanos, nos seus 74 anos de aprovação, tanto que a atenção às populações em situação de rua, já se definiu exigência de prioridade desse tema central na agenda dos direitos humanos, com a aprovação da Lei que recebeu o seu nome (https://www.brasilpopular.com/lei-padre-julio-lancellotti-e-a-proibicao-de-obstaculos-contra-pessoas-em-situacao-de-rua/).
Padre Júlio é um exemplo vivo de ação pastoral social, seguindo o magistério do Papa Francisco. Agora em novembro, por ocasião do XXXIII Domingo do Tempo Comum – 13 de novembro de 2022 (https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20220613-messaggio-vi-giornatamondiale-poveri-2022.html), ele lançou a mensagem para o VI Dia Mundial dos Pobres. Ele fala de duas dimensões da pobreza a que devemos estar atentos, distinguindo: “A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspectivas nem vias de saída. É a miséria que, enquanto constringe à condição de extrema indigência, afeta também a dimensão espiritual, que, apesar de muitas vezes ser transcurada, não é por isso que deixa de existir ou de contar. Quando a única lei passa a ser o cálculo do lucro no fim do dia, então deixa de haver qualquer freio na adoção da lógica da exploração das pessoas: os outros não passam de meios. Deixa de haver salário justo, horário justo de trabalho e criam-se novas formas de escravidão, suportada por pessoas que, sem alternativa, devem aceitar este veneno de injustiça a fim de ganhar o mínimo para comer”.
De outra parte, ao contrário, ele alude a uma outra dimensão da pobreza que requer discernimento político: “A pobreza libertadora[que] é aquela que se nos apresenta como uma opção responsável para alijar da estiva quanto há de supérfluo e apostar no essencial. De facto, pode-se individuar facilmente o sentido de insatisfação que muitos experimentam, porque sentem que lhes falta algo de importante e andam à sua procura como extraviados sem rumo. Desejosos de encontrar o que os possa saciar, precisam de ser encaminhados para os humildes, os frágeis, os pobres para compreenderem finalmente aquilo de que tinham verdadeiramente necessidade. Encontrar os pobres permite acabar com tantas ansiedades e medos inconsistentes, para atracar àquilo que verdadeiramente importa na vida e que ninguém nos pode roubar: o amor verdadeiro e gratuito. Na realidade, os pobres, antes de ser objeto da nossa esmola, são sujeitos que ajudam a libertar-nos das armadilhas da inquietação e da superficialidade”.
Seguindo a ética do Evangelho e de sua mensagem, conforme Francisco, o caminho que nos incumbe e que devemos escolher trilhar, é descobrir a existência duma pobreza que humilha e mata, e a outra pobreza que liberta e nos dá serenidade.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).