por José Geraldo de Sousa Junior – Jornal Brasil Popular/DF
A tônica do noticiário da morte do General Newton Cruz é a de memória de truculência. Pelas funções que exerceu, no Sistema Nacional de Informações (SNI), sempre associado à incriminação de opositores políticos ao Regime Militar e aposições controversas e, no limite, violentas, que lhe valeram acusações formais, entre elas, a tentativa de atentado a bomba no Riocentro, em 1981, na qual morreu um dos aurores do atentado enquanto outro ficou gravemente ferido, ambos vinculados à cadeia de comando encabeçada pelo General.
Há outras ocorrências criminosas durante a Ditadura, a ele atribuídas, algumas derivadas de dossiês como o preparado pelo jornalista Alexandre Von Baumgarten, acusando o SNI de planejar a sua morte, que veio de fato a ocorrer, por assassinato, enquanto um dossiê publicado pela revista Veja o apontava como o mais interessado na morte do jornalista. O certo é que ele foi julgado pelo crime e absolvido em 1992, assim como foi denunciado pelo Ministério Público Federal em 2014, por participação no atentado do Riocentro, beneficiando-se por um habeas corpus que o incluiu entre outros envolvidos. Em 2014 a Comissão da Verdade, em seu Relatório, o apontou como um dos 377 militares que cometeram crimes durante a ditadura.
A truculência, em modo agressivo, é que notabilizou a sua figura, seja no trato pessoal, sobretudo com jornalistas, e mais emblematicamente quando, titular do Comando Militar do Planalto, foi incumbido da execução de medidas de emergência adotadas sobre Brasília, para inibir a deliberação sobre emenda que propunha eleições diretas para a Presidência da República (1983), comandou pessoalmente, a cavalo e de relho nas mãos, ações repressivas sobre a liberdade de circulação, de manifestação e de reunião na cidade.
Assim, aqui em Brasília não pode se instalar um dos comícios pelas Diretas Já, que se realizavam país a fora e na ação mais frontal, o General, na condição de Executor das Medidas, determinou a intervenção policial na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), logo após a Entidade, considerando a inconstitucionalidade da Medida, ter feito realizar Encontro de Advogados. O Encontro havia sido programado antes da adoção das medidas, mas é evidente que ele veio a se tornar ambiente para a crítica à exceção que caracteriza regimes autoritários, cuja continuidade se faz pela violência nas suas formas extremadas: a violência contra a palavra (a censura); a violência contra a pessoa (a tortura), a violência contra a vida (o exílio, o banimento, o assassinato político).
Todas essas práticas tomaram a fisionomia de personalidades atuantes do regime – civis e militares – sobretudo nos organismos de segurança e de repressão, liberados pela elasticidade, sem controle judicial ou por meio de controle leniente, de uma legislação de exceção designada como de segurança nacional. O General era uma das faces, entre as mais agressivas, desse sistema, inteiramente revelado pela Comissão da Verdade (e infelizmente incompleta, por não ser também de Justiça), e o trabalho meticuloso de Comissões instaladas com a democratização e a reconstitucionalização do País, que fez o retrato desse regime cruento: Comissão de Anistia e Comissão de Mortos e Desaparecidos. Na Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, em que pese a anistia, nunca foram resgatados os corpos de seus desaparecidos, apesar de tudo, vivos e presentes na memória de tantos que lutam por verdade, justiça e pelo nunca mais: Ieda Santos Delgado e Paulo de Tarso Celestino (do curso de Direito) e Honestino Guimarães, presidente da Federação dos Estudantes (do curso de Geologia).
Paradoxalmente, nos eventos de execução das Medidas de Emergência, o General deu causa a um incidente grave, que considero uma fratura na ossatura do regime de exceção: a interdição da Sede da OAB e, logo em seguida, depois de levantada a interdição, o atentado ao edifício para o sequestro de uma placa alusiva a seu ato ilegal, mesmo para os padrões da exceção, clandestino e de força.
Esses fatos estão bem documentados e foram reunidos em autos judiciais que a OAB promoveu. Na página WEB da Entidade em Brasília, há um registro desses eventos:
“Em 1983, já funcionando em sede própria inaugurada pelo então presidente Maurício Corrêa, a Seccional tornou-se um dos centros de discussões para a almejada representação política do Distrito Federal. Ganhava força o movimento das Diretas-Já.
Contudo, como última demonstração de força ante o crescimento dos movimentos políticos em defesa da redemocratização, o regime submeteu o Distrito Federal a medidas de emergência no dia 24 de outubro de 1983 com uma série de restrições às liberdades. Teatralmente, o executor dessas medidas, general Newton Cruz, que comandava as tropas a cavalo, ordenou a invasão da sede da OAB/DF.
No dia anterior, a entidade promovera o I Encontro de Advogados do DF, interpretado pelas autoridades como uma afronta à proibição de reuniões políticas. Na invasão, agentes da Polícia Federal apreenderam fitas supondo tratar-se do registro do encontro, quando na verdade elas continham músicas. Os documentos relativos ao encontro foram salvos, e neles se destacavam a efetiva a participação dos advogados brasilienses na luta em defesa da democracia, além do forte repúdio ao decreto das medidas de emergência. Os advogados reiteravam, ainda, a necessidade de se convocar uma Assembleia Nacional Constituinte para garantir a reconquista da legitimidade do Poder no país.
No dia seguinte, dez viaturas do setor de Operações Especiais da Secretaria de Segurança cercaram as vias de acesso à Seccional, e em mais um espetáculo de arrogância o delegado da 2ª Delegacia de Polícia do DF, João Alvares Bimbato, comunicou a decisão de interditar o prédio, bem como de proibir todas as atividades internas, inclusive administrativas.
Ao se recusar a assinar o termo de ciente daquele gesto, que classificou como um “ultraje” à advocacia brasileira, o presidente Maurício Corrêa criou uma situação de impasse. Todas as pessoas ali presentes, inclusive jornalistas que faziam cobertura do caso, ficaram retidas por quase uma hora.
Então, num gesto espontâneo memorável, os advogados desceram as escadarias dos quatro andares do prédio e encaminharam-se, de braços entrelaçados, até o pátio onde estavam hasteadas as bandeiras do Brasil e da OAB. Ali postados, entoaram o hino nacional, desafiando as autoridades que, envergonhadas, se dispersaram. Diante da repercussão nacional, o general Newton Cruz chegou a admitir “excesso de zelo” da polícia. O prédio foi, então, liberado”.
A repercussão não foi apenas nacional. Naquele dia, em seguida ao Encontro e correndo os rumores de invasão iminente, os advogados, num impulso espontâneo, acorreram à Sede da Entidade, engravatados e vestidos com a toga da coragem, permaneceram até o desenlace em volta de seu Presidente. Implementaram durante toda a manhã e à tarde, mensagens de telex (não havia computadores pessoais, nem internete nesse tempo) dirigidas a mais ampla lista nacional e internacional de destinatários, informando e convocando solidariedade. No prédio, uma equipe móvel da Rede Globo liderada pelo jornalista Paulo José Cunha, também professor da UnB, que veio pela pauta de entrevista sobre o Encontro, documentou todo o evento e contribuiu para o registro memorialista desse episódio que vulnerabilizou o Regime desnudado em sua prepotência e irracionalidade.
A foto que ilustra essa matéria perenizou esse momento e foi uma das mais difundidas no mundo na ocasião. Ela orna a tradicional ala de acesso às salas da diretoria do quarto andar da sede da OAB/DF, que se transformou em um espaço histórico com a denominação de Galeria Sigmaringa Seixas, em homenagem ao advogado Antônio Carlos Sigmaringa Seixas, que dirigiu a Ordem de 1973 a 1975, e seu filho Luís Carlos Sigmaringa Seixas, conselheiro da Seccional e deputado constituinte, na foto ladeando o Presidente Maurício Correia.
Nem o bonapartismo ousara intervir no Barreau (Ordem dos Advogados). A prepotência tentara no Brasil. Recuou. Num ato de autoridade, o General Presidente rendido, declarou publicamente que mandara extinguir o inquérito contra os advogados Maurício Corrêa (OAB/DF) e José Paulo Sepúlveda Pertence (Conselho Federal da OAB). Não tinha esse poder. Era bravata. O Presidente do Inquérito precisou produzir o ato de arquivamento doinquérito. A violência se curvou à Política; a exceção ao Direito. A História julgará todos porque não nos esquecemos, não deixaremos que de novo aconteça.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
Foto da capa/legenda: Sigmaringa Seixas está à direita do então presidente Maurício Correa (ao centro), defendendo a Seccional da interdição, por militares, em 1983.
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).