Esse texto é sobre o direito de nascer, de viver, de parir e ser mãe. O direito de ter uma família, o direito de envelhecer ao lado dos seus e de vê-los envelhecer também. Esse texto é também uma tentativa de desnaturalizar a existência de um pacto social paralelo que autoriza a morte das populações que vivem nas favelas e periferias do país.
Por Paula Guimarães
Kathlen Romeu, 24 anos, grávida de quatro meses, teve a vida violentamente interrompida ao ser atingida no peito com um tiro de fuzil disparado por policiais militares no Rio de Janeiro, nesta terça-feira (8). O bairro onde ocorreu a tragédia, constantemente anunciada por movimentos negros, é o Lins de Vasconcelos, localizado na Zona Norte, um dos poucos onde ainda há Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP.
Familiares e moradores que testemunharam o fato afirmam que os tiros partiram da polícia militar. Confiante de sua legitimidade para matar, o comando da PM deu a resposta de sempre, que se tratou de um confronto. Ainda que o número de tiroteios tenha diminuído no último ano, devido à ADPF das Favelas, a letalidade policial continua em patamares incompatíveis com um país democrático.
Nem a especificidade deste fato faz dele um caso isolado. Nos últimos três anos, a plataforma Fogo Cruzado mapeou um total de 15 mulheres grávidas baleadas na região metropolitana do Rio; 8 delas morreram e 9 bebês não resistiram.
A morte da designer de interiores é a explicitação de um país que deliberadamente aniquila parte expressiva da sua população: seja de Covid, de fome ou de bala, conforme denunciado nos protestos recentes e históricos. As polícias brasileiras e a institucionalidade que a cerca retroalimentam uma autorização formal, ainda que sustentada na insegurança jurídica, para a morte de certas pessoas e essas pessoas são negras e pobres, alijadas desse Estado democrático de direito que soa falacioso demais diante de uma perversidade como essa.
Essa autorização habita com bastante fluidez o campo da legalidade em sua instância burocrática, enquanto se mantém pactuada em um imaginário social retroalimentado por narrativas harmônicas entre empresas jornalísticas, instituições estatais e grupos econômicos. É o tiroteio, já tão comum, a ação policial, a morte em confronto, expressão que traz o carimbo da legítima defesa, ou ainda o auto de resistência, termo abolido justamente por se tratar de um ato administrativo, instaurado à época da ditadura militar, que acobertou grupos de extermínio, principalmente no Rio de Janeiro.
Ainda que o instituto do auto de resistência não tenha mais validade no campo formal, os aparelhos do Estado, incluindo a mídia empresarial tradicional, não deixam de preservá-lo sob o verniz de ação de segurança, produzida na calada da noite ou abertamente, à luz do dia, como temos visto.
Essa eugenia vestida de legalidade não se trata de um projeto político, porque já está em execução há muito tempo: é uma política de Estado. Política que ganhou o corpo de um novo contrato social, também informal, assinado por parcela da população que elegeu este presidente sob a consigna de “bandido bom é bandido morto”. Parcela da população que sequer compreende que bandido no Brasil tem classe e cor. E que o corpo e o espaço que ele ocupa o isolam do direito à defesa e justiça legal, incluindo o direito de não ser morto em execução extrajudicial. O direito de não ser bandido (e não ser morto) foi transformado em privilégio.
Em uma das últimas manifestações antidemocráticas, em defesa do governo genocida, exibiram do alto de um avião a faixa com a frase “autorizamos o presidente a limpar o Brasil”. Poucos dias seguintes à mensagem em tom fascista, que foi vista em outras cidades do país, policiais civis executaram 27 pessoas na Favela do Jacarezinho.
Não há coincidência nessa demonstração de força da ala fascista brasileira diante da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de barrar as ações de morte durante a pandemia. Há no Brasil, hoje, uma ação de guerra contra qualquer instância que confronte o abismo que aprofunda a matança dos povos que formam este país. Adensa no país a institucionalização do paramilitarismo, tanto da polícia que age à revelia da lei e sob a pátina da legalidade, quanto a polícia que se conecta às milícias, disputando território com o varejo de drogas para ter vantagens econômicas por meio da coerção da população.
Quem autorizou a morte da jovem Kathlen Romeu e seu bebê ainda no ventre? Certamente jornalistas que escrevem “bandidos mortos em operação da polícia”, indivíduos que comemoram as mortes, as polícias que atiram para matar, o Ministério Público que não exerce o seu dever de controle externo da polícia, a corregedoria que acolhe por ofício todas as teses de legítima defesa das polícias, os governos que endossam, o presidente da república que determina políticas à altura de seu discurso antidemocrático, fascista, racista e eugênico — ainda que muitas dessas palavras sejam sinônimos, é importante demarcá-las.
Quem autorizou a polícia a atirar com seu aparato de guerra, um fuzil, contra o peito de Kathlen? Errou o alvo? Pois, quem atira a esmo, como bem disse a mãe de Kathlen, é bandido. E bandido não recebe salário pago com impostos da população justamente para defendê-la.
Quem autorizou a morte do bebê que nascia para a alegria de Kathlen, do companheiro e de sua família? Quem autorizou esses sonhos não serem mais vividos? Quem tem o direito de autorizar quem deve viver e morrer no país? Quem disputa o Estado para que ele dê o máximo na produção da morte e entregue migalhas na gestão da vida e do bem-estar?
Kathlen e seu bebê morreram em mais uma operação de uma polícia que mata por rotina, em uma guerra alimentada contra populações submetidas a toda forma de exceção, em um conflito forjado no qual não há nenhuma proporcionalidade de poder. Quem apertou o gatilho e quem autorizou a morte de Kathlen precisam ser urgentemente desautorizados e responsabilizados.
A alma deste país está estraçalhada e padece de memória, verdade e justiça para sair desse looping de luto e sofrimento. Minha solidariedade, dor e revolta por Kathelen e por aqueles que assim como ela morreram porque a polícia brasileira está autorizada a matar e com uma frequência insuportável tem acertado o alvo.
Paula Guimarães
Jornalista, cofundadora e diretora executiva do Portal Catarinas.