Por José Geraldo de Sousa Junior
Papa Francisco. Carta Encíclica Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Edições Paulinas, 2020, 213 p.
Trago neste Lido para Você, a Carta Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco. Não porque seja membro da Comissão Justiça e Paz (da Arquidiocese de Brasília) e, como tal, em nossos programas e projetos o magistério de Francisco seja uma diretriz pressuposta. É que esse magistério invariavelmente, em suas exortações, declarações, Cartas Encíclicas, tem feito mais impacto entre homens e mulheres de boa vontade os quais pode dizer-se têm sido o interlocutor de um auditório ampliado, que entre os cristãos ecumenicamente falando e aos católicos em particular que não deveriam se esquivar desses ensinamentos. Entre estes últimos, em tempos controversos, há muito mais objetores a Francisco, que no público ampliado, entre os quais a sua mensagem repercute entre admiração, respeito e acolhimento. Seus críticos, entre os católicos, até mesmo próximos na Cúria Romana, não escondem o mal-estar diante desse Papa que querem ver logo substituído, porque “muito encarnado e da rua”.
Remeto, para uma articulação entre esses documentos, à Conversa de Justiça e Paz, promovida pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=RKUx0nAmqMI), com o tema “8 anos com Francisco: um homem de palavra e de diálogo”, em boa articulação teológica, histórica e filosófica a cargo do historiador e teólogo Sérgio Coutinho.
Como disse, me vejo tocado pelas exortações do Papa Francisco não apenas pela incidência pastoral, mas porque em seus discursos e publicações tenho encontrado fonte consistente para estabelecer fundamentos paras as minhas preocupações mais insistentes com os temas da Democracia, da Cidadania, da Justiça e dos Direitos. Aqui, no espaço da Coluna Lido para Você, têm sido frequentes as citações: http://estadodedireito.com.br/direito-sanitario/ .
Em http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/, de modo muito direto, porque dirigindo-se a juízes e juristas: “Em mais uma de suas proverbiais intervenções, agora aos juízes, em encontro remoto com juristas das Américas e da África – Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América – o Papa Francisco afirmou: “uma sentença justa é uma poesia que repara, redime e nutre” (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html). “Nenhuma sentença pode ser justa, – ele ainda afirmou – se gera mais desigualdade, mais perda de direitos, indignidade ou violência”.
O que considero instigante nessa exortação, é o Papa investir na convocação que faz a uma dimensão poética que imante a crosta asséptica da atuação judicante: “O poeta precisa contemplar, pensar, compreender a música da realidade e moldá-la com palavras. Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.
O Papa, eu disse na Coluna, poesia não é apenas declamar, incluir nas sentenças versos que adornem o discurso, se resumindo a “um punhado de palavras mortas”. Francisco quer encorajar, pois, a atitude sensível na prática e na atitude dos juízes e dos operadores do Direito: “façam de sua poesia uma prática e assim vocês serão melhores poetas e melhores juízes. E jamais esqueçam que uma poesia que não transforma é apenas um punhado de palavras mortas”.
Em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/: “É um alento dar-se conta que por toda parte começa-se a operar um movimento responsável para mudar o estado de coisas que produziu tamanho assombro nos sentidos de nossa existência. Noto com esperança que entre esses movimentos distinguidos ressoa muito convocatoriamente a voz do Papa Francisco, resoluta em vários pronunciamentos, exortações, encíclicas. Agora mesmo, enquanto escrevo, o Vaticano publica a sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2021 a ser celebrado em1º de janeiro de 2021. O Papa retoma o tema da pandemia para lembrar que “o ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenómeno plurissectorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, económica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incómodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao sector privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis. É doloroso constatar que, ao lado de numerosos testemunhos de caridade e solidariedade, infelizmente ganham novo impulso várias formas de nacionalismo, racismo, xenofobia e também guerras e conflitos que semeiam morte e destruição. Estes e outros acontecimentos, que marcaram o caminho da humanidade no ano de 2020, ensinam-nos a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade. Por isso, escolhi como tema desta mensagem «a cultura do cuidado como percurso de paz»; a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer”.
Já em http://estadodedireito.com.br/cidadania-e-contratos-atipicos-de-trabalho/, a remissão é útil para retomar a Rerum Novarum de Leão XIII, que agora em 15 de maio celebrará 130 anos. Assim, vale por em relevo: “Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
De todo modo, o que pretendo por em causa, sintonizado com os elementos trazidos com a Fratelli Tutti, conforme http://estadodedireito.com.br/trabalhadores-pobres-e-cidadania/ , é que “a questão se coloca quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?.
Daí dever-se indagar: Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade?.
Com o pensamento encharcado na leitura da Fratelli Tutti, estabeleci ocasionalmente (não tão ocasionalmente, o professor me esclareceu que havia acompanhado várias manifestações minhas nas redes sociais), com o professor Jorge Arlan de Oliveira Pereira, da Universidade Federal do Mato Grosso, campus de Barra do Garça, mas que me procurou enquanto integrante do coletivo Jufras – Juventude Franciscana Sempre.
Me disse o colega que estava para realizar-se o 8º Encontro Virtual da Juventude Franciscana Sempre, e que gostaria que eu falasse para o Grupo, a partir principalmente de meu percurso na pesquisa do jurídico, notadamente em razão do Grupo de Pesquisa que coordeno O Direito Achado na Rua. Depois de nossa conversa de apresentação o professor me enviou a seguinte proposição:
“Em relação à nossa atividade mais próxima, ou seja, a sua participação no 8º Encontro Virtual da Jufras, a ser realizado na próxima quinta-feira, 08 de abril, às 20h, gostaria de lhe fazer observações bem breves, em complemento ao que havíamos conversado.
Lembro, então, que o grupo Juventude Franciscana Sempre (JUFRAS) diz respeito ao histórico dos seus membros de haverem participado do grupo Jufra (Juventude Franciscana), movido pelos ideais de São Francisco de Assis, no final dos anos 1970 até metade dos anos 1980, na cidade de Santa Maria – RS. O grupo foi, de modo geral, marcante para todos nós naquela época.
Com a disseminação das redes sociais na internet, fomos nos localizando. E resolvemos nos reorganizar, formando um grupo no WhatsApp e promovendo encontros virtuais mensais. Estruturamos, inclusive, diretoria, orientada por um regulamento e identificada por uma logomarca.
O grupo passou a se chamar JUFRAS, acrescentando a letra “S” ao final, para significar que nos sentimos jovens franciscanos “sempre”. Mas este sempre, não tem, por enquanto, uma definição clara, uma vez que não sabemos se e como os valores franciscanos participaram na vida de cada um de nos últimos 40 anos.
De qualquer modo a JUFRAS promoveu o reencontro dos antigos membros da JUFRA, após cerca de quatro décadas, animado por três perguntas:
a) Quem fomos?
b) Quem somos?
c) Quem pretendemos ser?
Elas são atravessadas por uma quarta pergunta: “Como os valores franciscanos, razão do grupo de jovens, participou ou não de nossas experiências de vida nessa longa trajetória, no espaço entre os encontros daquela época e os reencontros de agora?”.
Os encontros virtuais que passamos a realizar hoje têm uma programação estabelecida, prevendo sempre, entre os seus segmentos, uma exposição de temas que nos parecem provocadores. São intercalados expositores internos e externos a cada edição do evento. Assim, podemos saber um pouco da história de cada um dos membros nestes 40 anos e também olharmos juntos para a realidade atual,
A sua exposição, portanto, prof. José Geraldo, se insere neste contexto”.
Combinamos, então, o título de minha exposição: O direito achado na rua: rastros de democracia, justiça e espiritualidade.
Muito organizado e metodológico, o professor Jorge em seguida, me encaminhou um rol de pontos que pudessem “contribuir para o meu direcionamento temático”, a rigor, um decálogo:
“1. Os valores franciscanos podem ser considerados opção cristã radical, numa perspectiva emancipadora e libertadora, a requerer atitudes reflexivas, críticas, porém em posição de simplicidade e humildade. Dilema de difíceis resoluções;
2. Como o direito achado na rua poderia se compatibilizar com os meandros deste dilema?
3. As questões do saber, a expressão das diferentes culturas, assim como o acesso à educação formal, aos serviços de saúde e os cuidados com o meio ambiente, se inscrevem de que modo neste contexto de proposições e dilemas?
4. Vale a pena recordar que São Francisco de Assis estabelecia uma relação de respeito e amor à natureza. Costumava se referir à “irmão Sol, irmã Lua, irmão lobo, irmãos pássaros…”.
5. O Papa Francisco nos parece fazer uma reafirmação dos valores franciscanos em uma poca mais complexa.
6. Os dramas individuais e coletivos diante de uma sociedade que dá sinais de incompreensão a respeito do significado do que se denominou chamar “estado democrático de direito”.
7. Pode a dimensão espiritual do ser humano, ao contrário da sua dimensão física, se tornar mais jovem no decorrer do tempo, com sinais de leveza e vigor?
8. Como as fases da vida de uma pessoa poderiam se relacionar na sua idade madura, quando começa a pesar o conceito de “idoso”?
9. Como o direito achado na rua, bebendo na fonte dos direitos humanos universais, participa da dinâmica da reorganização social dos tempos de hoje?
10. Considere-se que os membros da JUFRAS, em processo de reconhecimento após décadas, sinalizam para visões de mundo distintas. Do ponto de vista ideológico, percebe-se posições militantes de esquerda, posições conservadoras e firmes de direita e posições de centro, identificáveis na manifestação religiosa apenas de oração”.
Para estabelecer com esse Coletivo um vínculo entre suas expectativas e os pressupostos de minha abordagem teórico-política do Direito, dei como referência meu texto “O Direito Achado na Rua: condições sociais e fundamentos teóricos / The Law Founded in the Street: social conditions and theoretical foundations”, publicado na Revista Direito e Práxis, vol. 10, nº 4, 2019 (https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/45688), até para por em relevo as três dimensões epistemológicas de sua concepção, que “consiste em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito:1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade”.
Portanto, trata-se do Direito concebido como liberdade, emancipação e não restrição, vivo, instituinte, emergindo do social e aspirando a formas e modos legítimos de institucionalização, para se constituir como normatividade democrática, afluente, ativada por uma cidadania participativa.
Acode-me nesse passo, a correspondência que se pode estabelecer entre tais expectativas sociais interpelantes, para a determinação do jurídico, enquanto direito achado na rua, direito como emancipação, tal como transparece do lema da Campanha da Fraternidade Ecumênica, de 2016, inscrito em Amós (5.24): “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”.
E que guarda pertinência com aquela filosofia do agir humano, de que fala o padre Henrique Claúdio de Lima Vaz, SJ, no texto com que nos brindou, a nós que organizamos na CNBB, o Seminário Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiaciário (cf. VAZ, Pe. Henrique C. de Lima. Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano. In PINHEIRO, Pe. José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1996). Confira ao final do texto, p. 40: “No momento em que os temas ‘ética e política’ ou o ‘direito de todos e a justiça de todos’ tornam-se temas de sensação nos meios de comunicação de massa, e em que o problema do exercício eficaz da administração da justiça deixa o recinto austero dos tribunais para tornar-se problema social das ruas e dos campos, convém voltar nossa atenção e nossa reflexão para a tarefa primordial da educação ética que é a verdadeira educação para a liberdade. O mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização. Como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado democrático do Direito”.
E, ainda considerando que abrir-se a discussão que parte do social e se projeta para um campo no qual o horizonte subjetivo recebe impulso pneumatológico, em acepção própria teológica, isso não significa subordinar a leitura do jurídico a qualquer enquadramento bíblico (como de resto, maliciosamente, se tem assistido num certo fundamentalismo trazido a questões em curso no Supremo Tribunal Federal), conforme, aliás, me ripostou um dos “jovens” participantes do colóquio a partir de sua formação jurídica assentada em rígido positivismo legalista.
Ao contrário, com Roberto Lyra Filho, meu mestre nesse campo (e em outros mais epistemologicamente complexos), cuida-se de preservar o necessário “diálogo entre o filósofo, o teólogo e o místico, sem prejuízo da especificidade de suas órbitas de atuação, [que] ainda e sempre permanecem unidas e hão de submeter-se, reciprocamente, sob pena de se frustrarem, ao limite radical, a própria busca a que se entregam” (in Filosofia, Teologia e Experiência Mística. Kriteriom: Revista da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, vol. XXII, n. 69, jan/dez – 1976, pp. 136-145). E mais ainda, com Boaventura de Sousa Santos, assimilar “as teologias pluralistas e progressistas [que] podem funcionar como uma fonte de energia radical para as lutas contra-hegemônicas dos direitos humanos” (conforme Se Deus Fosse um Ativista dos Direitos Humanos. São Paulo: Cortez, 2013).
Nesse passo, recuperando o tema proposto para a minha interlocução com o Grupo – O direito achado na rua: rastros de democracia, justiça e espiritualidade, logo me instigou, de um lado, sem dissolver o meu argumento no fundamento teológico, buscar nesses rastros pontos de confluência entre o direito como emancipação e a configuração, segundo os valores franciscanos, de uma religião encarnada, pensando em Francisco e a sua concepção do “mundo como convento” e portanto, de um “carisma missionário” que se expressa como “necessidade de agir”, vale dizer, atuar no mundo para contribuir para fazer “a humanidade mais humana” e o próprio mundo “mais habitável”, que não s mantenha ensombreado “num mundo fechado”, antes abrindo-se aos desafios que se nos apresentam, tal como indica o Papa Francisco no primeiro Capítulo 1, da Fratelli Tutti.
Retiro do Curso Básico sobre o Carisma Missionário Franciscano – Cristianismo, a religião da Encarnação. Redação original em língua alemã Maria Crucis Doka OSF, Patricia Hoffmann, Margarethe Mehren OSF, Andreas Müller OFM, Othmar Noggler OFMCap e Anton Rotzetter OFMCap. Centro Missionário dos Franciscanos (MZF) Tradução para o português Malina Hoepfner RSCJ. Revisão literária Renato Kirchner. Petrópolis: FAMÍLIA FRANCISCANA DO BRASIL. Caixa Postal 90.174 CEP 25621-970, 1994 – a indicação de que segundo esse carisma, a motivação missionária que procede de Francisco (e também de Clara), conduz a exigência de testemunho de um Deus que se intrometa na vida do mundo, na vida da gente. “Um Deus que deseja libertar-nos de todas as formas de servidão e de falta de liberdade”.
Ou seja, impregnando-se de uma espiritualidade profundamente secular, mais ação de leigo que clerical, trata-se de converter-se a um modo de vida que acolha tal como os capuchinhos de Gex acolheram o agnóstico François de Voltaire, menos por sua nenhuma fé mas pela intensa proximidade. Pois, “mesmo sendo verdade que Deus habita a alma humana individual”, é igualmente verdade que Ele “age através da história dos povos”, ao limite do sacrifício, “perante os processos de libertação dos povos e no engajamento em prol de mais justiça e paz”.
Estudando a Fratelli Tutti, mas também em toda linha pastoral de suas manifestações precedentes, não é difícil divisar no Papa Francisco, ainda que se constate que ele é o único Papa depois de São João XXIII que não participou de nenhum modo, presencialmente, do Concílio Vaticano II, nele revelar-se que Francisco de Assis é o tema clandestino das discussões do Concílio, impulsionando a Igreja a evoluir sob seu impulso “evangelizador”(a partir das chaves da opção radical pelos pobres): opção pelos pobres ( e sua libertação integral, que só é possível no tempo presente, através de uma Igreja em saída, que “primereia”, isto é, que toma a iniciativa, conforme o Papa Francisco) , teologia da libertação ou do povo, e uma Igreja em saída.
Frei Betto, em síntese da obra logo que publicada, mostra a Encíclica em seu sentido de “uma aula de espírito crítico, humanismo e esperança” (https://ceseep.org.br/somos-todos-irmaos-e-irmas-frei-betto/). Mas quero registrar uma das leituras mais instigantes da obra, a de Leonardo Boff, na qual estabelece a sua avançada hermenêutica, para concluir que, diz ele: “Estamos inequivocamente diante de um grande sonho, na linha das grandes utopias humanas. Face à gravidade da situação atual, parece, não termos outra alternativa senão consultar o que há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum que nos poderá salvar. De todos os modos, estamos diante de um homem, o Papa Francisco, que por seu exemplo e palavra se alçou à altura de um dos maiores líderes espirituais e políticos da humanidade, senão o maior de todos. Despojou-se dos títulos inerentes à sua alta função como Papa e fez-se irmão de todos para falar como irmão entre irmãos. A exemplo de seu patrono Francisco de Assis, transformou-se também num homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo, cruel e sem piedade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal” (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/604646-a-fratelli-tutti-um-novo-paradigma-de-sociedade-mundial-de-senhor-dominus-a-irmao-frater-artigo-de-leonardo-boff).
É que diz o Papa Francisco logo na abertura da Fratelli Tutti, abrindo as fímbrias de seu coração, qual o de São Francisco, “sem fronteiras”, de “irmão de todos”, (n. 2): “Esse Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a Encíclica Laudato Si’ [e que] volta a inspirar-me para dedicar esta nova Encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram de sua própria carne. Semeou paz por toda parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, enfim, dos últimos”.
Para os objetivos deste Lido para Você, sobre dispor de um bom resumo da Encíclica, valho-me do excelente resumo publicado sob a forma de artigo no sítio do Instituto Humanitas, IHU – Unisinos, pelo diretor da revista La Civiltà Cattolica, Pe. Antonio Spadaro. (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/603448-fratelli-tutti-um-guia-para-a-leitura-da-enciclica-do-papa-francisco-artigo-de-antonio-spadaro). Na sequência, as palavras do resumo são as próprias palavras do autor do artigo.
Fraternidade e amizade social A Fratelli Tutti conjuga, ao mesmo tempo, a fraternidade e a amizade social. Esse é o núcleo central do texto e do seu significado. O realismo que atravessa as páginas dilui todo romantismo vazio, sempre à espreita quando se trata de fraternidade. A fraternidade não é apenas uma emoção, ou um sentimento, ou uma ideia – por mais nobre que seja – para Francisco, mas sim um fato que, depois, implica também a saída, a ação (e a liberdade): “De quem eu me faço irmão?”.
A fraternidade assim entendida inverte a lógica do apocalipse hoje predominante; uma lógica que luta contra o mundo porque crê que ele é o oposto de Deus, ou seja, um ídolo, e portanto deve ser destruído o mais rápido possível para acelerar o fim do tempo. Diante do abismo do apocalipse, não há mais irmãos: apenas apóstatas ou “mártires” em uma corrida “contra” o tempo. Não somos militantes ou apóstatas, mas irmãos todos.
A fraternidade não queima o tempo, nem cega os olhos e os ânimos. Em vez disso, ocupa o tempo, requer tempo. O do litígio e o da reconciliação. A fraternidade “perde” tempo. O apocalipse o queima. A fraternidade requer o tempo do tédio. O ódio é pura excitação. A fraternidade é aquilo que permite que os iguais sejam pessoas diferentes. O ódio elimina o diferente. A fraternidade salva o tempo da política, da mediação, do encontro, da construção da sociedade civil, do cuidado. O fundamentalismo o anula em um videogame.
Uma fraternidade sem fronteiras. A Fratelli Tutti se abre com a evocação de uma fraternidade aberta, que permite que cada pessoa seja reconhecida, valorizada e amada para além da proximidade física, para além do lugar do universo onde nasceu ou onde vive. A fidelidade ao Senhor é sempre proporcional ao amor pelos irmãos. E essa proporção é um critério fundamental dessa encíclica: não se pode dizer que se ama a Deus se não se ama o irmão. “De fato, quem não ama o próprio irmão a quem vê, não pode amar a Deus que não vê” (1Jo 4,20) [5].
Desde as primeiras frases, destaca-se como Francisco de Assis estendeu a fraternidade não apenas aos seres humanos – e em particular aos abandonados, aos doentes, aos descartados, aos últimos, indo além das distâncias de origem, nacionalidade, cor ou religião – mas também ao sol, ao mar e ao vento (cf. nn. 1-3). O olhar, portanto, é global, universal. E assim é o fôlego das páginas do Papa Francisco.
Essa encíclica não podia permanecer alheia à pandemia da Covid-19, que eclodiu inesperadamente. Para além das várias respostas dadas pelos diversos países – escreve o papa –, veio à tona a incapacidade de agir em conjunto, embora possamos nos orgulhar de estar hiper conectados. Escreve Francisco: “Oxalá já não existam ‘os outros’, mas apenas um ‘nós’” (n. 35).
O cisma entre indivíduo e comunidade. O primeiro passo que Francisco dá é o de compilar uma fenomenologia das tendências do mundo atual que são desfavoráveis ao desenvolvimento da fraternidade universal. O ponto de partida das análises de Bergoglio é frequentemente – senão sempre – aquele que ele aprendeu com os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, que convidava a rezar imaginando como Deus vê o mundo.
O pontífice observa o mundo e tem a impressão geral de que está se desenvolvendo um verdadeiro cisma entre o indivíduo e a comunidade humana (cf. n. 30). Um mundo que não aprendeu nada com as tragédias do século XX, sem senso da história (cf. n. 13). Parece haver um retrocesso: os conflitos, os nacionalismos, o senso social perdido (cfr. n. 11), e o bem comum parece ser o menos comum dos bens.
Nesse mundo globalizado, estamos sozinhos, e prevalece o indivíduo sobre a dimensão comunitária da existência (cf. n. 12). As pessoas desempenham o papel de consumidores ou de espectadores, e os mais fortes são favorecidos.
Um estranho na rua. Apesar das densas sombras descritas nas páginas dessa encíclica, Francisco pretende fazer ecoar muitos percursos de esperança, que nos falam de uma sede de plenitude, de um desejo de tocar aquilo que preenche o coração e eleva o espírito para as grandes coisas (cf. n. 54-55). Na tentativa de buscar uma luz, e antes de indicar algumas linhas de ação, Francisco propõe dedicar um capítulo à parábola do Bom Samaritano. A escuta da Palavra de Deus é uma passagem fundamental para julgar evangelicamente o drama do nosso tempo e encontrar saídas. Assim, o Bom Samaritano se torna um modelo social e civil (cf. n. 66).
A inclusão ou a exclusão dos feridos à beira da estrada define todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos. O Santo Padre, de fato, não se detém no nível das escolhas individuais, mas projeta essas duas opções ao nível das políticas dos Estados. No entanto, volta sempre ao nível pessoal por temor de que nos sintamos desresponsabilizados.
Pensar e gerar um mundo hospitaleiro: uma visão inclusiva. O terceiro passo do itinerário que Francisco nos faz dar é aquele que poderíamos definir com o pontífice como o “além”, isto é, a necessidade de ir além de si mesmo. Se o drama descrito no primeiro capítulo era o da solidão do homem consumidor encerrado no seu individualismo e na passividade do espectador, é preciso encontrar uma saída.
E o primeiro fato é que ninguém pode experimentar o valor da vida sem rostos concretos para amar. Aqui está um segredo da autêntica existência humana (cf. n. 86). O amor cria laços e expande a existência. Mas essa “saída” de si não se reduz a uma relação com um pequeno grupo, ou a laços familiares: é impossível entender a si mesmo sem um tecido de relações mais amplo com outros que nos enriquecem (cf. n. 88-91).
Esse amor que é abertura ao “além” e “hospitalidade” é o fundamento da ação que permite estabelecer a amizade social e a fraternidade. Amizade social e fraternidade não excluem, mas incluem. Independem dos traços físicos e morais ou, como escreve o papa, das etnias, das sociedades e das culturas (cf. n. 95). A tensão é para uma “comunhão universal” (n. 95), para “uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros” (n. 96). Essa abertura é geográfica, mas mais ainda existencial.
No entanto, o próprio pontífice percebe, nesse ponto, o risco de um mal-entendido, o do falso universalismo de quem não ama o próprio povo. Também é forte o risco de um universalismo autoritário e abstrato, que visa a homogeneizar, uniformizar, dominar. A proteção das diferenças é o critério da verdadeira fraternidade que não homologa, mas acolhe e faz convergir as diversidades, valorizando-as. Somos irmãos porque, ao mesmo tempo, somos iguais e diferentes: “É preciso se libertar da obrigação de ser iguais”.
A importância do multilateralismo. O papa pede uma mudança de perspectiva radical não só em nível interpessoal ou estatal, mas também nas relações internacionais: a da certeza da destinação comum dos bens da terra. Essa perspectiva muda o panorama, e “podemos dizer que cada país é também do estrangeiro, já que os bens de um território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha de outro lugar” (n. 124).
Além disso – continua o pontífice –, isso pressupõe outro modo de entender as relações internacionais. É claríssimo, portanto, o apelo à importância do multilateralismo, com uma verdadeira condenação de uma abordagem bilateral em que países poderosos e grandes empresas preferem negociar com outros países menores ou pobres: para obter deles maiores lucros (cf. n. 153). A chave é “nos sabermos responsáveis pela fragilidade dos outros na procura de um destino comum” (n. 115). Cuidar da fragilidade é um ponto-chave dessa encíclica.
Um coração aberto ao mundo inteiro. Francisco também fala dos desafios a serem enfrentados para que a fraternidade não permaneça somente como uma abstração, mas ganhe corpo. O primeiro é o das migrações, a ser desenvolvido em torno de quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Com efeito, não se trata de “impor do alto programas assistenciais, mas de percorrer unidos um caminho através destas quatro ações” (n. 129).
Francisco oferece indicações muito precisas (cf. n. 130). Mas, em particular, detém-se sobre o tema da cidadania, assim como havia sido abordado no Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e Convivência Comum, assinado em Abu Dhabi. Falar em “cidadania” afasta a ideia de “minoria”, que carrega consigo as sementes do tribalismo e da hostilidade, e que vê no rosto do outro a máscara do inimigo. A abordagem de Francisco é subversiva com respeito às teologias políticas apocalípticas que vão se espalhando.
Por outro lado, o papa evidencia o fato de que a chegada de pessoas que provêm de um contexto vital e cultural diferente se transforma em um dom para quem as acolhe: é um encontro entre pessoas e culturas que constitui uma oportunidade de enriquecimento e de desenvolvimento. E isso pode ocorrer se se permite que o outro seja ele mesmo.
O critério guia do discurso é sempre o mesmo: fazer crescer a consciência de que ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva. Toda atitude de “esterilização” e isolacionismo é um obstáculo ao enriquecimento próprio do encontro.
Populismo e liberalismo. Francisco continua o seu discurso com um capítulo dedicado à melhor política, aquela posta a serviço do verdadeiro bem comum (cf. n. 154). E aqui aborda de frente a questão do confronto entre populismo e liberalismo, que podem usar os frágeis, o “povo”, de maneira demagógica. Francisco pretende esclarecer imediatamente um mal-entendido, usando uma ampla citação da entrevista que nos concedeu para a publicação dos seus escritos como arcebispo de Buenos Aires. Nós a relatamos na íntegra, porque é central para o discurso.
“Povo não é uma categoria lógica, nem uma categoria mística, no sentido de que tudo o que faz o povo é bom, ou no sentido de que o povo seja uma entidade angelical. É uma categoria mítica. (…) Quando explicas o que é um povo, recorres a categorias lógicas porque precisas de o descrever: é verdade, elas são necessárias. Mas, deste modo, não consegues explicar o sentido de pertença a um povo; a palavra povo tem algo mais que não se pode explicar logicamente. Pertencer a um povo é fazer parte de uma identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais. E isto não é algo de automático; muito pelo contrário: é um processo lento e difícil… rumo a um projeto comum” (n. 158).
Consequentemente, essa categoria mítica pode indicar uma liderança capaz de se sintonizar com o povo, com a sua dinâmica cultural e as grandes tendências de uma sociedade a serviço do bem comum; ou pode indicar uma degeneração quando se muda na habilidade de atrair consensos para o sucesso eleitoral e para instrumentalizar ideologicamente a cultura do povo, a serviço do próprio projeto pessoal (cf. n. 159). Porém, não é preciso sequer enfatizar a categoria mítica de povo como se ela fosse uma expressão romântica e, portanto, como tal, rejeitada em favor de discursos mais concretos, institucionais, ligados à organização social, à ciência e às instituições da sociedade civil.
O que une ambas as dimensões, a mítica e a institucional, é a caridade, que implica um caminho de transformação da história que incorpora tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições profissionais, análise científica, procedimentos administrativos. O amor ao próximo, de fato, é realista. Portanto, é necessário fazer crescer tanto a espiritualidade da fraternidade quanto a organização mais eficiente para resolver os problemas: as duas coisas absolutamente não se opõem. E isso sem imaginar que existe uma receita econômica que possa ser aplicada igualmente a todos: até a ciência mais rigorosa pode propor caminhos e soluções diferentes (cf. n. 164-165).
Os movimentos populares e as instituições internacionais. Nesse contexto, Francisco fala tanto dos movimentos populares quanto das instituições internacionais. Parecem dois níveis opostos e divergentes de organização, mas, no fim, são convergentes na sua virtuosidade, pois valorizam o local, os primeiros, e global, os segundos, e sempre sob a insígnia do multilateralismo. Os movimentos populares “reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos” (n. 169). Com esses movimentos, supera-se “a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida num projeto que reúna os povos” (ibid).
Depois, Francisco se detém sobre as instituições internacionais, hoje enfraquecidas, sobretudo porque a dimensão econômico-financeira, com características transnacionais, tende a predominar sobre a política. Entre elas, a Organização das Nações Unidas, que deve ser reformada para evitar que seja deslegitimada e para que “seja possível uma real concretização do conceito de família de nações” (n. 173). Ela tem como tarefa a promoção da soberania do direito, porque a justiça é “um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal” (ibid.).
A melhor política não está submetida à economia. Francisco, então, se detém longamente sobre a política. Várias vezes o pontífice lamentou como ela está submetida à economia, e esta, ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pelo contrário, é a política que deve ter uma visão ampla para que a economia seja integrada em um projeto político, social, cultural e popular que tenda ao bem comum (cf. n. 177 e 17).
Fraternidade e amizade social não são utopias abstratas. Exigem decisão e a capacidade de encontrar caminhos que assegurem a sua real possibilidade, envolvendo também as ciências sociais. E esse é um “exercício alto da caridade” (n. 180).
O amor, portanto, se expressa não só em relações face a face, mas também nas relações sociais, econômicas e políticas, buscando construir comunidades nos diversos níveis da vida social. Trata-se daquilo que Francisco chama de amor social (cf. n. 186). Essa caridade política pressupõe o amadurecimento de um senso social em virtude do qual “cada um é plenamente pessoa quando pertence a um povo e, vice-versa, não há um verdadeiro povo sem referência ao rosto de cada pessoa” (n. 182). Em suma: povo e pessoa são termos correlatos.
O amor social e a caridade política expressam-se também na plena abertura ao debate e ao diálogo com todos, até mesmo com os adversários políticos, pelo bem comum, para tornar possível a convergência pelo menos sobre alguns temas. Não é preciso temer o conflito gerado pelas diferenças, até porque “a uniformidade gera asfixia e neutraliza-nos culturalmente” (n. 191).
E é possível viver isso se o político não deixar de se considerar um ser humano, chamado a viver o amor nas suas relações interpessoais cotidianas (cf. n. 193) e se souber viver, sim, a ternura. Esse vínculo entre política e ternura parece inédito, mas é realmente eficaz, porque a ternura é “o amor que se torna próximo e concreto” (n. 194). Em meio à atividade política, os mais frágeis devem provocar ternura e têm o “‘direito’ de arrebatar a nossa alma, o nosso coração” (ibid.).
Diálogo e cultura do encontro. Francisco resume alguns verbos usados nessa encíclica em uma única palavra: diálogo. “Em uma sociedade pluralista”, escreve o pontífice, “o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional” (n. 211).
Mais uma vez, expressa-se uma visão peculiar da amizade social, feita a partir do constante encontro das diferenças. O papa observa que este é o tempo do diálogo. Todos trocam mensagens nas mídias sociais, por exemplo, graças à rede. No entanto, muitas vezes o diálogo se confunde com uma febril troca de opiniões, que, na realidade, é um monólogo no qual predomina a agressividade. Ele também observa com precisão que esse é o estilo que parece prevalecer no contexto político, que, por sua vez, tem um reflexo direto na vida cotidiana das pessoas (cf. 200-202).
Diálogo absolutamente não significa relativismo, que fique claro. Como já havia escrito na encíclica Laudato si’, Francisco afirma que, se o que importa não são as verdades objetivas nem os princípios estabelecidos, mas sim a satisfação das próprias aspirações e das necessidades imediatas, então as leis serão entendidas apenas como imposições arbitrárias e obstáculos a serem evitados. A busca dos valores mais altos sempre se impõe (cf. nn. 206-210). O encontro e o diálogo tornam-se assim uma “cultura do encontro”, que significa a paixão de um povo em querer projetar algo que envolva a todos; e que não é um bem em si, mas é um modo de fazer o bem comum (cf. nn. 216-221).
Percursos de um novo encontro: conflito e reconciliação. Francisco, então, dirige um apelo a lançar sólidas bases para o encontro e para iniciar processos de cura. O encontro não pode se fundamentar em diplomacias vazias, discursos duplos, dissimulações, formalismo… É somente a partir da verdade dos fatos que pode nascer o esforço de se compreender reciprocamente e de encontrar uma síntese para o bem de todos (cf. nn. 225-226).
O papa considera que a verdadeira reconciliação não foge do conflito, mas é obtida no conflito, superando-o através do diálogo e da negociação transparente, sincera e paciente (cf. n. 244). Por outro lado, o perdão não tem nada a ver com renunciar aos próprios direitos diante de um poderoso corrupto, de um criminoso ou de alguém que degrada a nossa dignidade. É preciso defender fortemente os próprios direitos e proteger a própria dignidade (cf. n. 241). Acima de tudo, não se deve perder a memória dos grandes crimes da história: “Hoje é fácil cair na tentação de virar a página, dizendo que já passou muito tempo e é preciso olhar para a frente. Isso não, por amor de Deus! Sem memória, nunca se avança” (n. 249).
Guerra e pena de morte. Nesse quadro, Francisco examina duas situações extremas que podem se apresentar como soluções em circunstâncias dramáticas: a guerra e a pena de morte. O pontífice é claríssimo ao tratar os dois casos. Em relação à guerra, ele afirma que infelizmente não é um fantasma do passado, mas uma ameaça constante. Portanto, deve ficar claro que “a guerra é a negação de todos os direitos e uma agressão dramática ao meio ambiente” (n. 257).
Ele também aborda a posição do Catecismo da Igreja Católica, onde se contempla a possibilidade de uma legítima defesa por meio da força militar, com o pressuposto de demonstrar que existem algumas rigorosas condições de legitimidade moral. No entanto – escreve Francisco – facilmente caímos em uma interpretação ampla demais desse direito.
A respeito da pena de morte, Francisco retoma o pensamento de João Paulo II, que afirmou de maneira clara na encíclica Evangelium Vitae (n. 56) que ela é inadequada no plano moral e não é mais necessária no plano penal. Francisco também se refere a autores como Lactâncio, Papa Nicolau I ou Santo Agostinho, que, desde os primeiros séculos da Igreja, se mostravam contrários a essa pena. E afirma com clareza que “a pena de morte é inadmissível” (n. 263), e que a Igreja se compromete com determinação a propor que ela seja abolida em todo o mundo. E o julgamento também se estende à prisão perpétua, que “é uma pena de morte escondida” (n. 268).
As religiões a serviço da fraternidade no mundo. A última parte dessa encíclica é dedicada às religiões e ao seu papel ao serviço da fraternidade. As religiões acumulam séculos de experiência e de sabedoria, e, portanto, devem participar do debate público, assim como da política ou da ciência (cf. n. 275).
Por isso, a Igreja não relega sua missão à esfera privada. “É verdade”, especifica, “que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência” (n. 276). A Igreja, portanto, tem um papel público que também contribui para a fraternidade universal (cf. ibid.).
A fonte da dignidade humana e da fraternidade para os cristãos, em particular, está no Evangelho de Jesus Cristo, do qual brota, tanto para o pensamento quanto para a ação pastoral, a importância fundamental da relação, do encontro, da comunhão universal com a humanidade inteira (cf. n. 277). A Igreja, “com o poder do Ressuscitado, quer dar à luz um mundo novo, onde todos sejamos irmãos, onde haja lugar para cada descartado das nossas sociedades, onde resplandeçam a justiça e a paz” (n. 278).
Um apelo à paz e à fraternidade. A Fratelli Tutti se conclui com um apelo e duas orações que explicitam o seu sentido e os seus destinatários. Na realidade, o apelo é uma ampla citação do já citado documento assinado pelo papa e pelo Grão-Imã Aḥmad al-Tayyeb em Abu Dhabi, e diz respeito precisamente à convicção de que “as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião” (n. 285).
Entre as outras referências oferecidas no texto, notamos que o papa quis recordar em particular o Bem-aventurado Charles de Foucauld, que “queria ser ‘o irmão universal’. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos” (n. 287). Para Francisco, a fraternidade é o espaço próprio do Reino de Deus, no qual o Espírito Santo pode vir, habitar e agir.
Vejo no texto aqueles elementos críticos, próprios dos espíritos livres, que se encharcam de humanismo e de esperança, e que aparecem com muita força na conversa que entretive com a teóloga Alzirinha Rocha de Souza, leiga, professora (Doutora em Teologia pela Universidade de Louvain), num programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=imN1sM2p3W4), sobre o tema “Ação, Missão e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco”.
A partir de Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano), Alzirinha surpreende a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco (“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol.
Em estudo de altíssima profundidade – “A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco” (Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017), diz Alzirinha: “Destaco aqui uma característica do fazer de Francisco, a que julgo mais marcante e me parece essencialmente ligada a Aparecida, da qual, em minha opinião, decorrem todas as outras possíveis, que é a exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus. Se, na inspiração de João XXIII, o Concílio (Vaticano II) seria um novo pentecostes, como nos lembra Galli, aos olhos daqueles que esperaram 50 anos para uma grande virada na Igreja, ele finalmente acontece neste papado…Os gestos de Francisco advêm de sua experiência e somente é capaz de dar testemunho aquele que faz primeiramente a experiência de Deus. Por isso realiza a forma mais alta da teologia prática ao fazer coincidir sua experiência de Deus, sua experiência pastoral, às exigências de homens e mulheres que demandam e esperam da Igreja uma resposta concreta às suas vidas”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
* Publicado originalmente no site Estado de Direito