por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Matéria do Diário do Centro do Mundo (acesso em 11/12), dá conta de um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, revelando que a população em situação de rua no Brasil cresceu 38% desde 2019, chegando a 281,4 mil pessoas sem-teto, que foram afetadas diretamente pela pandemia de Covid-19. A pesquisa divulgada na última quinta-feira (8), ainda aponta que em uma década, o aumento foi de 211%, superior ao crescimento da população geral no Brasil, de 11%. (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/populacao-de-rua-no-brasil-cresceu-38-apos-pandemia-diz-ipea/).
Esse é um aspecto de uma realidade que dá a medida das ações que o novo governo, de corte democrático-popular, precisará implementar para atribuir função social ao seu programa. A mobilização para aprovar a chamada PEC da “transição” dá a medida da responsabilidade social que o novo governo assume, depois do caos produzido pela necropolítica da gestão que melancolicamente se encerra.
Foi preciso, nesse descalabro, convocar a institucionalidade instalada noutros âmbitos do Estado, no Legislativo para encaminhar medidas que preservassem a população carente, sobretudo na fase aguda da pandemia, que ainda traz ameaças, sobretudo em defesa da moradia (cf. o artigo da Deputada Natália Bonavides em co-autoria com Lorena Cordeiro: A Defesa da Moradia na Pandemia: uma Análise sobre a Aprovação de Lei que Suspende Despejos Durante a Crise Sanitária da Covid-19, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs) Direitos Humanos e Covid-19 vol. 2 Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022), para aprovar a lei e para derrubar o veto imposto pelo Presidente da República.
Também o Supremo Tribunal Federal, entre outras intervenções de salvaguarda dos direitos fundamentais e da cidadania, especialmente na ADPF 976-DF, que discute Estado de Coisas Inconstitucionais com a População em Situação de Rua. De fato, o Relator ministro Alexandre de Moraes, pediu informações ao presidente da República, aos governadores dos estados e aos prefeitos das capitais sobre a situação da população em situação de rua, para reunir dados para instruir a análise das medidas cautelares formuladas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, em que são pedidas providências para minorar as “condições desumanas de vida” dessas pessoas. O pedido de informações, a serem prestadas no prazo legal de cinco dias, está restrito aos prefeitos de capitais por razões de viabilidade e da celeridade do rito. Em seguida, os autos devem ser remetidos, sucessivamente, à Advocacia-Geral da União (AGU) e à Procuradoria-Geral da República (PGR), para que se manifestem.
Na ADPF, a Rede Sustentabilidade, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) sustentam que há um estado inconstitucional de coisas em relação à população de rua, com violação de diversos preceitos fundamentais, entre eles o da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais à vida, à igualdade, à saúde e à moradia. Pedem a concessão de medida cautelar para determinar que os Executivos federal, estaduais e municipais promovam ações para preservar a saúde e a vida dessa parcela da população e, no mérito, que seja determinada a adoção de providências legislativas, orçamentárias e administrativas a fim de auxiliar as pessoas em condição de vulnerabilidade.
O Ministro Alexandre de Moraes convocou audiênciapública referente à Ação, tendo recepcionado propostas e denúncias para, escritas ou na própriaaudência, contribuírem para o encaminhamento da questão. Ele sugeriu três eixos para balizar as manifestações: 1. Evitar a ida para a situação de rua; 2. Tirar as pessoas em situação de rua e; 3. Respeitar os sujeitos vulnerabilizados e evitar violência.
Entre as contribuições tornadas possíveis com a Audiência, ponho em relevo as que foram levadas a conhecimento na ADPF pela sociólogaPaula Regina Gomes. Paula Regina éVice-Presidenta da Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil.
Além disso, ou antes disso, ela desenvolve uma Dissertação de Mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, sob a orientação da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos). A pesquisa da dissertação, prestes a ser defendida tem o sugestivo título “Rueira Brasília – Educação Popular em Direitos Humanos, Vulnerabilização Social e Luta por Direitos no Contexto da Violência”.
Pedi a Paula um resumo do trabalho que ela prontamente preparou:
“Rueira Brasília é uma pesquisa no campo dos direitos humanos orientada pela construção dialogal entre conhecimentos e saberes, que parte da realidade da violência e violação de direitos vivida pela população em situação de rua do Distrito Federal, pelos princípios da educação popular em direitos humanos, voltada para elaboração de propostas de melhorias das políticas públicas articulada com a promoção da participação social. Fundamentada na teoria crítica dos direitos humanos e na perspectiva metodológica da etnometodologia a partir do método etnográfico da técnica da pesquisa de campo, associou a pesquisa-ação à observação participante. Interpretativa e de intervenção social abrangeu dados qualitativos e quantitativos com a preponderância da análise qualitativa. A produção de dados aconteceu entre os anos de 2018 a 2022 com a aplicação de questionários, entrevistas, oficinas de aprendizado colaborativo, registro de denúncias, diários de campo e dados secundários em fontes oficiais, sendo recortada pela pandemia do novo coronavírus norteando uma análise comparativa. Com a sistematização dos dados foi traçado um perfil socioeconômico e da violência vivida pela população em situação de rua, com a categorização dos principais tipos definindo uma matriz de opressão interseccional. A partir daí temos a interpretação de soluções de melhorias construídas em diálogos de mundos fomentando o sujeito de direito no exercício cidadão. Assim, temos as principais contradições entre as políticas públicas concebidas e as praticadas a partir do conceito de violência institucional. As conclusões apontam os resultados da intervenção social com os avanços e desafios para a luta emancipatória por direitos humanos”.
Esses fundamentos, juntamente com um profundo conhecimento que a pesquisadora tem da realidade desse tema, ela levou para seu depoimento no STF. Na Audiência ela sustentou estarmos diante do“cenário do aumento da fome, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, com 33 milhões de pessoas que não tem garantido o que comer, representando 14 milhões de novos brasileiros nessa condição. O cenário do aumento da população em situação de rua consta na Nota Técnica 73 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA que aponta um aumento expressivo de 140% da população em situação de rua ao longo do período de setembro de 2012 a março de 2020. Somado ao efeito da invisibilidade social desse segmento no planejamento das políticas públicas por falta de dados quantitativos e quantitativos precisos e qualificados. Cabe reconhecer que as políticas públicas atualmente não estão preparadas para atender as necessidades desse grupo social”. Necessário, pois, “melhorar as políticas públicas para de fato abranger e promover condições efetivas para superar o quadro de violações e ausência de acessos que marcam a realidade da população em situação de rua. Trata-se de uma trajetória histórica de exclusão social e violências apontando para um processo de extermínio social. É de conhecimento notório daqueles que atuam e pesquisam diretamente com a população em situação de rua o cenário cotidiano de extrema violência e violação de direitos humanos que na maioria das vezes não são alcançados pelos instrumentos públicos oficiais devido a um processo de invisibilização social e de falta de mecanismos adequados para a especificidade dessa realidade que nega acessos e direitos. Assim, se faz fundamental a superação das assimetrias sociais garantindo a sua participação direta para mudar esse quadro inconstitucional de coisas qualificando as políticas públicas de forma territorializada”.
Em conclusão ela argumentou ser“imprescindível garantir uma política habitacional, com várias tipologias de moradia, que dê conta da complexidade de realidades sociais; uma política de soberania e segurança alimentar que dê condições para superação da fome e da desnutrição; uma política de assistência social que seja transformadora e norteada pelas melhores práticas de direitos humanos, adotando, inclusive renda básica; uma política pública de saúde que seja inclusiva e especializada, ampliando os consultórios na rua e garantindo celeridade para os pedidos de exames e cirurgias, com a construção de novos equipamentos voltados para a saúde mental; uma política pública de educação que garanta condições para o aprendizado; uma política pública de trabalho e renda que promova efetiva inserção no mercado de trabalho; uma política de segurança pública que seja inclusiva e garantidora de direitos humanos dos vulnerabilizados; uma política de direito a cidade que reconheça a condição de exclusão social e não promova a subtração dos poucos pertences daqueles que quase nada tem e que precisam desse pouco que é essencial para garantir da vida. A população em situação de rua representa um segmento social complexo recortado pela diversidade de minorias sociais que trazem o peso da opressão e da discriminação. É preciso que todas as políticas públicas e a atuação do sistema de justiça reconheçam e promovam ações reparatórias diante dos marcadores das diferenças sociais que reverberam as assimetrias sociais através do racismo, do machismo, do elitismo, da opressão contra LGBTQI +, dos idosos, dos jovens e das crianças, das mães e das mulheres em situação de pobreza extrema”.
Há, também no social, um engajamento consciente para dar cobro a essa situação e para superá-la. Nesse dia 12 (segunda-feira), o padre Júlio Lancellotti, numa ação do Observatório de Aporofobia com apoio da Pastoral do Povo de Rua, conduz em São Paulo um Ato contra a Aporofobia, para a retirada de pedras da Biblioteca Cassiano Ricardo, “representando um marco da luta contra a aporofobia e a arquitetura hostil”.
Tenho dito que a marreta do padre Júlio Lancellotti é uma símbolo real de atualização da Declaração Universal de Direitos Humanos, cujos 74 anos foram celebrados nesse 10 de dezembro. Aqui mesmo neste espaço do Jornal Brasil Popular, a propósito da recente aprovação, celebrei o reconhecimento do Legislativo à exigência de prioridade desse tema central na agenda dos direitos humanos, com a aprovação da Lei que recebeu o seu nome (https://www.brasilpopular.com/lei-padre-julio-lancellotti-e-a-proibicao-de-obstaculos-contra-pessoas-em-situacao-de-rua/).
Padre Júlio é um exemplo vivo de ação pastoral social, seguindo o magistério do Papa Francisco. Agora em novembro, por ocasião do XXXIII Domingo do Tempo Comum – 13 de novembro de 2022 (https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20220613-messaggio-vi-giornatamondiale-poveri-2022.html), ele lançou a mensagem para o VI Dia Mundial dos Pobres. Ele fala de duas dimensões da pobreza a que devemos estar atentos, distinguindo: “A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspectivas nem vias de saída. É a miséria que, enquanto constringe à condição de extrema indigência, afeta também a dimensão espiritual, que, apesar de muitas vezes ser transcurada, não é por isso que deixa de existir ou de contar. Quando a única lei passa a ser o cálculo do lucro no fim do dia, então deixa de haver qualquer freio na adoção da lógica da exploração das pessoas: os outros não passam de meios. Deixa de haver salário justo, horário justo de trabalho e criam-se novas formas de escravidão, suportada por pessoas que, sem alternativa, devem aceitar este veneno de injustiça a fim de ganhar o mínimo para comer”.
De outra parte, ao contrário, ele alude a uma outra dimensão da pobreza que requer discernimento político: “A pobreza libertadora[que] é aquela que se nos apresenta como uma opção responsável para alijar da estiva quanto há de supérfluo e apostar no essencial. De facto, pode-se individuar facilmente o sentido de insatisfação que muitos experimentam, porque sentem que lhes falta algo de importante e andam à sua procura como extraviados sem rumo. Desejosos de encontrar o que os possa saciar, precisam de ser encaminhados para os humildes, os frágeis, os pobres para compreenderem finalmente aquilo de que tinham verdadeiramente necessidade. Encontrar os pobres permite acabar com tantas ansiedades e medos inconsistentes, para atracar àquilo que verdadeiramente importa na vida e que ninguém nos pode roubar: o amor verdadeiro e gratuito. Na realidade, os pobres, antes de ser objeto da nossa esmola, são sujeitos que ajudam a libertar-nos das armadilhas da inquietação e da superficialidade”.
Seguindo a ética do Evangelho e de sua mensagem, conforme Francisco, o caminho que nos incumbe e que devemos escolher trilhar, é descobrir a existência duma pobreza que humilha e mata, e a outra pobreza que liberta e nos dá serenidade.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).