CINCO POEMAS DE MIGUEL BOUÉRES

[Curadoria de Vital Alves]

1.

O MOLDE SEVERO                                                                                              

Meu pai não se desenovelava do corte de Seo Severo.

Descíamos na Rua das Cajazeiras, ziguezagueávamos

pela São Pantaleão

e batíamos na casa do alfaiate.

Entrávamos, a sua alfaia sempre bem composta.

Papai desempacotava o tecido enfestado, sentia-o entre o polegar e o indicador e entregava-o.

Severo pegava da fita métrica, do lápis e do caderno.

Papai meio torto, o alfaiate desempenava-o.

Bulia-se milimetricamente. Espichava a fita e o tecido, pontilhava. Anotava.

Não podia se mexer. Ereto. Firme. Reto. Duro.  Alta compostura!

Severo desfia duas ou três palavras

e pontua o retorno para daí… A prova.

Quando da provação, meu pai, teso, olha-me de soslaio, sorrir…

Era a vaidade enfiando-se matreiramente estética.

O alfaiate todo severo, só agulhas e alfinetes, alinhava. Ponteava.

Apurador de muitas linhas e pontos, provador de poucos sentimentos.

Mas seu molde, sua moldura… Um colosso!

Severo e benquisto, bem encarreirado… Ei-lo.

Papai alinhadíssimo! Um charme! Clássico!

Severo empenhava-se entregar em dia certo.

Carecia de tempo exato para coser definido.

Papai tinha que voltar para o interior.

Adiantava o desembolso

e deixava a incumbência de buscar o terno.

O eterno terno terno.

Ai de quem esquecesse tal incumbência!

Aquele que rasgasse o ajustado não obteria remendo.

Papai e Severo, os dois compunham-se e enovelavam-se tão bem!

Enfileirados, costurados, jungidos: o modo de um, o molde do outro.

2.

O ADVOGADO E O POETA

o advogado veste terno e eterniza-se em vaidades.

o poeta tira a roupa e mostra tudo sem pudor.

o advogado é cheio de goma, retilíneo e empertigado.

o poeta, um anjo barroco tresloucado.

o advogado exalta Rui Barbosa, o Águia de Haia.

o poeta quebra a corrente e é o Boca do Inferno.

o advogado se aproveita da fragilidade dos outros.

o poeta se solidariza nesses momentos.

o advogado nomeia como sua esposa o Direito.

o poeta escolhe como sua amante a Literatura.

o advogado, com e sem reserva, substabelece poderes.

o poeta desestabelece-os, transformando-os.

o advogado diz-se fiel à esposa e à família.

o poeta se esbalda com mil amantes e se entrega à rua.

o advogado se embriaga em copo de ouro.

o poeta bebe mesmo no gargalo da vida.

o advogado se deita com as normas e regozija-se com as leis.

o poeta subverte-as e manda-as à merda.

o advogado vai ao Supremo encontrar o presidente do Tribunal.

o poeta se indigna e vai ao bordel.

o advogado segue o seu código de ética devendo expor os fatos sem falsear a verdade.

o poeta tem na sua essência a sublevação dos fatos.

o advogado recebe pelos honorários sucumbenciais, convencionados ou arbitrados.

o poeta nada ou quase nada percebe pela graça de sua imaginação.

o advogado recorre a várias instâncias.

o poeta vive o seu instante e não se socorre de nada.

o advogado abraça a causa do réu e faz tudo por sua defesa.

o poeta espia aquilo e deflagra o embuste.

o advogado é solene, educado, generoso.

o poeta, impetuoso, impulsivo e revolto.

o advogado é jasmim e dama da noite.

o poeta, suas correspondências, as flores do mal.

o advogado ganha a lide como Pelé.

o poeta dribla e invade como Garrincha e Maradona.

o advogado é o mundo que aí está.

o poeta, o mundo que deveria ser.

o advogado é ordenamento jurídico, a ordem estabelecida.

o poeta, a desordem – a grande revolução -, a anarquia.

o advogado é o indivíduo, a liberdade provisória.

o poeta é a multidão e a liberdade total.

o advogado é defensor do Estado Democrático de Direito.

o poeta é da vida e da existência sem Estado.

o advogado se utiliza da palavra para defender as suas teses.

o poeta as cria e burila-as para as suas metáforas e antíteses.

o advogado corre por uma causa.

o poeta morre por ela.

afinal, o poeta se nega a estar onde habita o advogado.

a sombra e a fresca deste obliteram a luz e a invenção daquele.

3.

MÁQUINA DE TRICÔ

A Mafalda, de Quino, uma máquina de tricócegas.

Quando vi aquelas vermelhas unhas,

teceu-se a ilustração da lascívia,

lascando o laço da fita ao meio.

Sem dedal, os dedos dardejavam-se

na dança das orgias.

A quimera dela não era a de uma garota prendada

– de corte e costura –

fazedora de tricô.

Ela costurava sussurros, e desejos, e prazeres;

dedilhava-os linha a linha,

ponto a ponto,

num corte e recorte de requebros e ziguezagues.

Arrematava a sua peça

cerzindo-a com a graça de Diana.

Seu mote se assumia sinuoso:

desfilava pelas ruas e estradas,

deslizando a sua sensualidade,

a sua obscenidade.

Entorpecia suas caças com trejeitos e aromas,

com trincheiras e adornos.

Cáustica – ou doce – aliciava caminhoneiros e cavalheiros,                

arrastando-os para a sua alcova,

para a sua cova.

Com os balanços das mãos hipinotizava-os,

com o jogo do corpo,

com a fúria do lábio.

com as piscadelas de um bordado.

Sem pressa, tricotava as suas presas

em sua tecida teia.

Cortava-as em pedacinhos,

decompunha-as em retalhos amantes – de(s)florados.

Luminosa, luxuriosa máquina de tricoito!

Ela, sempre ela,

retomava o rumo de sua estrada.

Um trago, um estrago

a cada esquina.

Ei-la: uma costureira da noite,

iluminando as fanfarras e fantasias de suas tendas.

4.

picos e carreiras

cansei

de ser o LSD de cidades que voam voos voláteis.

cansei

de ser a heroína de decadentes romances.

cansei

de ser o ópio das massas desvalidas.

cansei

de ser o haxixe dos fetiches reichianos.

cansei

de ser o êxtase da felicidade extasiada.

cansei

de ser o absinto de abstratos e substratos seres.

cansei

de ser o crack dos pernas de pau de várzeas.

cansei

de ser a cachaça dos que rechaçam a vida por que pinga.

cansei

de ser o scotch dos que se escoiceiam descortesmente.

cansei

de ser a cocaína dos cacos pós-modernos.

cansei

de ser a droga das drogas dos que se entorpecem.

cansei

de ser essa overdose de palavras ogras.

5.

folha de flandres

gostaria de escrever numa folha de flandres

um poema

que fosse sobre a ilha de san andrés,

ou acerca de meus filhos

alexandre, andré,

ou ainda sobre o sal de andrews,

para sarar a indigestão gráfica.

uma folha que desfolhasse

aos flandres e barrancos

o duro de uma folha imóvel.

folha que não repetisse

a boca torta da solha

solta em mar de palavras.

uma folha de memória,

de fragmentos,

de sonhos,

de imaginação.

folha desamorosa,

existencial,

reflexiva,

de um ser que falha.

folha que olha nos olhos

a imagem de si mesma,

de um espaço

vazio,

transparente,

branco,

vago.

folha

que se enche passo a passo,

que se preenche aço a aço

de escasso ferro.

folha em brasa,

exasperada

de busca,

de conhecimento,

de lembrança:

na caçamba da prefeitura

– em algum tempo perdida –

ou na plataforma do ferryboat

– em algum espaço estendida –

nas águas de são marcos.

folha de sangue.

folha de mim mesmo

a preço de papel de embrulho.

folha que encerre nela

o fole que sopra,

o fumo de molhe,

o forro da foto,

o forró da folia,

quem sabe,

a rolha do vinho.

que inscreva

o suicida,

sem folha bilhete,

pendurado na cumeeira da casa.

o morto enterrado

sem caixão,

sem piedade.

folha obscura,

sem pilhéria,

sem piada.

folha do atroz calor,

do bafo de onça

que veste a voz estridente

e rouca do roncador.

folha, que escarpada,

escarrada,

na sentina,

se desmancha em vermes,

ou em incertos versos.

folha em frangalhos

exposta ao rebite

dos martelos,

das bigornas,

das marretas.

folha estouro,

folha estrondo,

folha despaginada,

esmerada em letras.

minha folha de flandres

circunscrita,

folheada,

pesadamente folhinha,

calendária,

– ou candelária? –

movida

pelos ventos

da escotilha

nos mares da lira.

Minibiografia do poeta

Miguel Luís Fortes Bouéres, nascido em Bequimão – MA, filho de Alcides de Castro Bouéres e Hilda Fortes Bouéres, dos quais recebi profundo afeto, apoio e orientação, a fim de que ainda adolescente mudasse para Brasília onde pudesse ter melhores condições de estudo. Nas décadas de 80 e 90, respectivamente, concluí licenciatura em Letras e bacharelado em Direito, a alcançar, em seguida, a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil. Esses ramos de conhecimentos me capacitaram para as profissões de professor e advogado. Ao mesmo tempo, a literatura fora o meu norte, um aroma que me encantava e embalava as minhas fantasias, que dava sentido à minha vida, sobretudo a poesia, cuja potência projetou-me em um mundo de inevitáveis dicotomias: a realidade e a utopia. 

4 Replies to “CINCO POEMAS DE MIGUEL BOUÉRES”

  1. Excelentes os poemas e as técnicas do poeta Miguel Bouéres, demonstrando criatividade e talento. Leitura leve, agradável e cativante. Parabéns.

  2. Sinto me honrado em ter como amigo uma pessoa com tamanho sensibilidade e destreza com as palavras. Um poeta sensível e de alma generosa que só os amigos que convivem poderão atestar. Obrigado amigo Guelito por ter materializado esse presente a todos nós. Com admiração
    Alencar

  3. Que alegria ler os poemas desse poeta brilhante e professor apaixonado, competente em todas as áreas nas quais atua. Ele diz no poema que “o advogado nomeia como sua esposa o Direito.
    o poeta escolhe como sua amante a Literatura.” E, como professor, flerta com o conhecimento para despertar o desejo do aprender no outro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *