Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Luís de Camões Lima Boaventura. Autodemarcação Territorial Indígena: uma análise da via acionada pelos Munduruku face o abandono das demarcações. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB, 2023, 78 fls.
Com grande satisfação, tendo acompanhado o percurso de construção da dissertação, compartilhei com as professoras e os professores Talita Tatiana Dias Rampin, Orientadora; Bruna Pinotti Garcia, Membra Externa e Antônio Sérgio Escrivão Filho, Membro Interno; na condição de membro interno ao Programa, a apresentação e a defesa do trabalho de Luís de Camões Lima Boaventura.
De que trata a dissertação diz o seu Resumo:
Fruto de intensa mobilização dos movimentos sociais, a Constituição Federal de 1988 trouxe consigo diversos avanços no que tange ao reconhecimento e garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas. No entanto, o que se vem verificando ao longo dos anos subsequentes à promulgação da Carta é um acelerado processo de esvaziamento do projeto constitucional, seja por meio de normas infralegais, seja por meio de interpretação jurisprudencial, as quais vem operando em favor da concentração fundiária privada, ocasionando a espoliação dos povos indígenas. Nessa conjuntura de sucessivas e sistemáticas violações ao direito fundamental dos indígenas aos seus territórios, em que o Estado brasileiro é capturado pelos interesses anti-indígenas, bloqueando as demarcações, eclodem no país manifestações autônomas desses grupos que tornam evidente à sociedade envolvente a essencialidade dos territórios que ocupam. São as autodemarcações, a exemplo da empreendida pelos Munduruku na Terra Indígena Sawré Muybu (Daje Kapap E’Ipi). Apoiando-se neste caso, esta dissertação se propõe a apresentar algumas pistas que apontem para a interpelação do monismo jurídico estatal e a enunciação de direitos a partir dessas ações diretas. Para tanto, aciona-se o pluralismo jurídico, o direito à resistência, o princípio da autodeterminação dos povos e o Direito Achado na Rua. O percurso metodológico incluiu a análise normativa e a análise de conteúdo de documentos relativos ao caso da Terra Indígena Sawré Muybu, notadamente as cartas publicadas pelo povo Munduruku.
Achei ao menos curioso que o seu trabalho não tivesse encontrado ensejo para situar na fundamentação sua própria autoria, e mais ainda coautoria, em temas que tangenciam o escopo de sua abordagem.
Refiro-me ao livro Direito Achado na Rua. Questões Emergentes, revisitações e travessias, volume 5, da Coleção Direito Vivo, editada pela Editora Lumen Juris. O mestrando participou também da organização do volume e contribuiu duplamente para a edição, primeiro com um texto com seus colegas da atividade de criação da obra, Marconi Moura de Lima Burum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Oliveira, autores do ensaio O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709. O texto se centra no exame da “abertura da esfera pública institucional do controle concentrado de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF)”, mas quer fundamentar a autonomia e a capacidade de legitimação, com base em categorias desenvolvidas em O Direito Achado na Rua, para aferir com a 709, o reconhecimento pela Suprema Corte do protagonismo indígena, em face do reconhecimento da “legitimidade ativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) para propor a ação”.
Mas o mestrando foi também, na referida obra coautor, juntamente com Carlos Henrique Naegeli Gondim, Joanderson Gomes de Almeida (Pankararu) e Vercilene Francisco Dias (Kalunga), do ensaio O Território Achado na Aldeia e no Quilombo: a Antítese da Mercantilização Neoliberal, texto no qual se pretendeu “analisar como os direitos territoriais são positivados e moldados, entre avanços e retrocessos, a partir das lutas empreendidas por povos indígenas e quilombolas”.
Não é pouco o que se coloca nesses ensaios e me surpreende que o Autor não se exiba neles em sua dissertação. De fato, essas lutas empreendidas pelos povos tradicionais e originários, vem sendo um processo paradigmático no contemporâneo, em várias narrativas, desde as cosmológicas para pensar com Ailton Krenak e a busca de um futuro ancestral, mas também políticas e, em última análise jurídicas.
A propósito, o enciclopédico trabalho organizado por Clovis Antonio Brighenti e Egon Dionísio Heck – O Movimento Indígena no Brasil. Da tutela ao protagonismo (1974-1988). Foz do Iguaçu: EdUnila, 2021 (file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Downloads/movimento_indigena%20(1).pdf). Pelo recorte não há registro das lutas dos munduruku, mas os relatos são modelares, sobretudo na parte que trata das Assembleias [que] se fizeram ações práticas [e que colocaram] a terra como principal objetivo dos povos indígenas. No conjunto, dizem os organizadores, os textos “reunidos nesta obra podem contribuir para a elucidação de um período (14 anos) histórico fundamental para o Brasil, para os povos indígenas e para a literatura indigenista. Uma obra que narra as primeiras lutas unificadas dos povos indígenas no Brasil no século XX para a conquista das terras, dos direitos, contra a tutela, pela autonomia e autodeterminação”.
Em todo caso, o trabalho é visceral. Com uma Introdução, em primeira pessoa. (Um xará do Autor – Boaventura de Sousa Santos – já havia demonstrado que o mergulho antropológico em realidades encarnadas, interpelam abordagens em primeira pessoa (Sociologia na primeira pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. OAB – Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. Nº 49. São Paulo: Editora Brasiliense, primavera/1988).
Assim que o texto de Camões tem essa intensidade vivencial, mobilizadora, embora nele se inscreva o objetivo e o conteúdo organizados do que se vai expor. Transcrevo sua Introdução:
Meados de setembro de 2014, sou abordado por um grupo de lideranças do povo Munduruku na aldeia Praia do Mangue, município de Itaituba, oeste do estado do Pará. Queriam que eu compartilhasse com eles uma cópia de um estudo técnico produzido pela então Fundação Nacional do Índio (Funai) em que se confirmava a ocupação tradicional desse povo sobre um território, a reivindicada Terra Indígena Daje Kapap Eypi (Sawré Muybu).
Tal estudo, àquela data, não havia sido chancelado pela Presidência da Funai, eis que se publicado inviabilizaria a construção de uma grande usina hidrelétrica no leito do rio Tapajós, ocupado e utilizado pelos Munduruku. Se erguida, a área do reservatório da usina iria inundar parte significativa da terra indígena, o que culminaria na compulsória remoção dos indígenas de seu território, o que é vedado pelo texto constitucional vigente.
Eu detinha posse do aludido estudo dada a condição que àquela época eu exercia. Eu era o Procurador da República que havia ajuizado uma ação civil pública perante a justiça federal requerendo provimento jurisdicional que determinasse à Funai o impulsionamento do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, inaugurado no início dos anos 2000 e já devidamente maduro e instruído para que atos formais de delimitação da área fossem providenciados, o que representaria um reconhecimento formal do Estado acerca da área e garantiria aos indígenas algum grau de segurança jurídica para o pleno exercício da posse sobre o território e usufruto exclusivo sobre os recursos naturais nele existentes.
Quando me foi formulado o pedido de compartilhamento do estudo, perguntei aos indígenas o que pretendiam fazer. A resposta foi: “queremos autodemarcar nosso território. Já que a Funai não faz o trabalho dela, nós faremos o trabalho da Funai”. Passei a eles a cópia pretendida. E naquele exato instante surgiu em mim algumas inquietações: por que não conferir a essa ação direta, a autodemarcação, os mesmos efeitos jurídicos de uma demarcação oficial providenciada pelo Estado? Por que, diante dessa ação direta autônoma dos indígenas, não seria possível, por exemplo, ir ao sistema de justiça requerer o cancelamento do licenciamento da usina?
Somadas a essas interrogações, algo de ordem mais geral muito me incomodava: o Brasil tinha (e ainda tem) uma dívida histórica com os povos indígenas. Centenas de reivindicações de reconhecimento estatal dos territórios tradicionais ocupados por esses povos seguiam (e seguem) paralisados, sobretudo pela ingerência de pressões econômicas diversas interessadas na utilização e abertura das terras indígenas às necessidades do capitalismo. Enquanto essas reivindicações por reconhecimento formal não avançavam (e não avançam) os povos indígenas suportam diversos tipos de violações, seja negação de implementação de políticas públicas específicas a terras indígenas demarcadas, sejam invasões em busca dos recursos naturais, seja invisibilização em licenciamentos de projetos de infraestrutura, como no caso Munduruku.
A não demarcação dos territórios indígenas é uma omissão deliberada do Estado brasileiro. De outro lado, esse mesmo Estado, violador desse direito com assento constitucional, detém, em tese, o monopólio de dizer o que é ou o que não é terra indígena. Eu pensava: era preciso superar essa encruzilhada, os povos indígenas não poderiam seguir reféns da (má) vontade do Estado.
Durante cinco anos após esse episódio narrado essas inquietações me acompanharam. E ainda me acompanham. A pesquisa que me propus a desenvolver e ora manifestada nesta dissertação foi mobilizada pela necessidade de algum aplacamento dessas inquietações. Foi então que resolvi concorrer, em 2019, ao processo seletivo de Mestrado na Universidade de Brasília. Eu não visualizava instituição superior de ensino mais oportuna para essa tentativa. Afinal, é na UnB que se concebeu e se discute o Direito Achado na Rua, a corrente de pensamento crítico acerca do Direito que havia me fascinado na graduação, no início dos anos 2000. Identificar em sujeitos coletivos e nos movimentos sociais a capacidade de instituir novos direitos era uma das chaves que eu precisava mobilizar para mitigar essas interrogações científicas surgidas da prática verificada a partir da minha atuação profissional.
Inicialmente, quando da apresentação do projeto de pesquisa no processo seletivo, vislumbrava uma pesquisa repleta de trabalhos de campo, com entrevistas a agentes do sistema de justiça e com lideranças indígenas, especialmente do povo Munduruku e de outros povos que também empreenderam autodemarcações em outros lugares do país. No entanto, logo no início do curso fomos atravessados pela pandemia do coronavírus, que impediu, por exemplo, o ingresso de pesquisadores nas terras indígenas. Além desse fato, no meio do curso outra surpresa, essa feliz, apesar de extremamente demandante. Nasceu meu segundo filho, o que fez com as noites passassem a ser em claro e os dias voltados aos cuidados com um pequeno ser. Por óbvio, o tempo dedicado à pesquisa restava diminuído. Era preciso fazer escolhas. Eu não teria mais tempo e condições para sucessivas idas a campo. Lembrei das cartas que o povo Munduruku publicou nas diversas fases da autodemarcação que empreendeu. Um valioso material de análise.
Junto às cartas, eu tinha à disposição da pesquisa a condição de ter sido espectador privilegiado dessa empreitada Munduruku. Estive ao lado deles nas batalhas jurídicas travadas junto ao sistema de justiça e demais instâncias estatais. Alguns muitos documentos oficiais que obtive pela função que exercia também foram analisados. Além disso, a análise normativa, jurisprudencial e de fontes bibliográficas me permitiram formular as reflexões que constam desta dissertação.
O trabalho está estruturado em três capítulos, os quais, em larga medida, privilegiam a empiria, a prática social verificada e os acontecimentos deflagrados sobretudo pelos indígenas mas também pelo Estado.
Abro a dissertação, com o primeiro capítulo, dedicando-me a formular considerações gerais sobre o quadro de violações sistemáticas que impactam os direitos territoriais indígenas no país.
Elenco medidas (normativas e judiciais) que juntas alteraram substancialmente o marco legal da demarcação de terras indígenas, esvaziando o projeto constitucional. O intuito é evidenciar que o reconhecimento estatal das terras indígenas no Brasil se tornou, ao longo dos anos pós-Constituição de 1988, um dever quase em desuso. Neste primeiro capítulo não analisei em pormenores o caso envolvendo os Munduruku. Fiz essa opção na tentativa de mostrar que este caso em específico se insere em um contexto geral em que o Estado brasileiro se estruturou para fracassar o dever de demarcar e proteger os territórios indígenas.
No segundo capítulo lanço luzes sobre algumas minúcias envolvendo o caso do povo Munduruku, que, nesse contexto de paralisação das demarcações e avanço da apropriação privada dos territórios indígenas no Brasil, situou-se em meio a um conflito envolvendo diversos atores e fatores de pressão sobre um de seus territórios, ainda não demarcado. Entre os agentes pressionadores, especial destaque para uma usina hidrelétrica que estava projetada para ser construída na bacia hidrográfica do rio Tapajós.
No terceiro capítulo mobilizo as cartas publicadas pelos Munduruku para, em cotejo com o referencial teórico crítico, apresentar possíveis vias de interpretação que anunciem a autodermacação territorial indígena como uma prática social capaz de enunciar direitos e resgatar a autonomia usurpada dos povos indígenas brasileiros ao longo dos séculos de opressão desde a colonização. Aciono, para tanto, o pluralismo jurídico e categorias analíticas correlatas, como a interlegalidade e a consciência jurídica. Interpelo, ainda, o direito à autodeterminação, o direito de resistência e o Direito Achado na Rua.
Espero ter conseguido apresentar reflexões oportunas e que de algum modo sirvam de subsídio argumentativo para a defesa dos direitos povos indígenas, que é o que de fato me impulsiona.
Não há como tergiversar da sofrência das palavras, no contexto doloroso que revela a ação etnocida e genocida que se abate sobre os povos indígenas. A expressão mais dramática do que se constituiu a gestão neoliberal necropolítica no Brasil nos últimos quatro anos é a mortandade do povo Yanomami, por meio de muitas formas de ações violentas, entre elas, a subnutrição trazida com a fome causada pela omissão governamental na execução de políticas de proteção e de facilitação da invasão e afetação de seus territórios de existência pela exploração desenfreada, sobretudo de garimpeiros.
Tratei desse tema, com um nó na garganta, em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/626073-pode-se-falar-de-crime-de-genocidio-no-quadro-de-mortandade-atual-yanomami-em-roraima, para concluir, depois da ocorrência do massacre de Haximu (1993), estarmos de novo, contra os mesmos Yanomami, na condição de sim, poder-se e deve-se falar de crime de genocídio no quadro de mortandade atual Yanomami em Roraima. Uma ação concebida, projetada e executada para produzir a mais letal forma de aculturação que se caracteriza pela “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso (…) como [entre outros atos] matar membros do grupo”. Uma operação forrada pela narrativa empreendedora e subsidiada por agentes públicos, para produzir também um etnocídio justificado por um outro conceito de desenvolvimento, que produziu em quatro anos uma devastação tal, em contraste com um milênio de modo de existência, de bem viver e de projetar, como diz Krenak, um futuro ancestral, para uma humanidade enfim renaturalizada, que souve preservar humanidade e natureza.
Portanto, são muito importantes trabalhos como esse que nos apresenta Luís de Camões Boaventura. Mostrar como e oferecer elementos sociais e teóricos que dêem fundamento e legitimem as ações protagonistas dos povos indígenas para afirmarem seus direitos inscritos em suas tradições, uso sociais e modos de existir.
No Maranhão, povos indígenas em retomada lutam para que o Estado reconheça seus direitos e garanta a demarcação de seus territórios (https://cimi.org.br/2022/04/retomada-indigena-maranhao/ , acesso em 14/02/2023). É o que mostra matéria de Jesica Carvalho, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Maranhão:
No Maranhão, os povos Akroá-Gamella, Tremembé de Raposa, Tremembé de Engenho, Anapuru Muypurá, Kari’u Kariri e Krenyê estão em busca de reconhecimento por parte do Estado. “Os Krenyê fizeram o primeiro processo de retomada e hoje estão já em seu território. A luta desses povos tem iluminado outros povos a romperem esse silenciamento”, aponta Gilderlan Rodrigues, da coordenação colegiada do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Maranhão.
A retomada é um processo de luta dos povos indígenas por suas terras, cuja ocupação era originária. Para muitos povos, esse processo está relacionado à reafirmação de identidades étnicas que foram negadas devido à pressão e à violência do Estado e da colonização. Neste movimento, são muitas as dificuldades enfrentadas por povos em retomada, como o descaso do poder público e o preconceito da sociedade.
O processo de retomada vem ocorrendo em diversas partes do Brasil. De acordo om Rosa Tremembé, esta é uma longa jornada iniciada a partir da promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. “A partir daí nós buscamos a garantia desses direitos, nos apresentando diante da sociedade, para que nós pudéssemos, enfim, ser visibilizados”, ressalta Rosa Tremembé.
Os indígenas em retomada, bem como indígenas com territórios já demarcados, vêm enfrentando diversas batalhas para garantir o seu espaço de existência. Projetos de Lei (PLs) como o 191/2020, que permite a mineração e a construção de hidrelétricas em terras indígenas, e o PL 490/2007, que limita as demarcações de terras, são iniciativas que acirram ataques contra os direitos dos povos indígenas.
A articulação entre os povos vem somando forças às lutas enfrentadas pelos indígenas, como por exemplo a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais no Maranhão, que fortalece a organização dos povos na busca por seus direitos.
Também no plano acadêmico o protagonismo indígena (e quilombola) está sendo tema de estudos na mesma linha de entendimento que confirma o ponto de vista de Luís de Camões Boaventura.
Anoto, pela proximidade e pelo compartilhamento de posições comuns, Chaves, Carlos Eduardo Lemos. O Direito de Retomada de terras tradicionalmente ocupadas e a tese do marco temporal [manuscrito] / Carlos Eduardo Lemos Chaves. – 2022. 318 f. Orientador: Prof. Dr. José do Carmo Alves Siqueira. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Direito (FD), Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário, Goiânia, 2022.
O estudo afirma a “existência de um Direito de Retomada fundamentado na práxis constitucional desses grupos em defesa dos direitos constitucionais fundamentais positivados e reconhecendo que as suas sociedades se constituem como originárias a partir do seu nascimento e, cujos direitos, sobretudo ao território, se transmitem através das gerações, com fundamento na jusdiversidade. Partindo de uma compreensão de Justiça e de Direito não como entidades abstratas, mas imersas em um contexto social, cultural e histórico, que reflete as relações hierárquicas de poder, o caráter interdisciplinar da pesquisa se utiliza referenciais da Antropologia, da História, Ciência Política e da Sociologia, além do próprio Direito, para traçar o perfil racista e excludente da estrutura fundiária brasileira”.
Recebi de Renata Carolina Corrêa Vieira, minha ex-orientanda no mestrado, atualmente advogada do Instituto Socioambiental, com atuação em São Gabriel da Cachoeira, para assessorar o projeto Rio Negro, junto a FOIRN (Federação dos Povos Indígenas do Rio Negro), uma bem documentada matéria sobre esse protagonismo indígena que ganha foro de grande novidade. Trago aqui o testemunho de Renata porque Camões lhe presta homenagem na abertura de seu trabalho, com efusivo agradecimento.
Trata-se de matéria de Ana Amélia Hamdan – Jornalista do ISA – https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/com-novo-protocolo-de-consulta-povos-do-rio-negro-protegem-seus?utm_medium=email&utm_source=transactional&utm_campaign=manchetes%40socioambiental.org – , dando conta de que com novo protocolo de consulta, povos do Rio Negro protegem seus territórios e celebram diversidade. Documentos indicarão como os 23 povos que habitam a região querem ser consultados quando algum projeto impactar suas vidas:
Os povos do Rio Negro escolheram ser consultados em suas comunidades, com respeito às suas línguas. A consulta deve ser feita considerando os calendários tradicionais e épocas das roças e festas, bem como a forma de organização política do território. Os conhecedores indígenas, os Kumuã – como os pajés são chamados na região – também devem ser consultados em determinadas regiões. Atualmente, as pressões e ameaças sobre os territórios indígenas na região vêm principalmente do garimpo ilegal, do turismo ilegal e do narcotráfico.
Diálogos e processos
A construção do Protocolo de Consulta dos Povos Indígenas do Rio Negro demandou grande esforço para envolver 750 comunidades e sítios em três municípios, São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, no Amazonas.
Esse processo foi iniciado em 2019, porém foi suspenso devido à pandemia de Covid-19. Em 2022, foram realizadas assembleias regionais em todas as coordenadorias, com oficinas sobre o direito à consulta prévia, a importância do protocolo de consulta e a metodologia utilizada para a construção dos documentos.
Os debates também envolveram a participação e suporte técnico de advogadas e advogados do Instituto Socioambiental (ISA), Observatório de Protocolos Comunitários e Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
“Houve uma grande mobilização na Assembleia Geral para validar e consolidar esse processo dos protocolos regionais, já estabelecidos, e [também] o protocolo geral”, diz Marivelton Baré. Ao menos 17 povos participaram deste momento, entre eles os Baré, Baniwa, Tukano, Yanomami, Desano e Tariano. Marivelton compara o processo de construção do Protocolo de Consulta a um ajuri ou Wayuri, que, na língua indígena nheengatu, significa “trabalho conjunto”.
Com Renata, aliás, escrevemos para o Le Monde Diplomatique um texto que conforta o argumento de Camões no sentido que o que desaba sobre os povos indígenas e quilombolas é o rescaldo da quebra dos pilares que sustentam o céu mitológico da oralitura indígena, numa rendição bem remunerada ao interesse neoliberal inscrito nas ações e estratégias do agronegócio (https://diplomatique.org.br/a-funcao-social-da-propriedade-pedra-angular-da-constituicao-cidada/) :
Compulsando algumas agendas que conformam o tema geral do direito à terra e à reforma agrária, notadamente desde a conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático, que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff e, com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e, logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da função social da propriedade compõe essa agenda.
Um dos mais recentes ataques tem dupla face. A primeira, bruta e cruenta na linha do coronelismo que baliza o processo oligárquico, que caracteriza a nossa formação econômica, social e política: a criminalização da reivindicação social (com a pretensão de tipificar as formas de luta no elenco do crime de terrorismo) e a volta legal ao armamentismo que equipa as milícias urbanas e rurais a serviço a propriedade e do latifúndio.
A outra face, mais sutil, mas não menos instrumental é a do disfarce legislativo, embutido na estratégia de desconstitucionalização em curso no país. Nos referimos à Proposta de Emenda à Constituição, subscrita pelo Senador Flávio Bolsonaro, com assinaturas de apoio de conhecidos membros da bancada ruralista, que tem por objetivo “alterar os artigos 182 e 186 da Magna Carta de 1988 para definir de forma mais precisa a função social da propriedade urbana e rural e os casos de desapropriação pelo seu descumprimento”.
A justificativa embora tente – não disfarça – o objetivo de inverter o fundamento constitucional que preserva direitos fundamentais transsubjetivos porque principiológicos, já que salvaguardam valores civilizatórios: meio ambiente, autonomia do trabalho, licitude da atividade, direitos humanos, produção social, para facilitar o ganho privado da apropriação egoísta, que a Constituição – projeto avançado de sociedade – procurou superar.
Ainda bem que a proposta, escondendo o corpo do gato com uma redação aveludada, deixou-lhe o rabo de fora: “como a relativização do direito à propriedade privada deve ser feita com cautela a fim de evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação pelo Poder Público nos processos de desapropriação fundamentados na simples justificativa de se estar agindo em atenção ao interesse social, apresentamos essa Proposta de Emenda Constitucional. A intenção é diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças.
A dissertação de Luís de Camões Boaventura forma a frente jurídica e judicial que sustenta a precedência de direitos pé-legislativos e pré-estatais, portanto pré-modernos, dos povos indígenas e tribais. Aqui chamo a atenção para a tese jurídica (e não a antropológica de Luiz Henrique Eloy Amado – Eloy Terena), que tem por objeto o direito produzido pelo Estado para os povos indígenas, ou seja, um direito imposto, construído e aplicado sem a participação dos povos originários. Para analisar tal direito Eloy elegeu três fatores determinantes que devem ser levados em consideração na elaboração daquilo que estamos denominando de teoria do direito indigenista, quais sejam: a) a política indigenista brasileira analisada em suas várias conjunturas históricas, desde o Brasil colonial aos dias atuais; b) o contexto político-econômico em que as normas jurídicas foram produzidas; e, c) a análise situacional dos povos indígenas consideradas em sua totalidade, ou seja, não como povos estanques na história e isolados do mundo, mas como agentes políticos imersos e diretamente afetados por estruturas do sistema-mundo. O objetivo é apresentar um produto do somatório de experiências e reflexões forjadas na prática da advocacia indígena. Para tanto a teoria que se pretende ofertar terá como base a experiência da atuação judicial de defesa de comunidades indígenas, a partir da experiência do Departamento Jurídico da APIB e COIAB, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e instâncias internacionais de direitos humanos. O método adotado é o materialismo histórico dialético para entender como as estruturas econômicas e políticas impactam os territórios indígenas e a produção de um direito imposto. Ao fim, busca-se oferecer uma leitura crítica de um direito que, mesmo sendo produzido para servir ao interesse do capital, tem sido ocupado pelos povos indígenas e manejados numa fricção jurídica intercultural (cf. meu Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/).
Chamo a atenção para essa tese porque nela, assim como em Camões, são trabalhadas as categorias sujeito coletivo de direito, pluralismo jurídico e O Direito Achado na Rua. Categorias, aliás, que o ministro Fachin, no TSE (segundo semestre de 2022, por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco) arguiu para salvaguardar sistemicamente direitos indígenas em face de direitos estatais legais, eventualmente irredutíveis, por fatores sistêmicos inscritos em pluralismos centrados em territorialidades e modos de existir e reger-se, constituindo titularidades de sujeitos que não se dissolvam numa subjetividade “universal”, configurando a perspectiva intersistêmica de direitos plurais em achados da mesma procedência teórica estabelecidos por Camões, todavia estritamente indicados em Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), que escrevi com Antonio Escrivão Filho.
Penso que esse modo de inferir o jurídico por meio de unidades de análise que estão no social mas que não se enquadram no legal, estão presentes, a propósito da dissertação de Camões, no voto que o ministro Fachin, relator, já lançou no Recurso Extraordinário 1.017.365 de Santa Catarina, prevista a sistemática de repercussão geral. Acho que Camões deveria dar alguma consideração a esse voto, no interesse de seu argumento.
Com efeito, do voto, ponho em relevo a parte relativa ao que o Ministro denomina Natureza jurídica da demarcação. Diz ele: “Repisando o caput do artigo 231 do texto constitucional, “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Portanto, e em se considerando que, nos termos do artigo 20, XI da Constituição, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são de domínio da União, trata-se de procedimento administrativo da União, a identificar essas terras e demarcá-las no interesse das comunidades indígenas que ocupam de modo tradicional essas áreas”.
Deixando de lado a referências normativas, vou ao ponto, tal como posto no voto do Ministro:
No entanto, como se depreende do próprio texto constitucional, os direitos territoriais originários dos índios são reconhecidos, portanto, preexistem à promulgação da Constituição.
Logo, e como bem explicita o Estatuto do Índio, em disposição consonante com o texto constitucional, a demarcação não constitui a terra indígena, mas apenas declara que a área é de ocupação pelo modo de viver indígena:
“Art. 25. O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República.”
Como bem ressalta a doutrina: “O procedimento demarcatório tem natureza meramente declaratória, pois o que se busca com ele é apenas a delimitação da área já pertencente e aos povos indígenas, em razão dos direitos que decorrem da ocupação tradicional. O reconhecimento da propriedade, em caráter originário, é de viés constitucional, conforme estabelecido no muitas vezes citado art. 231 da Constituição.” (VITORELLI, Edilson. Estatuto do Índio: Lei 6.001/1973. 4.ed. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 177-178).
Para concluir:
Logo, a posse permanente das terras de ocupação tradicional indígena independe da conclusão ou mesmo da realização da demarcação administrativa dessas terras, é direito originário das comunidades indígenas, sendo apenas reconhecimento, mas não constituído pelo ordenamento jurídico.
A natureza jurídica do procedimento demarcatório é meramente declaratória, consiste na exteriorização da propriedade da União, vinculada e afetada à específica função de servir de habitat para a etnia que a ocupe tradicionalmente. É atividade do Poder Executivo, desempenhada por diversos órgãos, conforme o procedimento acima demonstrado, mas que não cria terra indígena, apenas reconhece aquelas que já são, por direito originário, de posse daquela comunidade.
Arrolando toda a jurisprudência do STF que conforta o seu ponto, interessa o arremate:
A homologação final do procedimento, realizada pelo Presidente da República nos termos do artigo 5º do Decreto nº 1.775/1996, presta-se a atestar o devido cumprimento ao disposto no artigo 231 e à legislação de regência. Por se tratar de procedimento administrativo que reconhece o exercício de um direito fundamental, não é possível que razões de conveniência e oportunidade sejam alegados para deixar de se reconhecer a tradicionalidade da ocupação indígena; logo, apenas o descumprimento do disposto na norma constitucional pode levar à recusa em homologar a demarcação proposta pela FUNAI e reconhecida como legítima pelo Ministro da Justiça, desde que de forma fundamentada.
Reconheço a procedência do mal-estar de Camões sobre os principais registros notadamente do STF relativamente ao reconhecimento da legitimidade das pretensões indígenas, principalmente tendo como paradigma a incidência decisória na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Entretanto, vejo que a sua leitura comporta a possibilidade de “alternativas subversivas indígenas” para “emancipar coletivos historicamente oprimidos”. E gosto de pensar que há confiança política e epistemológica no referencial teórico e prático de O Direito Achado na Rua, para realizar essas alternativas, assentadas nas posições de “povos que sabem e decidem resistir”, qual tamanduá, tal como metaforicamente aludem os Munduruku, na 1ª carta de autodemarcação de seu território.
Assim, na segunda e na terceira parte da dissertação a narrativa ganha um colorido que a aproxima dos mais belos ensaios antropológicos que inauguraram a antropologia jurídica de Malinowski a Clastres.
Vou às Considerações Finais, me pondo de acordo com Camões no que esse constata:
Assim, é preciso que os diversos sistemas jurídicos sejam interpretados em nível de complementariedade, apoiando-se em uma abordagem histórica que analise as estruturas de poder e considere as transformações sociais. Nesse sentido, os povos indígenas têm demonstrado uma notável habilidade de ressignificarem as instâncias e determinações administrativas e judiciais impostas pelo Estado, fazendo uso de diversos recursos e estratégias. Com isso, estão atualizando, a partir de suas perspectivas e cosmologias, os referenciais normativos a fim de encontrarem soluções aos problemas que os afligem e exigirem seus direitos.
À vista disso, foi possível concluir que a autodemarcação Munduruku é uma demonstração evidente de prática interlegal, em que se acionou, simultaneamente, os sistemas jurídicos oficial e o nativo. Fez-se uso de um estudo técnico produzido por uma representação oficial, para, mediante uma empreitada que envolve cosmovisões peculiares de mundo, fazer valer um direito previsto no sistema estatal. Por meio de uma ação autônoma direta, preenchida de categorias nativas, os Munduruku se apresentaram como guardiões de seu território ancestral e do próprio direito estatal, à medida em que exigiram o cumprimento da Constituição Federal, para tanto expressando suas consciências jurídicas e políticas acerca de seus direitos.
Com tal prática, os Munduruku apresentam um projeto político emancipatório, instituindo, segundo as lentes do Direito Achado na Rua, um novo direito. O direito de auto anunciar seu território, fazendo uso das ferramentas do Estado, mas para além dos desígnios deste.
Não vejo outro modo de finalizar minha leitura da dissertação de Luís de Camões Boaventura do que evocando a última obra de Ailton Krenak que acabei de ler (Futuro Ancestral). Ele fala de regenerar uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, numa ilusão utilitária, da qual precisa ser libertada para que seus lugares deixem de ser o repositório de resíduos da atividade industrial e extrativista (http://estadodedireito.com.br/a-vida-nao-e-util/).
Do que se trata, em suma, é de passar do estágio de florestania que já se desdobrara da redução política da localização na cidadania, e das múltiplas possibilidades de reivindicar direitos que não se estiolem no esforço de se confinarem em igualdades, para o estágio amplificado das alianças afetivas. E assim refunda juntos humanidades fecundadas numa ancestralidade que junta ao invés de separar, e que, ao contrário do senso antropofágico de humanos que se consomem numa reificação e que se presta ao entredevorar-se uns pelos outros, supra a falta de sentido de um cosmos esvaziado por uma antropofagia da ganância e do consumo.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).