Avanço da tecnologia ou reinvenção da mendicância no Brasil?

por Alzirinha Souza (*) – Jornal Brasil Popular/DF

Foi com surpresa que ouvimos em cadeia nacional[2] o atual presidente do Banco Central do Brasil afirmar com otimismo que o sistema Pix beneficiou a vida de uma criança em situação de rua.Durante a entrevista, ele contou a história de um menino que, ao tentar vender-lhe balas em um restaurante, informou ser possível aceitar o pagamento via Pixna falta de dinheiro vivo.

Ora, se a cena descrita nos leva a perguntar onde almoça ou janta o presidente do BC, de modo a permitir-se que crianças em situação de rua entrem e abordem os clientes,o conteúdo da conversa nos parece perfeitamente plausível entre personagens de mundos tão distantes. De fato, a narrativa trazà tona elementos significativos sobre a atual conjuntura social do país, bem como a necessidade e relevância do tema proposto para a Campanha da Fraternidade 2023:Fraternidade e Fome – “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16).

O primeiro elemento faz referência à total desconexão daquele que narra com a realidade em que vive. De fato, sua visão distorcida, realizada a partir e à luz da experiência de um mundo específico,traz consigo a crença na premissa de que o instrumento de pagamento digital é realmente a solução para a vida daquelas pessoasque são exatamente as excluídas do meio financeiro onde se opera essa tecnologia.

O segundo elemento, interligado ao primeiro, diz respeito à concepção de classe social como substrato essencial ao tema. Aproximando-se de uma perspectiva elitista, esse senhor, que é neto de um ex-Ministro da Fazenda com semelhante postura de distanciamento da classe trabalhadora, representa segundo G. Freire a “Casa Grande” e seguramente deve ter tido poucas oportunidades de sair dos salões imperiais. Mesmo estando em um cargo público, que por sua natureza exige imparcialidade, ele defende, ao ser nomeado, a representação de uma ala dopoder financeiro por meio de uma política econômica estabelecida à luz de sua narrativa e a partir de uma leitura parcial ou enviesada da realidade.

Sua noção de realidade desvela uma dissonância cognitiva, isto é,uma lógica que apresenta um vácuo entre realidade e crença pessoal. No Brasil, ricos não andam com dinheiro no bolso, só com cartões. Quem anda com dinheiro no bolso em decorrência de sua exclusão do sistema financeiro, são os pobres. Presumir que um menor em situação de rua é beneficiado e teve sua vida melhorada por sugerir um pagamento mediante o uso de determinado procedimento, que provavelmente nem ele entende, é em última instância anular a possiblidade de existência de outras classes que não a dele. Somente é possível dar existência a algo que se conheça, com que se adquiram relaçõese a quese faça referência real e concreta.Nesse sentido,o entrevistado representa uma ideologia típica de quem é preso à sua bolha social, intransponível ao contato direto com a realidade dos pobres deste país.

Contudo, o destaque do discurso passa pelaexpressão emocionada do narrador quando ele afirma que o trabalho do Banco Central do Brasil é ajudar as populações e que isso acontece à medida que as crianças miseráveis, os explorados, os excluídos e os marginais da sociedade classista do Paíspodem melhorar a vida pedindo Pix! Além de ser um discurso pueril, trata-se de uma inversão de valores,pois para ele a situação da pobreza se resolveu com um mecanismo bancário que exclui os pobres. Colocado a partir da ótica desse senhor, o Pix é a solução mágica para resolver esse problema de raízes tão profundas.

O maior sentido dessa narrativa passa por um elemento crucial que toca ao tema da Campanha da Fraternidade deste ano:Fraternidade e Fome. O que o presidente do BC não percebeu é que o mecanismo Pix, além de não suprir a necessidade das pessoas que passam fome no País, concretiza a reinvenção da mendicância no contexto brasileiro. Verdadeiramente, o que esse novo sistema permitiu foi uma mudança nas relações de comércio: as pessoas que têm possibilidade de compra deixaram de andar com dinheiro na rua e as que vendem por necessidade são obrigadas, para não morrerem de fome, a reinventar a forma da mendicância, agora digitalizada. A situação da fome e da luta pela sobrevivência digitalizada se “concretizou” na vida não apenas de crianças, mas também de idosos/as e de mães e pais de família que andam errantes pelas ruas de nossas metrópoles.

A leitura apresentada revela uma crueldade e uma perversão oriundas de padrões comportamentais e ideológicos que deixam clara a forma como se olha para o outro, colocando os cidadãos comuns do Brasil em absoluta disparidade econômica e social que resulta numa situação de ausência de direitos humanos básicos. O conteúdo expressado na narrativa, que deveria ser direcionado à maioria dos ouvintes, em especial cristãos e cristãs, é assustador e faz coro com o pensamento histórico do País,perpetuando nos dias atuais diversas formas de escravidão e submissão de seus cidadãos.

A questão da fome e da pobreza no Brasil não poderá ser resolvida por uma dissonância cognitiva, mas através de gestos concretos que nasçam de um novo olhar humano sobre outros humanos, passando pela compreensão da realidade de mecanismos que levam milhares de pessoas excluídas à mendicância como forma de sobrevivência.

(***)

(*) Por Alzirinha Souza[1]

[1]Leiga, doutora em Teologia pela Universitécatholique de Louvain. Professora e pesquisadora do Instituto São Paulo de Ensino Superior (ITESP) e da PUC-Minas, onde émembro do Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (NECT). Participa regularmente de entrevistas nos Programas e nas Conversas de Justiça e Paz, da CPP-DF.

[2]Programa Roda Viva (TV Cultura), exibido em 13 de fevereiro de 2023.

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