Educação Jurídica: da Aderência ao Sistema de Avaliação à Formação por Competências

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Título original – Educação Jurídica: da Aderência ao Sistema de Avaliação à Formação por Competências – uma Experiência de suas Possibilidades de Inovação na Faculdade de Direito da UnB

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Jailson Alves Nogueira. Educação Jurídica: da Aderência ao Sistema de Avaliação à Formação por Competências – uma Experiência de suas Possibilidades de Inovação na Faculdade de Direito da UnB. Tese de doutorado em Direito. Faculdade de Direito/Universidade de Brasília, 2023, 178 fls.

Começo celebrando o candidato/autor e a Banca Examinadora, da qual fui membro interno, constituída pelas professoras e professores Loussia P. Musse Felix (FD/UnB), orientadora; José Garcez Ghirardi (FGV/SP); Rodolfo de Carvalho Cabral (MEC); e Fernanda de Carvalho Lage (FD/UnB). Saúdo a orientadora com quem tenho um bom percurso lado a lado na construção do modelo de diretrizes curriculares e de avaliação dos cursos jurídicos, na OAB (Comissão de Ensino Jurídico), no MEC (Comissão de Especialistas de Área) e na própria UnB (Faculdade de Direito). Saúdo também o professor Ghirardi da FGV/Direito (SP). Fui o relator do projeto de criação do curso na OAB, reconhecido então como um projeto portador de grande novidade. Registro com uma memória pedagógica a apresentação, defesa e debate sobre o projeto pela equipe completa do curso proposto, naquela ocasião presidida pelo ilustre professor Ary Oswaldo Mattos Filho, que foi o primeiro diretor do curso, hoje soba qualificada direção do querido amigo Oscar Vilhena – do sistema financeiro empresarial aos direitos humanos.

Continuei em orgânica relação conceitual com a FGV/Direito, São Paulo, e carrego com apreço duas premiações (menção honrosa) no seu prestigioso Prêmio Esdras de Ensino do Direito que tem por objetivo fortalecer a metodologia de ensino de cursos jurídicos que adotam o protagonismo do aluno como base de todo o processo de aprendizagem, por meio da identificação de experiências semelhantes em outras instituições de ensino de Direito no Brasil. No Banco de Materiais do Prêmio (http://ejurparticipativo.direitosp.fgv.br/material-de-ensino), há um bom descritivo de duas experiências que coordenei: Pesquisa em (qual) direito e Hermenêutica – Sociedade de Debates da Universidade de Brasília, ambas desenvolvidas a partir da disciplina e com a participação de seus monitores e monitoras Pesquisa Jurídica ministrada no primeiro semestre do Curso na Faculdade de Direito da UnB.

A tese, conforme seu resumo, busca compreender:

a formação baseada em competências pode contribuir para o aperfeiçoamento da educação jurídica brasileira, historicamente, alvo de críticas e geradora de “crises” do Direito. No primeiro capítulo, descrevemos o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) e seus três procedimentos de avaliação, bem como seus respectivos indicadores. No segundo capítulo, estudamos as resistências epistemológicas e metodológicas que circundam os cursos de Graduação em Direito, e como esses aspectos tem contribuído para o avanço qualitativo da educação jurídica brasileira. Por fim, no terceiro capítulo, analisamos, a partir da observação participante na disciplina de Pesquisa Jurídica, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), em que medida a formação por competências pode ser desenvolvida nos cursos de graduação em Direito. Para tanto, a nossa pesquisa foi de cunho bibliográfico, com abordagem qualitativa, e do tipo descritiva, exploratória e explicativa, lançando mão do método dialético, dentro de uma visão interdisciplinar dos fenômenos sociojurídicos. A técnica de observação participante foi utilizada no terceiro capítulo da pesquisa, considerando a nossa experiência de assistente docente, dialogando com documentos inerentes à disciplina. Evidenciamos que a formação por competências potencializa a formação jurídica em nível de graduação e contribui para o aperfeiçoamento da educação jurídica, com foco na materialização de competências gerais e específicas do Direito, atualmente pouco desenvolvidas. Dentre as competências fomentadas com os estudantes durante a disciplina de Pesquisa Jurídica, podemos citar: capacidade para identificar, colocar e resolver problemas, capacidade de analisar criticamente e propor soluções a demandas jurídicas e capacidade de raciocinar, argumentar e decidir juridicamente, pesquisa empírica, capacidade de praticar a interdisciplinaridade, respeito à democracia e aos direitos humanos e trabalho em equipe.

O Sumário enuncia o contexto da tese, cuja chave de leitura talvez se encontre no seguinte descritivo: “Apesar de todos esses processos de avaliação da educação superior, sobretudo os focados nos cursos de graduação em Direito, o atual sistema avaliativo tem se mostrado insuficiente para enfrentar as “crises” contemporâneas da educação jurídica. A educação não só sofre com problemas de outrora, como se deparou com novos problemas sociais contemporâneos, não demonstrando capacidade para dar uma resposta a esses problemas, que se expressam por sua natureza técnica e metodológica (formativa)” (p. 14).

Confira-se:

INTRODUÇÃO       

1 O SINAES E A LUTA POR UMA EDUCAÇÃO SUPERIOR DE QUALIDADE        1

1.1 O SINAES e seus três procedimentos: AI, ACG e ENADE     

1.1.1 Avaliação Institucional

1.1.2 Avaliação dos Cursos de Graduação   

1.1.3 Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE

1.2 Indicadores Oficiais        

1.2.1 Conceito Preliminar de Curso – CPC 

1.2.2 Indicador da Diferença entre os Desempenhos Observados e Esperado – IDD        

1.2.3 Índice Geral de Cursos – IGC 

1.2.4 Conceito ENADE        

1.2.5 Selo OAB Recomenda: indicador sui generis 

2 ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: DA TRADIÇÃO À (IN)SUFICIÊNCIA CONTEMPORÂNEA  

2.1 Da crise global as micro crises da educação jurídica     

2.2 Diretrizes Curriculares Nacionais: do momento de ruptura à (nova) esperança de mudança  

2.3 Resistências às mudanças epistemológicas e metodológicas    

3.4 Considerações acerca da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nos cursos de graduação em Direito

3 A FORMAÇÃO POR COMPETÊNCIAS COMO PROPOSTA DE APERFEIÇOAMENTO DA EDUCAÇÃO JURÍDICA: UMA EXPERIÊNCIA NA FD/UNB  

3.1 A formação baseada em competências: a possibilidade para um novo momento de ruptura na educação jurídica brasileira   

3.2 Formação por competência no campo do Direito: uma experiência na FD/UnB         

3.3 Formação por competências nos cursos de graduação em Direito em tempos de educação remota: dificuldades e possibilidades 

CONCLUSÃO         

REFERÊNCIAS       

Na explicitação do Autor, do que trata o núcleo da tese é o que ele propõe nos três capítulos em que ela se desdobra.

 No primeiro capítulo, descreve o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) e seus três procedimentos de avaliação, bem como seus respectivos indicadores. Além do SINAES, sistema oficial de avaliação da educação superior, também descreveremos indicadores não-oficiais de avaliação. No campo do Direito, o indicador não-oficial a ser descrito será o Selo OAB Recomenda.

No segundo capítulo, estuda os aspectos epistemológicos e metodológicos que circundam os cursos de Graduação em Direito, e sua insuficiência para o atual modelo avaliativo. O nosso ponto de partida será a aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, ministrada por Francisco Clementino de San Tiago Dantas, em 1955. Foi nessa aula que a “crise” da educação jurídica começou a vir à tona, chamando a atenção para o anacronismo entre a estruturação pedagógica dos cursos de Direito e os problemas sociais e políticos da época.

No terceiro capítulo, analisa, a partir da observação participante na disciplina de Pesquisa Jurídica, como a formação por competências pode ser desenvolvida nos cursos de graduação em Direito. Dentro desse capítulo intercruza-se as observações feitas na disciplina com categorias teóricas da formação por competências. Além disso, analisa-se as competências adquiridas pelos estudantes durante a disciplina: Capacidade para identificar, colocar e resolver problemas, capacidade de raciocinar, argumentar e decidir juridicamente, Cenários futuros para as profissões jurídicas, tripé universitário, fomento à pesquisa empírica e interdisciplinaridade, capacitação discente em nível de pós-graduação e domínio das novas tecnologias, sobretudo após o período pandêmico, em que houve uma maior utilização das plataformas digitais. Importante destacarmos que as competências destacadas não se esgotam entre si, devendo ser observadas como rol exemplificativos e recorte metodológico. Numa disciplina ou curso baseado em competências, podem emergir capacidades estudantes até então não planejadas ou almejadas pela docente, por isso a importância da flexibilização e abertura pedagógica, aceitando conhecimentos diversos e abordagens múltiplas.

Em Kant, que compreende a razão sob a perspectiva categorial do que ele denomina imperativos (categóricos e hipotéticos), para orientar a ação humana, tem-se que todos os imperativos ordenam, e são fórmulas para exprimir as relações entre as leis objetivas do querer em geral, e a discordância subjetiva da vontade humana. Mas em permeio a esses atributos racionais, um requisito que é a habilidade na escolha dos meios para atingir o maior bem-estar próprio pode-se chamar sagacidade. Algo que, no limite, também se constitui como um imperativo que se expõe sob a forma, até podemos dizer, de uma educação prática para o agir que nos revela seres humano hábeis, prudentes e moralmente orientados.

O catalizador da leitura de Jailson é o discurso de San Tiago Dantas (1955), para marcador da “crise” como ponto de clivagem paradigmática na educação jurídica, contrapondo o discurso pedagógico de confirmação de uma ordem político-jurídica e as tensões de um social que se dá conta da condição alienada e subalterna de sua posição entre uma cultura colonial de favor enquanto se interpela mudanças nessa estrutura (descolonização) para instituir e universalizar direitos. A partir do discurso de San Tiago Dantas Jailson vai adotar o seu posicionamento analítico em relação ao conhecimento do direito, suas formas de difusão e seu lugar instituinte no social e na política.

Se se pudesse encontrar um parâmetro de contemporaneidade para ajustar esse posicionamento em face das interpelações do campo, eu quase poderia indicar, a partir de autores que Jailson adota, que aqui se tem, de certo modo, a advertência feita por Joaquim Falcão, Sérgio Ferraz e José Lamartine Correa em seu relatório sobre a crise do ensino jurídico no Brasil, apresentado à reunião de 1990 do Colégio de Presidentes da OAB, e que motivou a criação da Comissão de Ciência e Ensino Jurídico pela OAB (ato de Marcello Lavénère Machado) e que tive a honra de integrar como membro. Conforme transcrito no primeiro volume da Série Ensino Jurídico OAB: Diagnóstico, Perspectivas e Propostas, a crise do ensino de Direito devia-se “à praga do positivismo que assola o ensino jurídico”.

Claro que, em qualquer acepção, em Jailson ou em minha consideração, a expressão “crise” é tomada sempre em sentido epistemológico, hegelianamente, como tensão de transição co-implicada entre o velho que reluta em morrer e o novo que luta para nascer. Do ponto de vista econômico e até político (em contexto neoliberal), não há que se falar em crise, porque tudo está muito bem, em estoque de artefatos e rentabilidade do negócio da educação.

Participei da banca de qualificação da tese e fiz várias sugestões a Jailson para retomar essa atualização, não só em seu enfoque pedagógico, como em seu enfoque epistemológico. Embora possa considerar que elementos dessas sugestões estão contidos nos enunciados propostos por Jailson, notadamente quanto aos aspectos dos fundamentos, não os divisei explicitamente no texto ou nas referências.

Anoto o livro ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007. Orientei a tese e fiz o prefácio.

Assinalo que o foco das diretrizes da área jurídica, conforme aparece em Fábio, reflete uma visão de crise do Direito e procurava iluminar reflexões sobre suas determinações. Em perspectiva epistemológica esta reflexão articulou elementos: 1) de representação social relativa aos problemas identificados, 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção, 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e o imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. Ao fim e ao cabo, condições para superar a distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro através das quais pudessem transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico. Tratava-se, como se vê, de empreender um trabalho crítico e consciente, apto a afastar o jurista das determinações das ideologias, quebrar a aparente unidade ou homogeneidade da visão de mundo constitutiva de um pensamento jurídico hegemônico produzido por essas ideologias e romper, em suma, com a estrutura do modo abstrato de pensar o direito, inapto para captar a complexidade e as mutações das realidades sociais e políticas.

Este trabalho representou, pode dizer-se, uma espécie de superação do mal-estar de uma cultura jurídica convertida em caleidoscópio de ilusões e de crenças responsáveis pelo estiolamento de modelos e paradigmas de racionalidades fundantes de certeza e segurança, adquiridas ao preço do imobilismo científico e da eliminação do espírito crítico na formação intelectual do jurista e do profissional do Direito. Propunha-se, então, articular o ensino jurídico com a exigência científica de identificação de parâmetros para a legitimidade epistemológica de conceitos permanentemente reelaboráveis e de ampliação crítica para a apreensão de categorias aptas a organizar uma prática de ensino na qual a disponibilidade de artefatos científicos operacionais e de hipóteses relevantes de conhecimento não viessem a funcionar como substitutivos de visões globais acerca dos fenômenos estudados, ao risco de condicionar todo o procedimento, a produção de seus resultados e a própria transmissão dos conhecimentos desse modo gerados.

Nesse ponto, presente também em Jailson, está a advertência feita por Roberto Lyra Filho, para o que ele indicava o direito que se ensina errado. Lembrei por isso, em estudo anterior (Movimentos Sociais e Práticas Instituintes de Direito: Perspectivas para a Pesquisa Sócio-Jurídica no Brasil in OAB Ensino Jurídico – 170 Anos de Cursos Jurídicos no Brasil. Brasília: Comissão de Ensino Jurídico e Conselho Federal da OAB, 1997). Segundo Roberto Lyra Filho, essa acepção “pode entender-se, é claro, em pelo menos dois sentidos: como o ensino do direito em forma errada e como errada concepção do direito que se ensina”. Se o primeiro aspecto “se refere a um vício de metodologia; o segundo à visão incorreta dos conteúdos que se pretende ministrar”, ambos permanecem vinculados, “uma vez que não se pode ensinar bem o direito errado; e o direito, que se entende mal, determina, com essa distinção, os defeitos da pedagogia” (O Direito que se Ensina Errado. Brasília: Editora Obreira, 1980).. Por isso recomendava o mesmo Roberto Lyra Filho a necessidade, tanto no ensino quanto na pesquisa, de se estar atento a que eles visam a uma definição de posicionamento: “o simples recorte do objeto de estudo pressupõe, queira ou não o cientista (o professor ou o estudante), um tipo de ontologia furtiva. Assim é que, por exemplo, quem parte com a persuasão de que o Direito é um sistema de normas estatais, destinadas a garantir a paz social ou a reforçar o interesse e a conveniência da classe dominante, nunca vai reconhecer, no trabalho de campo, um Direito praeter, supra ou contra legem e muito menos descobrir um verdadeiro e próprio Direito dos espoliados e oprimidos. Isto porque, de plano, já deu por ‘não-jurídico’ o que Ehrlich e outros, após ele, denominaram o ‘direito social’” (Pesquisa em que Direito? Brasília: Edições Nair Ltda, 1984). Este mesmo autor pôde, assim, falar em “Direito Achado na Rua”, apreendendo-o “não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento”, onde o Direito se constitui como enunciação dos princípios de uma “legítima organização social da liberdade” (O Que é Direito. Coleção “Primeiros Passos”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1ª edição, 1982).

Nestas condições, o conhecimento do Direito opera exatamente na consciência das interações que toda atividade intelectual e prática constitui historicamente, articulando condições sociais e teóricas (SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Edições Afrontamento, 1ª edição, 1994). O mundo jurídico não pode, com efeito, ser propriamente conhecido, senão, diz Michel Miaille, “em relação a tudo o que permitiu a sua existência e o seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do Direito do seu isolamento, projeta-o no mundo real onde encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social” (Uma Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Livros de Direito Moraes Editores, 1a edição, 1979).

Nos seus antecedentes e nos seus pressupostos, os caminhos percorridos visando à reforma do ensino do Direito no Brasil tiveram como leito as condições sociais e as condições teóricas que sustentam ainda agora o debate acerca da função, do sentido e dos modos de produção do próprio conhecimento, no contexto das múltiplas transições que determinaram e determinam ainda o seu valor para as práticas sociais. Enquanto reflexão sobre as condições de possibilidade da ação humana projetada nessas práticas sociais, este debate remonta à consideração, mesmo quando se cuide de designar o que é aí propriamente jurídico, destacada por Boaventura de Sousa Santos, de que “nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional e é, pois, necessário dialogar com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas” (Um Discurso sobre as Ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1987).

Tratava-se, pois, de abrir uma perspectiva de futuro acerca da função do Direito e do papel do jurista na sociedade, buscando condições para ultrapassar a fase de estagnação burocratizante e medíocre a que chegara o ensino do Direito. Para Álvaro Melo Filho, estas eram as condições para: “a) romper com o positivismo normativista; b) superar a concepção que só é profissional do Direito aquele que exerce atividade forense; c) negar a auto-suficiência disciplinar do Direito; d) superar a concepção de educação como sala de aula; e) formar um profissional com perfil interdisciplinar, teórico, crítico, dogmático e prático” (Inovações no Ensino Jurídico e no Exame de Ordem. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 1996).

Essa perspectiva vai se espraiar em Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação. Construção do projeto didático no ensino jurídico. Inês da Fonseca Pôrto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000.

O livro de Inês da Fonseca Pôrto – que assessorou a Comissão de Ensino Jurídico da OAB em seu período de implantação estatutária – se coloca também como “tarefa e promessa” de “espionamento do real pela imaginação”, capturando ângulos em que ele não se percebe observado e, desde a perspectiva de testemunho (“testemunho da construção do projeto didático-pedagógico na reforma do ensino jurídico”), avalia “o modelo central do ensino jurídico” e indica, na medida em que “a imaginação dê forma à vontade de transformação”, as possibilidades que ele comporta de abrir-se “a novas experiências – não vividas, mas possíveis”, como projeto de futuro.

Configurado a partir dos seus elementos característicos – a descontextualização (negação do pluralismo jurídico), o dogmatismo (exclusão das contradições e preservação dos processos unívocos de seu pensamento constitutivo) e a unidisciplinaridade (exclusividade de um modo de conhecer) – a Autora demonstra o impasse crítico a que chegou o modelo central de ensino jurídico e o esgotamento paradigmático de sua matriz positivista e formalista.

A abordagem de Inês Pôrto, fruto de seu protagonismo no processo, apreende nitidamente o foco de intervenção dos sujeitos nele engajados, principalmente o da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e interpreta, fielmente, a visão de crise do Direito que iluminou as reflexões sobre suas determinações e os elementos nucleares que ela articulou. Esses elementos, a meu ver (Anais da XVI Conferência Nacional da OAB) são, em sua dimensão epistemológica: 1) de representação social relativa aos problemas identificados; 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. É por meio deles que se dá o balizamento para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro, através das quais possam transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico.

Daí o apelo à imaginação como método de interpelação do novo. Luiz Alberto Warat, o primeiro a propor uma didática do imaginário para o ensino jurídico (Manifesto do Surrealismo Jurídico), vale-se de Bachelard para indicar a imaginação como uma forma de interpelação, na medida em que nos propõe que “a possibilidade de pensar e sentir sem censuras, nos revela os segredos da singularidade, o ponto neurológico da diferença: o homem novo, aquele que não tem seus sonhos, seu imaginário censurado pela instituição e que organiza seus afetos sem desejos alugados”.

O trabalho de Inês Pôrto localiza na cartografia dos problemas definidos pela Comisão da OAB, conforme a coletânea de textos por ela coordenados (OAB Ensino Jurídico), a construção de “figuras de futuro” aptas a traduzir as perspectivas paradigmáticas para a edificação desse futuro, o qual não pode configurar-se, eu já o disse, senão sobre a consciência da responsabilidade que tem o ensino jurídico para a constituição das categorias novas apreendidas na leitura atenta da realidade social. Percebidas como demandas ao ensino jurídico, essas categorias constituem um novo imaginário que se nutre, diz Roberto Aguiar (O Imaginário dos Juristas), do diferente, do ousado e da recusa: 1) demandas sociais; 2) demandas de novos sujeitos; 3) demandas tecnológicas; 4) demandas éticas; 5) demandas técnicas; 6) demandas de especialização; 7) demandas de novas formas organizativas do exercício profissional; 8) demandas de efetivação do acesso à justiça; 9) demandas de refundamentação científica e de atualização dos paradigmas.

 A meu ver, livro de Inês da Fonseca Pôrto – que deriva da dissertação que também orientei na UnB – é a mais criativa leitura até agora sobre os caminhos e instrumentos que estruturam a reforma do ensino jurídico sintetizada nas diretrizes curriculares inauguradas na Portaria n. 1886\94, do MEC.

O eixo de sua leitura é a noção de exemplaridade enquanto, diz ela, “instrumento que criou condições para que cada curso jurídico refletisse sobre sua função social (diálogo com a realidade contextual em que se inseria), sobre suas experiências, através de outros cursos (o diálogo pela diferença, através dos referenciais comuns) e sobre as relações que definem o processo de ensino\aprendizagem (diálogo consigo mesmo)”.

Por exemplaridade entenda-se o singular. Contrariamente a uma renitente vocação funcionalista agarrada ao conforto de requisitos de objetividade, o trabalho de Inês sugere o risco do diálogo, o ouvir antes de predicar, a aposta qualitativa na promessa, sem condições a priori, a partir do projeto didático-pedagógico.

Também apresentei a Jailson o trabalho de Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem.  Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021.

Participei de sua banca de doutoramento e acabei fazendo o prefácio da obra. Ali indico uma preocupação relevante nesse campo. Basta ver que apenas no âmbito da OAB, à luz de suas Conferências Nacionais, a primeira realizada em 1958, a XXIV convocada para 2021 mas adiada por causa da pandemia, o tema do ensino jurídico, juntamente com o do acesso à justiça, são os dois recorrentes, em todas as Conferências. Em 1958, com Ruy de Azevedo Sodré, ao lado da preocupação com a “proliferação” dos cursos de direito (não deviam ser mais que 20 em comparação aos mais de 1700 atuais), o zelo para que a advocacia não fosse considerada apenas uma profissão, mas uma função social, um múnus público, de fato constitucionalmente reconhecida como atividade essencial à administração da justiça.

 Penso que reside nessa preocupação o cuidado com que o Autor assenta já na página 11, o exame das questões que traz para seu estudo: “Dessa maneira a pesquisa realizada passou pelo campo: a) do Direito Educacional, no que se refere ao conjunto normativo que orienta o processo de autorização, funcionamento e definição curricular e metodológica dos cursos de Direito, b) pela sociologia jurídica, ao buscar compreender o papel exercido pela entidade corporativa mais representativa das profissões jurídicas no Brasil, a OAB, na educação jurídica brasileira e, c) da Filosofia do Direito, na medida em que toda definição curricular elege um recorte e uma perspectiva vinculados a uma certa forma de concepção do fenômeno jurídico, mesmo que se busque ocultar tal escolha, que, para ser descortinada, depende de um processo analítico de base filosófica. De outro, a análise crítica do ensino jurídico e de suas crises, em grande parte, é realizada por meio de estudos no campo da epistemologia, ou metodologia jurídica, o que reforça a perspectiva de análise filosófica”.

Nessa ordem de consideração acrescentei que, conquanto os sinais já lançados exibam tremendos retrocessos epistemológicos, pedagógicos e políticos, com movimentos de clara intervenção (até aqui contido, com as salvaguardas constitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal, em face a ataques à autonomia das universidades e à liberdade de ensinar), e também em operações hostis à vocação crítica e livre da educação em geral (leis de mordaças, escola sem partido), que já feriram gravemente a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no tocante a fundamentos como flexibilidade curricular, interdisciplinaridade e redução dos elementos reflexivos do manejo pedagógico, é certo que na Revisão (Parecer n. 635/2018), apreende-se um vínculo não rompido como o movimento crítico e plural instaurado em 1994, com a Portaria n. 1886, conferido em 2004, com a Resolução n.9, guardando fidelidade a esses elementos estruturantes de uma orientação curricular, ainda que acessíveis a indicações de mais detida qualificação (conferir, nessa direção, o artigo de Horácio Wanderlei Rodrigues, ainda inédito no momento de redação deste comentário, mas já circulando restritamente, em seu esboço inicial – para depois se integrar ao volume 8 da Coleção Caminhos Metodológicos do Direito, coordenada pelos Professores Fabrício Veiga Costa, Ivan Dias da Motta e Sérgio Henriques Zandona Freitas, Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Direito: Análise do Parecer CNE/ N. 635/2018.

Como se percebe é inevitável uma certa nostalgia presente em minhas leituras do tema em razão do engajamento nessas ações que levaram às grandes modificações no campo do ensino jurídico e no sistema de avaliação da educação superior no Brasil. Incluindo o SINAES, de cuja comissão formuladora participei, representando o MEC, na qualidade de Diretor do Departamento de Política do Ensino Superior do MEC/SESu. E posso dizer que, se na questão do ensino jurídico o enlace do epistemológico com o funcional se fez muito forte – não se ensina bem o que se apreende mal – no campo da avaliação a ênfase acabou por se focar nos imperativos de habilidade, que caracterizam todo o procedimento. Não é pouco, se considerarmos os impactos do paradigma no arranjo do funcional e se nos dermos conta de que o só deslocamento do modelo bancário (Paulo Freire) para o modelo interpelante da pedagogia movida por habilidades e competências já é si, o avanço extraordinário.

Chego a pensar, lendo a tese de Jailson, que a educação centrada nos requisitos de competências e de habilidades, elementos que formam o arcabouço dos sistemas de avaliação da educação superior no Brasil hoje, incluindo naturalmente a formação em Direito, respondem sem o enunciar ao que Kant poderia designar de imperativo de habilidade ou destreza.

Não se trata aqui de simplesmente aludir aos imperativos já definidos por Kant, como imperativos de habilidade ou de destreza, como o que se tem de fazer para alcançar uma finalidade razoável e boa (Fundamentação da Metafísica dos Costumes).

Em Kant, tal como Michel Villey já observara (Leçons D’Histoire de la Philosophie du Droit), de nada valem tais imperativos, ainda que se leve em conta que “todas as ciências têm uma parte prática, que se compõe de problema que estabelecem que uma determinada finalidade é possível”, se na clivagem por ele estabelecida (Le Conflit des Facultés), o ensino jurídico exclui do jurista a discussão de fundo acerca do justo (quid sit ius), objeto de análise do filósofo (na Faculdade de Filosofia), restando-lhe apenas (na Faculdade de Direito), estabelecer se um determinado fato ou ato seja lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico (quid sit iuris).

Convenhamos. Como afirma Jailson nas suas conclusões, “a cultura pedagógica tradicional, que acaba por criar uma resistência à pesquisa e extensão por parte dos cursos de Direito, seja por meio de discurso discente, docente ou até mesmo institucional, também é um fator a ser apontado. Foi somente a partir da década de 1990, com as diretrizes curriculares nacionais que a pesquisa e extensão passaram a ser concebidas como perspectivas formativas essenciais à formação do bacharel em Direito, o que não significa a perda de espaço do ensino. Pelo contrário, o ensino foi incentivado a ser desenvolvido de forma articulada com pesquisa e a extensão, formando o que denominamos de tripé universitário. As Diretrizes curriculares de 2004 e 2018 ratificaram a necessidade de os cursos de Direito fomentarem a pesquisa e extensão, com o objetivo de oferecer outras modalidades pedagógicas além do ensino”.

Não é só isso. Tenho dito que mesmo os mais qualificados estudiosos do campo, mal arranham a crosta que encobre o miolo substantivo do núcleo formador das diretrizes tal como elas foram pensadas, debatidas em auditórios sofisticados e ampliados país a fora, e os experimentos metodológicos ativos realizados com imaginação e ineditismos em muitos belos projetos propostos na conjuntura. Um que de inércia, de indolência e de resistência conteve muito e ainda contêm, o melhor potencial do que se formulou nesses debates: sair do encadeado das disciplinas para expandir a matéria que dá identidade ao projeto acadêmico e de curso; descolonizar os currículos; estimular a autonomia do estudante para seu autor de sua formação abrindo-se ao seu próprio currículo gerado pela sua autônoma e transdisciplinar gestão de atividades complementares que não se confinem ao burocrático de “gincana” de eventos; entender o significado epistemológico da prática e o alcance da teoria convertida em práxis transformadora. 

Por isso diz o Autor, concluindo, com apoio no trabalho de sua orientadora que abriu um horizonte de compreensão para o que representam competências e habilidades (Projeto Tuning America Latina), algo que sequer é alcançado pelas proposições oficiais ou não oficiais do sistema de formação superior no Brasil. Diz Jailson, aliás, cujo esforço classificatório representa um dos mais bem cuidados de divulgação de todos os achados do projeto, “é notório que há resistência às atividades de pesquisa, sobretudo a empírica, e à extensão universitária. A interdisciplinaridade é outra prática não muito concebida nos cursos de graduação em Direito, restringindo à formação discente às categorias dogmáticas e ao direito positivo. Portanto, resta nítido que a resistência epistemológica e metodológica no campo do Direito deve ser superada, sendo urgente adotarmos outras formas de aprendizagem além do ensino, com a pesquisa e extensão fazendo parte da formação dos juristas do Brasil, não só do ponto de vista formal, com previsão em diretrizes curriculares, mas do ponto de vista prático, com projetos sérios desenvolvidos nos cursos de graduação, almejando uma formação sólida, crítica e emancipatória. Diante desse contexto de crises e deficiências formativas nos cursos jurídicos, analisamos, no terceiro capítulo, que a formação estudantil baseada em competências emerge como alternativa para o melhoramento qualitativo dos cursos de graduação em Direito. Os cursos deverão focar seus processos pedagógicos baseado em competências, o que pode possibilitar um momento de ruptura metodológica e epistemológica no campo da educação jurídica, abrindo espaço para fomentar abordagens até então prejudicadas pela perspectiva tradicional”.

Assim que, cumprimentando Orientadora e orientando, devolvo, sobretudo ao doutorando, a questão que fecha o trabalho:

Adotar a formação por competência, abre a possibilidade para “novas propostas pedagógicas capazes de fomentar na capacitação até então não desenvolvidas pela formação tradicional. Não se trata apenas de mudar a metodologia, mas é preciso criar estratégias de enfrentamento às crises jurídicas e formar bacharéis com foco nas demandas sociais contemporâneas, rompendo com o anacronismo que predomina nos cursos de graduação em Direito, com os conteúdos e abordagens deslocadas dos fatos socio-jurídicos”. Quais os limites e possibilidades para vencer esse anacronismo, para ultrapassar o fosso entre projetos e os fatos sócio-jurídicos e que estratégias de enfrentamento às crises jurídicas divisa? Não precisa avançar na completude dessas possibilidades e limites, mas indicar uma síntese enunciativa para questões que possam emergir, para alguma revisitação a experiências não plenamente completadas e para permitir a continuidade de uma travessia sem fim.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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