por Eduardo Xavier Lemos e Sérgio Brasil Fernandes – JBP/DF
Queridas amigas e amigos que acompanham a Comissão Justiça e Paz de Brasília, propomos nessa semana uma reflexão sobre o desafio 29 que nos propõe a 1ª. Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe, qual seja, “Promover a cultura da não-violência, a defesa dos direitos humanos e da paz”. E sobre ele conversaremos um pouco.
Tem sido cada vez corriqueira em nossos dias as expressões “cultura da paz”, “não-violência” ou, ainda, “comunicação não-violenta”. Vejamos inicialmente qual o sentido que tem cada uma delas e como elas se conectam de forma integrada.
Sobre a CULTURA DE PAZ precisamos lembrar que na passagem do milênio, mais especificamente no ano de 1999, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) realizou um chamamento de um Movimento Global para uma Cultura de Paz, sendo que o ano de 2000 foi denominado “Ano Internacional da Cultura de Paz” e a década que se seguiu até o ano de 2010 ficou conhecida como sendo a “Década Internacional para uma Cultura de Paz e não-violência para as crianças do mundo”.
O termo, portanto, surge como provocação das Nações Unidas que visava especificar a busca da construção de uma visão de mundo e de paz, onde todas as ações humanas possam assegurar uma justiça que seja resultante de um conjunto de atividades embasadas em valores, comportamentos, tradições, atitudes e estilos de vida, seja de pessoas ou grupos, fundadas no respeito à vida de todos os seres, aos direitos humanos na perspectiva da paz e, portanto, um não à guerra, pelo fim das ações da humanidade (educação, ciência, política, conhecimento, suas relações e etc..) embasadas na violência. Portanto, a Cultura de Paz deve nos levar um repensar das nossas ações e das nossas atitudes, na busca de uma realidade mais qualificada, constituindo processos plenos de justiça.
Já o termo NÃO-VIOLÊNCIA é um mecanismo para se chegar à justiça que acontece na Cultura de Paz.
A não-violência é um método concebido pelo líder pacifista indiano Mahatma Gandhi (1869-1948), que o especificou em dois conceitos fundamentais: ahimsa e satyagraha.
A ahimsa é a rejeição, a não aceitação de toda e qualquer violência. “A não-violência é o meu primeiro artigo de fé, e é também o último artigo do meu credo”, disse ele. Gandhi recusou conceber que para combater a violência fosse necessário lançar mão de violência, porque entendia que o efeito poderia ser mais violência como consequentemente costumamos ver. Portanto, a única alternativa para ele na perspectiva de resistir a essa lógica, seria destruí-la com uma postura de não aceitação da violência. Por isso, Mahatma (Grande Alma) dizia: “A não-violência é a completa ausência de mal querer para com tudo o que vive. A não-violência, sob sua forma ativa, é boa vontade para com tudo o que vive. Ela é amor perfeito”.
Tendo recusado de forma absoluta à violência, Gandhi buscou encontrar uma outra postura para substituí-la. E essa nova postura é a satyagraha sobre a qual diz: “Satya (verdade) implica o amor, agraha (firmeza) serve de sinônimo para força. Comecei, assim, a denominar o movimento indiano de satyagraha, e entendia esse termo como a força que nasce da verdade e do amor (…). O seu significado fundamental é a adesão à verdade e, por conseguinte, a força da verdade. Chamei-lhe igualmente força do amor ou força da alma”.
Aqui é importante fazermos um parêntese para vermos o que diz um salmo: justiça e paz se abraçarão/verdade e amor se beijarão (algo assim).
A respeito do nexo entre justiça e paz nós temos uma forte tradição de pensamento. Mas talvez sobre o nexo de verdade e amor ainda falta refletir mais. Talvez verdade e amor possam ser pensados a partir da liberdade. Pode ser que a essência da verdade seja a liberdade: o que franqueia, abre, cria leveza, para possibilidades de ser e aparecer.
Sobre o amor disse Schelling em “A essência da liberdade humana“: “o amor não reside nem na indiferença e nem aonde ainda estão unidas as oposições, que necessitam dessa união para ser (…). O mistério do amor é unir o que poderia ser para si mas que não é e não poderia sem o outro.” (Schelling, F. W. A Essência da Liberdade Humana. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 80)
Por isso, a não-violência que Gandhi propõe é intitulada como não- violência ativa ou de firmeza permanente, posto que há uma intencionalidade em fazê-la acontecer, em fazer acontecer a verdade e o amor. Portanto, não é algo aleatório e fora da vontade de quem pratica.
Importante observar sobre esse prisma que aquele ou aquela que não lança mão da violência não é necessariamente uma pessoa não violento: para sê-lo é preciso buscar a justiça por meio da verdade e do amor. Por isso que falamos antes que a não-violência é um mecanismo para se chegar à justiça que acontece na cultura de paz.
E, por fim, a COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA ou também conhecida como CNV, uma proposta idealizada pelo psicólogo estadunidense Marshall ROSENBERG (1934 – 2015), que é uma abordagem que propõe o desenvolvimento de habilidades comunicacionais sustentadas por um processo que promove o autoconhecimento e o fortalecimento das relações.
Trata-se de uma proposta que difere de tudo quanto estamos hodiernamente habituados a fazer, no sentido de sugerir que não mais possamos comunicar e agir com base nas interpretações e nos julgamentos que fazemos, mas que observemos a realidade e nos relacionemos com ela, atentos e atentas aos nossos sentimentos e às nossas necessidades, bem como aos sentimentos e às necessidades das outras pessoas. Seus preceitos vêm corroborando a necessidade da efetivação de uma cultura de paz no mundo.
É salutar evidenciar que, ao falarmos de CNV, estamos diretamente tratando das questões que envolvem a paz, e essas estão cotidianamente presentes em nossas vidas e vêm nos mobilizando a buscar novas formas e novas posturas frente às diversas realidades das violências que crescem assustadoramente na nossa sociedade.
Assim sendo, não há a possibilidade de falarmos sobre Cultura da Paz se não conversamos sobre a não-violência e sobre o processo de comunicação existente entre nós. Este trio conceitual e interdependente.
Portanto, quando vamos entender o desafio que nos propõe a Assembleia Eclesial de “Promover a cultura da não-violência, a defesa dos direitos humanos e da paz” (desafio 29), à luz dos conceitos de Cultura da Paz, Não-Violência e CNV logo nos lembramos do mandamento de Jesus que nos diz em Mt. 22: 39: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ou seja, quem ama: não-viola, não-violenta! Quem ama: cuida, acolhe, protege e defende. Essas ações expressam todo o sentido da defesa de todos e todas, na perspectiva de que a ninguém seja negado o direito de SER, do respeito à sua dignidade e da construção de uma justiça que faz no coletivo e com o coletivo.
Desta forma não há lugar mais apropriado para falar sobre essa temática do que o ambiente eclesial onde somos sempre convocados a declarar que justiça e paz se abraçarão.
(*) Por Eduardo Xavier Lemos, Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília, e Vicente Sérgio Brasil Fernandes, membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília