Varrendo para cima do tapete: da invisibilidade social à regulamentação jurídica do trabalho na limpeza urbana

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Varrendo para cima do tapete: da invisibilidade social à regulamentação jurídica do trabalho na limpeza urbana. Helena Martins de Carvalho. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, 104 p.

            Neste lançamento da D’Plácido, uma obra sensível, elaborada por uma intelectual dotada de alta “sensibilidade e absoluto rigor acadêmico, na identificação e estudo do fenômeno social que nos leva ao alheamento e indiferença quanto à sorte dos trabalhadores na coleta de lixo”, conforme está no Prefácio. Não que tenha sido uma opção metodológica da Autora, menos socióloga e mais jurista, mas o seu trabalho está encharcado da disposição sentipensante que o cientista social colombiano Orlando Fals Borda oferece como modo de engajar o conhecimento no movimento de emancipação de setores populares. Em Helena, não tanto pelo processo de pesquisa-ação participante para conferir empoderamento ao social (movimentos sociais, camponeses, comunitários, a ponto de se constituir uma modalidade sociológica de compreensão, característica das lutas sociais latino-americanas, mais transparece o sentido pedagógico de amorosidade que se volta para o encantar a educação, no caso, educação para a cidadania e os direitos.

            Estratégia dos estudos de decolonialidade, que abriga pensadores como Fals Borda, a abordagem de Helena, ainda que intuitiva, a aproxima da atitude do corazonar que, de acordo com Patricio Guerrero Arias, refere a uma postura intelectual, acadêmica e política de luta decolonial a partir do corazonamiento do saber, do poder e do ser. Ou seja, a religação da afetividade com a racionalidade intelectual, uma postura de decolonialidade do saber, do sentir e do ser, mas também, uma descolonização da própria academia e sua racionalidade universalizante.

“VARRENDO PARA CIMA DO TAPETE”, conforme a descrição que traz a “orelha” do livro, “propõe uma análise das possíveis relações entre invisibilidade social e marginalização da proteção justrabalhista. Fruto da dissertação de mestrado da autora, a obra parte das condições e da organização do trabalho de coletores e varredores na limpeza urbana do Distrito Federal para situar o reconhecimento da existência desses sujeitos como pressuposto para a concretização do direito fundamental ao trabalho digno”.

Logo que fendida a dissertação, tendo participado da banca examinadora, transformei a minha arguição em Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/a-dimensao-da-saude-no-direito-fundamental-ao-trabalho-digno-uma-analise-justrabalhista-do-trabalho-na-limpeza-urbana-do-distrito-federal/.

Do que ali trouxe para anunciar o belo trabalho de Helena, até como sugestão para editores, destaco um trecho, sobre indicar a nota de singularidade do trabalho então apresentado.

Com efeito, já então apontava para o que considerava sensível, mobilizado e criterioso estudo desenvolvido pela Autora valida sobre qualquer fundamento a Dissertação que ela apresenta e que, como um estudo de caso, é única e como análise, exemplar. Não digo que seja uma lacuna, mas considero que enriqueceria muito o seu trabalho acrescentar às suas leituras o extraordinário Cidadania e Inclusão Social. Estudos em Homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin (PEREIRA, Flávio Henrique Unes; DIAS, Maria Tereza Fonseca. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008). Toda a obra é de interesse para a Dissertação e para sua futura publicação, mas são ainda valiosos por ampliarem o que ela já obteve de referências em leituras de fundo, os textos de Maurício Godinho Delgado – Direito do Trabalho e inclusão social: o desafio brasileiro (p. 495-510); de Gabriela Neves Delgado, sua orientadora – A constitucionalização dos direitos trabalhistas e os reflexos no mercado de trabalho, cujo fio condutor é a referência axiológica ao conceito de dignidade do ser humano e ao patamar civilizatório mínimo do direito ao trabalho digno (p. 145-154). E o precioso texto de Márcio Túlio Viana – Os não-lugares do Direito: uma pesquisa em classe com trabalhadores de rua (p. 367-376). Nesse texto, com riqueza de estilo e intensidade narrativa, o querido mestre faz o direito andar nas ruas para recuperar nas histórias de vida, os projetos frustrados, do gritador, dos malabaristas, da mulher do cabide, as filha dela, do engraxate. Tipos humanos aos quais se poderiam agregar os tigres e os lixeiros, que a Autora nos apresenta em sua Dissertação.

Em si, e em seu modo de apresentação, entendo que a Autora não só toma posição, como aponta desafios aos operadores do Direito e aos agentes políticos na direção de convocá-los a compromissos de aplicação e de interpretação do Direito do Trabalho, como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso.

E então grifava que, se se pudesse acrescentar questões para a Autora, eu diria, aliás, como questões que também me proponho. Estarão esses operadores e esses agentes à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos julgados tem assentado a irrenunciabilidade e a reparabilidade do projeto de vida frusPlaPlaPltrado. Indiquei com Antonio Escrivão Filho, em nosso livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), várias aplicações desse fundamento para orientar formas de reparação, reivindicáveis em sede de litígio estratégico em direitos humanos. Assim como recuperei formas de resistência e de intransponibilidade, mesmo no Supremo tribunal Federal em tempos de ditadura, para lembrar com Victor unes Leal a necessidade que tem a jusrisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato”.

Repito a questão: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, nesse 27 de março de 2020?

Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, conforme sustenta a Autora, em sua conclusão, e buscar (p. 144) “para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?

Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.

No curso dessa primeira leitura juntei um Pós-Escrito de Helena Martins de Carvalho que ela agregou ao trabalho, após a Defesa da Dissertação:

O Professor brinda-nos com a seguinte provocação: “estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional?

Conforme menciona a Professora Gabriela Neves Delgado, a marcha civilizatória é marcada por um movimento pendular de recuos e avanços permanentes, dinâmica que se irradia por todas as instituições, inclusive a Justiça do Trabalho.

Nesse contexto, a edição da Lei n.º 13.467/2017, denominada de “Lei da Reforma Trabalhista”, descortina um movimento de juízas e juízes dissidentes do eixo axiológico próprio que justificaria a existência de um direito material e processual do trabalho dissociado da matriz civilista.

Isso porque a flexibilização trabalhista consagrada pela Lei n.º 13.467/2017, cujo escopo é a ampliação irrestrita da autonomia privada para regular, inclusive, direitos trabalhistas indisponíveis, desconsidera a assimetria inerente às relações sociais entre capital e trabalho. Avilta, ainda, o papel central que a composição dessa desigualdade ocupa no desenvolvimento da sociedade e da economia, e que confere à Justiça do Trabalho seu caráter teleológico.

A aplicação literal da Lei n.º 13.467/2017, dissociada de critérios científicos de interpretação da norma a partir dos métodos lógico-racional, sistemático e teleológico, acaba por materializar uma atuação institucional da magistratura trabalhista na defesa dos interesses do capital, e não no reconhecimento da centralidade do valor trabalho no desenvolvimento da pessoa humana a nível individual e como ser social.

Nesse contexto, é preciso que as alterações legislativas promovidas pela ideologia neoliberal na regulamentação do mundo do trabalho sejam analisadas conforme o eixo civilizatório de proteção ao trabalho humano previsto no ordenamento constitucional e internacional.

No entanto, as expectativas civilizatórias que recaem sobre a magistratura trabalhista não se limitam a esse olhar para dentro do ordenamento jurídico sistematicamente considerado.

É preciso que juízas e juízes do trabalho andem nas ruas, a fim de compreenderem as peculiaridades inerentes às diversas dimensões de corporificação das relações sociais entre capital e trabalho.

Especificamente no que tange ao trabalho invisível, a Justiça do Trabalho vem promovendo esse olhar para fora e para o outro tanto em iniciativas a nível nacional como regional.

No ano de 2019, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT), sob direção do Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, incluiu a disciplina “Os magistrados e a invisibilidade social” no conteúdo programático dos 24º e 25º cursos de formação inicial de magistrados.

 Na mesma linha de prestígio à formação humanista da magistratura trabalhista, os Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e 4ª Regiões implementaram projetos de vivência prática da invisibilidade social, por meio dos quais juízas e juízes experimentaram, por um dia, o cotidiano de trabalhadores marginalizados do reconhecimento social, tais como varredores na limpeza urbana.

Verifica-se, assim, que o movimento histórico de fluxos e contrafluxos de progressividade e conservadorismo reflete na atuação institucional da magistratura do trabalho que se, de um lado, adere ao projeto neoliberal de desmonte do valor trabalho, de outro, prestigia a concretização do direito fundamental ao trabalho digno a partir da formação humanista de juízas e juízes.

            Na publicação do livro percebo que isso que foi colocado no post scriptum foi trazido para a obra, ainda que nos limites de inserção já que avançar nesses aspectos implicaria alterar a própria estrutura da publicação. De certo modo é o que diz Helena na Nota da Autora inscrita na abertura do livro, advertindo que “o abismo existente entre as condições de trabalho de coletores e varredores de lixo urbano precisa ser compreendido como o núcleo essencial do direito fundamental ao trabalho digno, entretanto, reconhecendo “a necessidade de desenvolver e aprofundar a pesquisa, tendo como ponto de partida a intensificação da precarização do trabalho com o lixo”.

 Sobre os aspectos que me levavam a desconfiar da capacidade de resposta dos operadores de Direito, tenho que o prefácio trazido ao livro oferecido pelo Ministro Lelio Bentes Corrêa, que atrás já colhi um excerto, é uma resposta credível. Diz o Ministro:

Com franqueza, expõe as consequências nefastas de tal atitude, inclusive o seu caráter discriminatório, tendente a perpetuar uma situação de injustiça social, flagrantemente contrária aos princípios e direitos fundamentais em que alicerçada a nossa República.

Ao fim desse processo, encontramo-nos cara-a-cara com nossas consciências. Conhecemos o fenômeno, que ocorre diuturnamente à nossa frente, mas é escamoteado por ‘percepções pré-reflexivas que sustentam a invisibilidade social (…)’. Confrontados com as suas consequências nefastas, não podemos mais aplacar nossas consciências com o bálsamo fácil da ignorância. Desnudada a face crua da realidade de abandono e discriminação, somos necessariamente conduzidos a uma escolha: ou reconhecemos que, ainda que por omissão, nos tornamos parte de uma estrutura opressora e injusta, que milita ativamente contra valores fundamentais expressamente consagrados na Constituição da República (especialmente a dignidade humana e o valor social do trabalho e da livre iniciativa), ou saímos do imobilismo para a ação, a fim de restabelecer a coerência entre o(s) discurso(s) e a prática.

Não será vã essa tomada de consciência e essa convocação para uma hermenêutica operante que tire do seu conforto adjudicador um aplicador do direito e da justiça, imobilizado na ilusão de seu melhor mundo, como um Pangloss denunciado por Voltaire. Aqui, a chamada à consciência que não se omita e que se ponha na atitude de mediador para o cumprimento das promessas da Constituição de concretizar a dignidade humana no mundo do trabalho, é vocalizada por um Ministro do TST – Tribunal Superior do Trabalho, que acaba de ascender à sua Presidência.

Só por levar a afirmação dessa atitude, em se tratando de um operador instalado em lugar tão estratégico, vale fazer circular com muita intensidade, o livro de Helena Martins de Carvalho que ajuda a varrer para cima do tapete. Com sua disposição sentipensante, ela opera um tanto como o poeta, ao modo de pura inauguração de um outro universo (Manoel de Barros, O Livro das Pré-Coisas, in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010), instalado por um sujeito que se faz protagonista, já podendo varrer o lixo para cima do tapete, porque deixa de ser um nada, um invisível (de novo Manoel de Barros, (O Guardador de Águas, in Poesia Completa, cit.), assumindo já não ter o medo da lucidez.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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