Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Ana Paula Daltoé Inglêz Barbalho. A Pandemia de COVID-19 e Respostas Sociais exitosas das Comunidades Periféricas. Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Brasília, 2022, 71 f.
Detenho-me neste Lido para Você na apresentação de uma monografia de graduação em Direito, na UnB, que tive ensejo de orientar, submetida a uma exigente banca formada por minha colega de Faculdade Talita Tatiana Dias Rampin e pelo advogado José Eymard Loguércio, integrante do programa de doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB; mestre em Direito.
Com Talita co-organizei os dois volumes editados pela D’Plácido sobre Direitos Humanos e Covid-19, o segundo volume tratando exatamente do tema respostas sociais à pandemia (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-covid-19-vol-2-respostas-sociais-a-pandemia/).
Na divulgação desse segundo volume, a Editora pôs em relevo na sua página web um recorte do Prefácio de Boaventura de Sousa Santos que é como uma senha para a sua compreensão: “Uma lição que a história pode nos ensinar se estivermos dispostos a aprender, nessa quadra em que a pandemia parece acentuar a deriva da participação da pertença, sobretudo no colapso que os governos autoritários e antipovo revelam, é a que encontramos nas respostas sociais, autogestionadas, comunitárias que os movimentos e organizações sociais estão a oferecer. Neste livro há uma boa mostra dessas respostas, que representam um alento para conter a deriva, extremamente dramática, na realidade brasileira”.
Certo, para nós os Organizadores, que o fracasso na gestão da pandemia, por incompetência e por malícia, põe em risco a saúde do povo e a própria democracia. O livro busca responder a questões que nos fazemos, a partir de uma indagação básica: “Estaremos, então, dados à destruição, assim como nossa democracia? Acreditamos que não”.
A pandemia reforçou o nosso entendimento de que é necessário transformar a realidade a partir da revisão da forma como realizamos nossa reprodução social. Construir outro modelo de sociedade é tarefa imperativa, inclusive, enquanto espécie. E essa transformação, a nosso ver, vem sendo historicamente pautada por sujeitos coletivos de direitos, que formulam e vivenciam outras formas de construção do real, tendo em seu horizonte a preservação da vida.
O primeiro cenário, que inaugura a obra, destaca um importante ator no vetor histórico de transformação social: o sujeito coletivo de direitos.
O Direito Achado na Rua tem como uma de suas categorias centrais o sujeito coletivo de direitos, que contribui para o desenvolvimento da abordagem dialética humanista do direito formulada por Roberto Lyra Filho e pela Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), na década de 1980.
Refletimos, no primeiro volume de “Direitos humanos e Covid-19: grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia”, que a metáfora “é um convite à ampliação da reflexão sobre os espaços de reprodução do direito a partir da consideração da reprodução social”, e por isso é “direito construído em movimento, ‘em casa e na rua’, ‘na encruza’, ‘no campo’, ‘no cárcere’, ‘na rede’, ‘no rio’, ‘no lixo, nos becos, nas aldeias, nas matas’”. Trata-se de uma provocação à identificação das zonas em que as ambiguidades, as contradições e as vindicações sociais são mobilizadas em torno da formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática .
Assim, como o social se expressa, atua e é constituído é o que a obra oferece. Por isso que na obra buscamos reunir relatos e análises de algumas dessas respostas sociais, que acabaram sendo formuladas pela sociedade civil e pelos sujeitos coletivos de direito, categoria central para O Direito Achado na Rua, diante cinco cenários que impulsionaram a organização interna da publicação: Quando o Estatal colapsa é o social organizado que institui direitos: nós por nós (parte 1); Quando a universidade é pública, a pesquisa e a educação não se submetem ao mercado, não se mercadorizam (parte 2); Quando o mundo do trabalho confronta o capital e defende a vida (parte 3); Quando a crise sanitária constata os limites do sistema de justiça e problematiza a justiça a que quer acessar (parte 4); Quando a resposta social à pandemia pede um novo paradigma para a institucionalidade e a governança (parte 5).
Nessa edição Ana Paula Barbalho ofereceu um texto incluído na PARTE 1 – Quando o Estatal colapsa é o social organizado que institui direitos: nós por nós, que é a base da monografia: “Pandemia do coronavírus e organização social: respostas exitosas das comunidades periféricas”.
A contribuição de Ana Paula é fruto de uma formação e de uma atuação político-funcional carregada de rica experiência, não fora a atual Vice-Presidenta da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, uma qualificada Mestra em Biologia Animal (UnB) e analista ambiental federal (Ministério do Meio Ambiente), atuante também na Associação Brasileira de Profissionais pelo Desenvolvimento Sustentável.
Aliás, em seguida à defesa a monografia foi a referência para a apresentação de Ana Paula no programa da disciplina Direito à Saúde, Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua: a Construção Social dos Direitos, que integra o Curso de Direito à Saúde (Mestrado) do Programa de Pós-Graduação da Escola Fiocruz de Governo, neste 2º semestre de 2022. A disciplina regida pelo professor Swedenberger Barbosa e por mim. Ali, em interlocução com alunos e alunas de todo o País, procedentes de diferentes áreas de conhecimento com atuação no sistema de saúde, o tema e a Autora deram consistência ao debate programático.
A monografia, trabalho de conclusão de curso de direito, não é pois trabalho de iniciante, mas incidência numa variante de sua formação – o Direito – para lhe conferir mais consistência.
É o que se antecipa da leitura, a partir de atenção ao resumo do trabalho:
A pandemia do Coronavírus evidenciou as desigualdades sociais e as aprofundou em contextos urbanos de territórios vulneráveis como as comunidades periféricas. O presente trabalho pretende listar e registrar iniciativas de combate à pandemia de Coronavírus resultantes da organização social das comunidades periféricas brasileiras e seus impactos frente à pandemia do Coronavírus, refletindo sobre as inovações propostas diante de cenários complexos e de incerteza.
Diferentes metodologias de coletas de dados foram utilizadas, em modalidade virtual, a partir da busca ativa de informações em diversas plataformas de comunicação, depoimentos dos coordenadores das redes comunitárias, de palestras e de intervenções em seminários virtuais depositados em diversas plataformas e utilizando dados governamentais. Buscou-se listar, categorizar e registrar alguns dos resultados obtidos entre março de 2020 e maio de 2021.
Por serem populações marginalizadas e tradicionalmente invisibilizadas, existe uma dificuldade no mapeamento das ações locais, que possuem diferentes amplitudes, dimensões, capacidades de mobilização, públicos-alvo, mecanismos de comunicação e objetivos.
De maneira geral, as iniciativas sociais nas favelas são estruturadas em redes comunitárias voltadas a segurança alimentar, a distribuição de materiais de higiene e limpeza, a ações para geração de renda e a manutenção e o fortalecimento de comércio local, o acesso à saúde e cuidados e prevenção em saúde, especialmente no controle da pandemia do Coronavírus, a produção e difusão de informações e conteúdos seguros e a apoio a artistas e grupos culturais locais.
Ações, atores e organizações protagonizam reações potentes, efetivas, criativas e construtoras da realidade e de alternativas para a ausência histórica do Estado. A fundamental atuação das lideranças populares locais nas ações de mitigação da pandemia nas comunidades traz a necessidade urgente da democratização do debate do futuro das cidades e da agenda urbana pós-pandemia, de maneira a considerar imprescindíveis as tecnologias sociais desenvolvidas.
A monografia está organizada conforme um roteiro inteiramente amigável para a compreensão e inteligibilidade da proposta. Destaca-se a oferta de consistente metodologia cuja resultante mais interessante é a elaboração de um thesaurus (tesauro, tesouro), no melhor sentido de um indexador de repositórios de informações, eventos e registros de atuações e iniciativas organizadas pelos coletivos das comunidades e de movimentos sociais, indicados nas notas e na Bibliografia.
Destaco o Sumário distribuído em:
DESENVOLVIMENTO
O Brasil de 2022
Direitos Fundamentais e Direitos Humanos
Histórico e conceito
Direito à Saúde no Brasil
O investimento de recursos na saúde pública no Brasil
O Coronavírus e a pandemia de COVID-19
A Pandemia, a ADPF 822/2021 e o descaso que gera um “Estado de Coisas Inconstitucional”
A PANDEMIA DE COVID-19 E AS RESPOSTAS EXITOSAS DAS COMUNIDADES PERIFÉRICAS
A pandemia no Brasil
A pandemia de COVID-19 e o acesso a Direitos das populações periféricas
Breve introdução sobre as comunidades periféricas
A pandemia nas populações periféricas
Informando sobre a pandemia para uma audiência periférica
Registro das Iniciativas Comunitárias
Cumprindo as recomendações sanitárias em contextos de baixa infraestrutura
Da Conclusão da monografia recorto o que diz a Autora:
A reação social nesse contexto, conduzindo a mudança de prognóstico de desastre da pandemia do Coronavírus para as populações faveladas para controle e cenário de soluções concretas mostra a força e a resiliência das comunidades no enfrentamento de desafios coletivos. O aprendizado resultante dessas experiências, o conjunto da atuação das lideranças comunitárias e a forma múltipla de organização social compõem valioso repertório de estratégias e ações.
Em uma perspectiva para além da pandemia, são importante referencial de tecnologias sociais de baixa tecnologia, elevada eficiência na utilização de recursos e alta penetrância nos territórios transformando-se em referencial para a construção de políticas públicas que devem, necessariamente, integrar a organização social já existente às soluções propostas. A rede comunitária, estruturada a partir de seus territórios, necessariamente deve fazer parte das soluções e considerada como elemento fundamental na definição das agendas e escolhas de implementação de políticas públicas para a superação de desigualdades estruturais.
A fundamental atuação das lideranças populares locais nas ações de mitigação da pandemia nas comunidades traz a necessidade urgente da democratização do debate do futuro das cidades e da agenda urbana pós-pandemia. Importante enfatizar que, por se tratar de populações marginalizadas, existe uma dificuldade no mapeamento das ações locais que possuem diferentes amplitudes, dimensões, capacidades de mobilização, públicos-alvo, mecanismos de comunicação e objetivos. Ações, atores e organizações protagonizam reações potentes, efetivas, criativas e construtoras da realidade e de alternativas para a ausência histórica do Estado.
Registrar as iniciativas, os formatos e principais características dessas ações se coloca como instrumento de luta pela garantia de direitos fundamentais e demonstra a potência das comunidades periféricas na luta pela sobrevivência e a importância da sua capacidade organizativa frente aos desafios para além do contexto da pandemia do Coronavírus. Nesse sentido, é necessário novo olhar sobre a importância da participação social na construção de uma sociedade brasileira mais justa e menos desigual.
A monografia confirma a força do social mobilizado nos espaços públicos simbolizados pela metáfora da rua, tal como o expressamos os mesmos organizadores a partir da edição de DIREITOS HUMANOS E COVID-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021(http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/).
Ainda que se tenha, em tempos de pandemia, a rua sensivelmente esvaziada, já que são preenchidas, com todos os riscos e adversidades inerentes, pelos necessitados, precarizados, obrigados a se expor para garantir uma condição mínima para si e sua família, ao lado dos impertinentes negativistas, negadores e afrontadores, que amealharam uma discussão política mais profunda em um triste episódio de desrespeito à razoabilidade, sem qualquer empatia para os demais e, pior, sem qualquer estima por sua própria situação e das pessoas próximas a si. Mas se a rua é esvaziada, de outro lado, esta rua indiscutivelmente irá adentrar nos lares e os locais, antes públicos, são publicizados por formas diversas, que acabam por ressignificar e reposicionar questões históricas e sentidos novos.
Mesmo nesse cenário, mostra-se pertinente a compreensão de que a “rua”, externa ou intrusivamente incluída, é ainda o lugar simbólico do acontecimento, do protesto, do gesto paradigmático que, como divisa Marshal Berman, “transforma a multidão de solitários urbanos em povo e reivindica a rua da cidade para a vida humana”, lugar democrático que agora, no Brasil, felizmente é recuperado, resgatado do fascismo, para a retomada de um percurso emancipatório, aqui e ali turbado, mas nunca contido.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).