Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
O Direito Achado na Favela – A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal. Osias Pinto Peçanha. Rio de Janeiro: Editora Processo, Edição: 1ª, 2022, 170 p.
Conforme a descrição preparada pela Editora, a pesquisa que originou esta obra tem, pelo menos, dois objetivos. Como objetivo declarado, o propósito foi investigar a existência de práticas legais dentro de microssistemas sociais. Práticas não necessariamente postas pelo Estado, mas que funcionam nesses locais, favelas e demais regiões periféricas, como instrumentos de pacificação de conflitos. O objetivo não expressamente declarado é mostrar a existência de vida cidadã e busca por dignidade nas regiões tradicionalmente não contempladas por adequado investimento público. O morador de favelas e demais periferias titula, consome, é tributado e contribui para a manutenção do Estado. O mínimo que merece e espera é o acesso efetivo aos bens públicos. O mínimo que merece é respeito.
Elaborar prefácios tem sido uma nota característica de minha produção intelectual recente. Em parte, o grisalho da carreira deixou uma trilha demarcada por mais de quarenta anos de docência, num percurso feito em conjunto com muitos caminhantes, num andamento recortado pela orientação ou pela discussão sobre mais de duas centenas de monografias, dissertações e teses.
Certamente um ofício, mas muito em geral um deleite, um gosto cultivado nas ricas interlocuções e no sempre atualizado aprendizado. Prefácios têm sido o testemunho ou antes, a memória desse enredo de gosto e de trabalho. Tarefa e prazer continuados.
Aqui, um exemplo desse enlace. Prefacio o livro de OSIAS PINTO PEÇANHA. O Direito Achado na Favela: A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal, originalmente uma Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá como requisito para a obtenção do Grau de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Enzo Bello e, com a publicação da obra, me valho do texto para compor este Lido para Você.
Ora, não faz muito, me incumbi de também prefaciar, em primeira e em segunda edições, o livro Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática, obra organizada por Enzo Bello e Rene José Keller, lançada em 2018, pelo selo da Editora Lumen Juris, do Rio de Janeiro.
Ao fazer o prefácio dessa obra, distingui a perspectiva de seus organizadores, de buscar “suprir uma lacuna editorial, condensando temas e estudos que por vezes não passam por um processo de sistematização, com o intento de oferecer aos leitores, dos mais variados níveis e áreas de formação, em linguagem didática e acessível, um curso que tenha por premissa o exame do Direito à Cidade sob a perspectiva crítica”.
E assim, designar aproximações que são mediadas pela Ciência Política, Economia Política, Serviço Social, Sociologia Urbana, Arquitetura e Urbanismo, Geografia e Direito, que as leituras trazidas pelo livro, seguindo um padrão lógico-conceitual comum à construção de cada unidade (capítulos), a obra abrange temas que tratam do Direito à Cidade no Viés Interdisciplinar (Conceito, questões, problemas, contradições, possibilidades), suas Regulações e os desafios da Prática (Envolvendo estudos de casos), que interpelam o Direito Urbanístico na sua exigência de contínua atualização.
Nos tempos sombrios que estamos atravessando, marcados por surtos de desdemocratização e de desconstitucionalização, notadamente no bloqueio ao processo recente de construção social dos direitos, “tempos de cerceamento dos direitos e de tentativas de restrição da sua garantia pela via estatal como forma de favorecer os agentes do mercado, parece oportuno refletir acerca das problemáticas que envolvem a cidade”, dizem os organizadores, a obra assume fortemente a função de peça de resistência, Ela exibe e “projeta grande parte das contradições do modo de produção capitalista, expondo as desigualdades sociais ínsitas a este modo de produção da vida social e sistema econômico”, prestando-se ao enfibramento das consciências que se formam nas lutas por reconhecimento de dignidade e de direitos e que precisam se armar para não recuar das conquistas da cidadania.
Essa é uma das chaves para orientar leituras desses temas, porque em tempos de golpe, é importante resistir e esgrimir o requisito da legitimidade para aferir reconhecimento aos sujeitos que se colocam no protagonismo da política, tal como venho insistindo desde 2016 (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Resistência ao Golpe de 2016: Contra a Reforma da Previdência. In GIORGI, Fernanda et al, orgs, O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência. Narrativas de Resistência. Bauru: Projeto Editorial Praxis/Cabnal6Editora, 2017, pp, 242-246); SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Direitos não são quantidades, são relações (Entrevista), IHU OnLine, Revista do Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, n. 494/ano XV, 2016, pp. 64-72).
Uma outra chave possível é, talvez, contribuir para designar as condições pedagógicas para constituir cidades educadoras (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Cidades Educadoras. Revista do SINDJUS-Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF, Brasília: ano XVII, n. 59, 2009, p. 4), cidades que partam da constatação de que elas tem um governo eleito democraticamente e seu dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Cidade nas quais as pessoas que nelas vivem acabem conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua sociabilidade e vivenciem de forma efetiva a experiência democrática. Cidades que permitam exercitar experiências de sociabilidade, desde as práticas de orçamento participativo, às de educação para a democracia, direitos humanos, cultura de paz, mobilizando redes e instituições que insiram nas regulamentações pactuadas e nas posturas, a lógica da inclusão e da solidariedade.
Num sentido valioso de atualização temática, trata-se de confirmar a necessidade de seguir firme no propósito de enfrentar os desafios teóricos e sociais e, mais ainda no presente, os desafios políticos que se colocam para os que estudam, pesquisam e formulam no campo do direito urbanístico e do direito à cidade.
Há que se continuar a incentivar os estudos e pesquisas, no âmbito acadêmico, acolhendo e oferecendo direções epistemológicas para a designação de temas e questões pontuais, no plano micro, para incentivar trabalhos (teses, dissertações), que contribuam para organizar as novas agendas não só para as teorias críticas, como também para qualificar as lutas urbanas que demandam a construção de repertórios para o melhor conhecimento e a mais orientada direção de intervenções necessárias nesse campo.
Assim pode ser qualificado o livro de Osias Pinto Peçanha. O trabalho tem por propósito pesquisar a existência de práticas jurídicas em grupos sociais ou étnicos e em favelas. Enfatiza a insuficiência da definição normativista do Direito, além do esgotamento do modelo jurídico normativo baseado em uma estrutura excludente e segregadora.
A pesquisa demonstra que países latino-americanos, dada a diversidade étnica e cultural de seus povos, buscaram reconhecer, dentro de seus respectivos marcos territoriais, as diversas nações existentes baseadas em questões de plurinacionalidade, pluriculturalidade e plurijuridicidade.
Inicialmente retrata o cenário e características de uma favela carioca, o Vidigal, expondo alguns aspectos geográficos e etnográficos da região, para que restasse demonstrado o ambiente no qual seria desenvolvida a pesquisa. Ato contínuo, a pesquisa aborda teorias críticas à concepção estatal do direito, além do estudo da legislação pertinente. Por fim, demonstra a busca por novos paradigmas visando a uma concepção jurídica que alcance de forma igualitária todos os sujeitos de direitos, sejam estes coletivos ou individuais.
A pesquisa que lhe deu origem teve como objetivo principal analisar possíveis práticas legais existentes no seio da favela do Vidigal. Referidas práticas legais seriam tanto baseadas no Direito estatal quanto desenvolvidas e aplicadas pelos próprios protagonistas em razão dos objetivos e costumes locais, e podem ser complementares ou até opostos ao Direito oficial. Essas práticas jurídicas não oficiais demonstrariam a existência de um direito achado na favela, externando a possibilidade de uma espécie de pluralismo jurídico oriundo de uma nova fonte de normatividade e legitimidade.
A partir de observação não participante iniciei estudo investigando as origens e espécies dos conflitos de interesses entre os moradores do Vidigal entre finais dos anos de 2012 e 2015, no período pós-UPP3, como esses moradores administram esses conflitos, como e onde são buscadas as soluções, quais os atores envolvidos na solução dos conflitos, e quais os meios utilizados. Antes mesmo de iniciar a coleta de dados constatei que, dos conflitos de interesse entre os moradores da favela do Vidigal, o tema mais discutido envolve o direito de propriedade da terra, propriedade do espaço e ocupação de espaço. A propriedade discutida nesses conflitos de Unidade de Polícia Pacificadora, programa implementado pelo Governo estadual objetivando a presença do Estado, mediante representação da Polícia Militar, no interior de algumas favelas/comunidades.
Forte no livro a questão do Pluralismo Jurídico com base na qual o Autor quer analisar: (i) se existe um Direito não oficial; (ii) se existir um Direito não-oficial, qual sua legitimidade?; (iii) o Direito é um saber local? No Brasil, seria possível reconhecer o Pluralismo Jurídico?; (iv) as tensões sociais na Favela podem ser resolvidas por um Direito não estatal? (v) há legitimidade nos atores que participam da administração dos conflitos entre osmoradores da Favela?
Conforme ele indica, para desenvolver a pesquisa foi necessário perquirir as razões que levaram ao surgimento, crescimento e fortalecimento das favelas na cidade do Rio de Janeiro; estudar o surgimento da favela do Vidigal, os aspectos relacionados às tentativas de remoção dos moradores e sua luta pela resistência; identificar a existência e conhecer a natureza de conflitos sociojurídicos entre os moradores da favela do Vidigal; levantar e analisar dados relacionados aos conflitos identificados; investigar a legitimidade dos atores envolvidos na pacificação dos conflitos identificados; verificar a existência, ou não, de práticas que caracterizem um Pluralismo Jurídico.
Sinto-me contemplado e em boa companhia, pela aplicação teórica que faz no exame do tema, com base nas contribuições de Boaventura de Sousa Santos e Antonio Carlos Wolkmer sobre o pluralismo jurídico; e no campo teórico-jurídico, no que propõe Roberto Lyra Filho e os vários aportes de O Direito Achado na Rua.
O pluralismo jurídico, que o Autor adota, como uma construção crítica do Direito, opõe-se à concepção normativista-estatal, monista, segundo a qual, em síntese, direito é um conjunto de normas, oriundas do Estado, dotadas de sanção. A teoria pluralista estabelece o Direito como uma construção descolonizante, importante para uma mudança nas estruturas de dominação e controle existentes no Estado, mas não apenas dessa forma. Há pluralismo jurídico também nas práticas legais próprias de povos ou grupos nacionais ou étnicos, baseadas em sua cultura ou costumes, bem como em uma estrutura de plurinacionalidade e pluriculturalidade, existentes no marco territorial do Estado.
Não obstante, há microssociedades ou microssistemas sociais que não estão inseridas nas concepções sociais de plurinacionalidade ou pluriculturalidade, eis que insertas na mesma lógica capitalista-neoliberal do Estado, como no caso das favelas cariocas. Nestas, também são encontradas práticas legais próprias não relacionadas a qualquer mudança de estrutura de dominação ou poder, nem baseada em questões de culturalidade/ancestralidade, mas fundamentadas em costumes locais e no desejo de pacificação e harmonia das relações sociais locais.
Considero o livro uma novidade depois que fui mobilizado pelo trabalho de Adriana Nogueira Vieira Lima: Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade. Porosidades, conflitos e insurgência em Saramandaia. Salvador: EDUFBA, Coleção PPG-AU, 2019, originalmente uma tese prêmio Capes em Arquitetura.
A tese, da qual deriva o livro, diz o seu resumo, “busca analisar a produção de direitos urbanos pelos sujeitos coletivos de direito em um contexto assimétrico de acesso à cidade. Para isso, adota a teoria da pluralidade jurídica como instrumental analítico. Parte-se do pressuposto de que o processo instituinte de direitos urbanos é interescalar e envolve complexas fontes de legitimação que têm na sua base relações de conflito, reciprocidade e autonomia. A pesquisa, que adota uma perspectiva interdisciplinar, foi desenvolvida com base no trabalho de campo realizado no Bairro de Saramandaia, localizado em Salvador, Bahia, Brasil. A etnografia foi eleita como método privilegiado de apreensão da realidade. Essa opção refletiu-se nas relações travadas em campo construídas através de interações e diálogos. Os pressupostos da pesquisa foram analisados através de três eixos que se interconectam: os direitos autoconstruídos pelos moradores face à ausência do Estado na prestação de serviços urbanos; constituição de direitos urbanos através de relações ambíguas com o Estado; e a (des)construção de direitos urbanos: insurgências, conflitos e disputas pelo espaço urbano. A pesquisa revelou que os direitos urbanos autoconstruídos encontram na necessidade de morar o seu principal parâmetro de legitimação social, emergindo daí as características do que denominamos Direito Autoconstruído: flexibilidade, reciprocidade e atrelamento entre forma e substância. Ficou evidenciado ainda que o Direito Autoconstruído ganha força nos processos de interação social, levando os sujeitos coletivos de direito a participarem da construção de um projeto político de transformação social que repercute no modo como ocorre a interação entre as escalas de juridicidades. Os resultados apontam também que as relações de porosidade entre as escalas de juridicidade são marcadas por conflitos, transgressões e permeabilidades e se nutrem das táticas potencialmente insurgentes praticadas pelos moradores. A partir dessa constatação, verificou-se que essas características se comportam de forma diferenciada em Saramandaia a depender do momento e do espaço do Bairro em que ocorrem, predominando relações de conflitos nas fronteiras e limites entre o Bairro e a Cidade. As análises evidenciaram a necessidade do fortalecimento de uma visão plural e democrática do Direito que contribua para o fortalecimento dos sujeitos coletivos e sua capacidade infindável de inventar novos direitos e caminhar em direção ao Direito à Cidade”.
A mim, que participei da Banca e da Comissão da Capes que outorgou o prêmio, a tese não se revelou tão só uma expressão atualizada de um tema com o qual venho me envolvendo desde os começos dos anos 1980 (“Fundamentação Teórica do Direito de Moradia”, in Direito & Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Ano I, n. 2, 1982), mas a constatação, primeiro incluída na pesquisa pioneira (Joaquim Falcão, Invasões Urbanas: Conflitos de Direitos de Propriedade), organizada a partir da Fundação Joaquim Nabuco, quando então já se identificavam as estratégias sociais de acesso à terra urbana traduzidas em demandas às institucionalidades e ao direito positivo legislado e exegeticamente adjudicado, na forma do discurso de legitimidade de um direito justo contra o formalismo de enquadramento dessa matéria no direito civil, no direito processual, no direito administrativo, no direito constitucional e até no direito internacional dos direitos humanos que, ao impulso dos novos movimentos sociais e de direitos achados na rua, insurgentes, abrindo ensejo à constituição de novos campos – o direito urbanístico, de novas formas de reconhecimento cogente em declarações (Habitat) e de um constitucionalismo achado na rua (Silva Junior, Gladstone Leonel da e Sousa Junior, José Geraldo de. O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito. Rev. Direito e Práxis., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.4, 2017, p. 2882-2902).
Os anos seguintes foram pródigos na construção de um campo demarcado pela construção do chamado direito à cidade, num percurso de formulação de muitos instrumentos técnicos, jurídicos, políticos, institucionais demarcado pela organização do Instituto Pólis em São Paulo e sua importante revista de estudos em que cuja organização muitas referências contribuíram para o adensamento desse campo – Ana Amélia Silva, Raquel Rolnik, Nelson Saule Jr, Emília Maricato – servindo à metodologias de pesquisa, de formulação de políticas públicas e de modos de governar, de organizar assessorias jurídicas populares (lembrando aqui o exercício genético e político dos Alfonsins – Jacques e Betânia -, culminando com o desenho que a Constituição de 1988 recepcionou, acolhendo as formulações dos movimentos sociais difundidos pelo país.
Encontro também na abordagem que desenvolvi em Prefácio para o Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador (Elizabeth Santos, coordenação geral et al., Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho, 2012), a condição ontológica a que já me referi, no campo do direito, para responder à tarefa de instrumentalizar as organizações populares para a criação de novos direitos e de novos instrumentos jurídicos de intervenção, num quadro de pluralismo jurídico e de interpelação ao sistema de justiça para abrir-se a outros modos de consideração do Direito (Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Editora Nair, ano I, n. 2, Brasília, 1982; Um Direito Achado na Rua: o direito de morar, Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. 1, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alayde Sant’Anna, O Direito à Moradia, Revista Humanidades, Ano IV, n. 15, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alexandre Bernardino Costa, orgs., Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, Ministério da Justiça/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Brasília, 1998).
Elas dão base, seja enquanto processo para impulsionar a exigência de função social que a propriedade deve realizar, seja para ressignificar a semântica das lutas sociais por acesso à própria propriedade, descriminalizando o esbulho por meio da recusa a se deixar tipificar invasor e politizando o acesso com a retórica da ocupação, desde que atendendo à promessa constitucional de realizar reforma agrária e reforma urbana, tal como referiu referiu Ana Amélia Silva, aludindo à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades” (Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, São Paulo, 1996), consoante ao que indicou, nesse passo, Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a desenvolver (Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995).
É desse modo que Adriana Lima fala de um “direito achado nos becos de Saramandaia em Salvador”, para inferir a luta pela cidade, a partir de incursões singelas que revelam o protagonismo cotidiano para inserir no social novas juridicidades. Aqui é “o direito de laje”, agora positivado e enfim adjudicado a partir de novas decisões judiciais abertas “à exigência do justo, inspiradas em teorias de sociedade e de justiça”. No caso, registre-se recente decisão do judiciário pernambucano, na qual o magistrado constata que casa construída na superfície superior à do pai da autora da ação, carrega a pretensão de aquisição da propriedade e se coaduna ao direito de laje, previsto no art. 1.510-A do Código Civil, incluído pela Lei n. 13.465/2017, que dispõe: “O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”.
Para o magistrado Rafael de Menezes, autor da sentença pioneira nesse reconhecimento, é “óbvio que o ideal na sociedade seria todos terem suas casas separadas e registradas, diante da importância da habitação para a dignidade do cidadão. Mas em face do déficit habitacional que existe no país, o legislador acertou em adaptar o direito a uma realidade social. A sociedade cria o fato pela necessidade, e cabe ao direito regulamentar em seguida. O direito é testemunha das transformações sociais, ele regula o que já existe. A sociedade precisa ter o protagonismo sobre o Estado, não o inverso”.
Para Osias, na favela do Vidigal, microssistema social inserido em uma lógica capitalista-neoliberal, as práticas legais identificadas estão relacionadas à busca da prevenção e repressão de conflitos sociais que possam colocar em risco a paz e harmonia sociais. Essas práticas jurídicas podem ser identificadas como pluralidade jurídica dentro da teoria da construção dialética do Direito à medida em que representam o Direito produzido por aquele a quem o mesmo será aplicado, é o Direito aplicado ao seu protagonista – o povo.
Nesse diapasão, o desafio é pensar a matriz jurídica a partir da construção social de maneira a alcançar o mais amplamente possível as demandas sociais. No que diz respeito às favelas, mesmo que de forma controversa, a positivação do denominado “direito de laje” mostra que é possível admitir a existência de um pluralismo jurídico em microssistemas sociais, o que no caso do Rio de Janeiro são as favelas. Soma-se a isso o fato de não existir registros de quaisquer demandas no Juizado Especial Criminal que abrange a área onde estão localizadas as favelas da Rocinha, Vidigal, Chácara do Céu, Tabajaras, Pavão, Pavãozinho e Chapéu Mangueira.
As práticas legais existentes no ambiente da favela, respeitados os direitos e garantias fundamentais, podem ser consideradas pluralismo jurídico uma vez que este, para sua existência, não depende necessariamente de mudanças na estrutura de poder e dominação. A dinâmica do pluralismo jurídico na favela do Vidigal produz, ainda, o efeito de proporcionar segurança jurídica às transações realizadas entre os moradores, além de promover a prevenção de violações à paz local.
O livro do professor Osias Pinto Peçanha vem agregar sentido e novidade aos estudos do campo. Trata-se de não se perder o impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, para que, lembra J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora Almedina, Coimbra, 1998), não reste o direito “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político” e, deste modo, incapaz de abrir-se a outros modos de compreender as regras jurídicas e de alargar “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.
É nesse passo, agora numa marcha em cuja andadura vem lhe trazer ritmo o trabalho de Osias Pinto Peçanha, com toda a novidade da subjetividade ativa que motivou sua investigação (participante), que se apreende a tônica desse impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, tal como se divisa no projeto O Direito Achado na Rua, exatamente quando se refere ao Direito Urbanístico (conferir nesse sentido Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico] / organizadoras e organizadores, José Geraldo de Sousa Junior… [et al.]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p. – (Série O Direito Achado na Rua; vol. 9). Formato: PDF. ISBN 978-85-230-0930-4. 1. Direito à cidade. 2. Movimentos sociais. 3. Direito urbanístico. I. Sousa Junior, José Geraldo de (org.). II. Série. CDU 34:711(81). Para acesso livre à obra, ver (https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17). E sobre a publicação, aqui neste espaço Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/.
O que se tem é que O Direito Achado na Rua e o Direito Urbanístico se retroalimentam ao longo das suas trajetórias — seja por razões temporais, seja por razões territoriais —, pois é no espaço urbano que se verifica com mais intensidade a emergência de novos sujeitos coletivos capazes de reivindicar e produzir direitos no país.
Nos idos de 1998 ingressei no curso de Direito e conheci o livro O que é Direito, de Roberto Lyra Filho (cujo exemplar ainda guardo com carinho). Em 2015, objetivando ingressar no Mestrado, conheci o projeto O Direito Achado na Rua, coordenado pelo Professor José Geraldo de Sousa Jr, da UnB. Conheci pessoalmente o Professor José Geraldo em finais de 2019, quando participei do Seminário Internacional pelos 30 anos de O Direito Achado na Rua, naquela Universidade. Ao ouvi-lo naquele evento fiquei admirado com tamanha sabedoria. Admirável!!!
Agora, o ilustre Professor muito me honrou prefaciando meu livro. Sou infinitamente grato.
O livro O que é Direito e o projeto O Direito Achado na Rua me inspiraram, e ainda inspiram, a pensar o Direito e a indagar: o que é Direito? Onde está o Direito?