Por José Geraldo de Sousa Junior
Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil / José Antônio P. Gediel, Leandro Gorsdorf, Antonio Escrivão Filho, Hugo Belarmino, Marcos J. F. Oliveira Lima, Eduardo F. de Araújo, Yuri Campagnaro, Andréa Guimarães, João T. N. de Medeiros Filho, Tchenna Maso, Kamila B. A. Pessoa, Igor Benício, Virnélia Lopes, André Barreto – Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB 2011. 90 p. ISBN: 978-85-62707-38-4
Completa dez anos o estudo paradigmático contido na obra tema deste Lido para Você. Ainda que novos dados certamente possam ser acrescentados para atualizar a obra, ela guarda, no seu arranjo original, total relevância e pertinência por sua exemplaridade metodológica e marcadores conceituais que a caracterizam por sua singularidade.
Essa é a mesma característica que está presente noutro texto emblemático, de 1998. Refiro-me a Ceilândia: Mapa da Cidadania. Em rede na defesa dos direitos humanos e na formação do novo profissional do direito, resultado também de pesquisa conduzida pelas sociólogas, ambas professoras de UnB, Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, no âmbito do Projeto Núcleo de Prática Jurídica e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania, coordenado por mim e pelo professor Alexandre Bernardino Costa, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (http://estadodedireito.com.br/ceilandia-mapa-da-cidadania/).
Esse projeto foi desenvolvido em parceria com o Ministério da Justiça, pela antiga Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (que deu origem ao Ministério dos Direitos Humanos), seguindo diretriz do Plano Nacional de Direitos Humanos. Note-se uma outra singularidade. É nesse projeto que se vai designar, antes que as diretrizes curriculares da área adotasse a categoria, a denominação Núcleo de Prática Jurídica, em substituição a expressão Escritório Modelo de Advocacia, como assim eram nomeados as estruturas de prática dos cursos de direito. O projeto, aliás, formulou uma inversão intencional a partir de seu título exatamente para sugerir uma nova significação, simultaneamente teórica e política: Núcleo de Prática e Escritório de Direitos Humanos e Cidadania.
Conforme o release da Terra de Direitos, uma das instituições que formularam o termo de referência da pesquisa, a prática da assessoria jurídica e advocacia popular, em diferentes contextos sociais e eixos de atuação, é tema de pesquisa realizada pela Terra de Direitos e Dignitatis Assessoria Técnica Popular. Ao longo de um ano, as duas entidades trabalharam na elaboração do “Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil”, apoiado e publicado recentemente pelo Observatório da Justiça Brasileira (OJB), vinculado ao Centro de Estudos Sociais da América Latina – CES/AL.
Sobre o OJB, de cuja concepção assumo um forte protagonismo, remeto a esta Coluna Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/. E nela, ao texto completo de documento que fundamenta a sua institucionalização, cujos enunciados foram aplicados no estudo do Mapa Territorial das Assessorias Jurídicas Populares: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf.
Voltando ao release, “o estudo trata a assessoria jurídica e advocacia popular como indicadores do grau de qualidade democrática do sistema de justiça, compreendendo o papel dessas organizações tradutoras e mediadoras das lutas políticas dos movimentos sociais com as instituições do poder público, em especial as da justiça. Presente na história institucional da Terra de Direitos e da Dignitatis, a Renap – Rede de Advogadas e Advogados Populares está entre as motivações para a realização da pesquisa. A Rede foi criada em 1995 com o propósito de fortalecer a comunicação e a interlocução entre os diversos advogados e advogadas que atuam junto aos movimentos sociais no Brasil. Desde a criação da Rede, a advocacia popular se expandiu acompanhando o movimento histórico próprio do desenvolvimento da luta por direitos no Brasil. Aliado à Renap, a pesquisa surge também no âmbito dos debates da JusDh – Articulação Justiça e Direitos Humanos, que vem atuando sobre uma agenda política voltada para a democratização da justiça.
Segundo levantamento feito pela pesquisa, o cenário da assessoria e advocacia popular no Brasil conta com 96 entidades, distribuídas por 117 pontos de atuação, considerando que há organizações com escritórios em mais de uma cidade. A maior concentração está nas regiões metropolitanas e nas capitais, o que reafirma a atuação da advocacia popular no trabalho de tradução entre o mundo dos movimentos sociais e as instituições públicas das três esferas de poder, agrupados principalmente nas capitais.
Já os escritórios localizados no interior estão principalmente nas regiões Norte. Estado com de alto índice de conflitos fundiários, o Pará se destaca pelo número de entidade espalhadas pelo seu território, voltadas especialmente aos temas agrários, como Terra e Território, Meio Ambiente e Trabalho Escravo. Dados da Comissão Pastoral da Terra, publicados no Relatório de Conflitos no Campo, mostram que houve registro de 89 conflitos por terra no estado em 2012, despontando como o mais violento da região e o 4º estado com o maior número de conflitos no país.
A pesquisa traz, ainda, outras duas abordagens: a identificação da variação temática da atuação das entidades de assessoria jurídica e advocacia popular, e o instrumental manejado em sua atuação. No âmbito do “mapa temático”, foram identificados 13 temas de direitos humanos usualmente defendidos pelas entidades pesquisadas. Segundo Antonio Escrivão Filho, co-coordenador da pesquisa pela Terra de Direitos, “um dado interessante foi a revelação de que há variações na distribuição e presença de temas, na medida das diferentes regiões do país. Neste sentido, destacaram-se, por exemplo, a elevada incidência do tema “LGBTT” no Nordeste, ao passo em que a temática de “Criança e Adolescente” se concentrou na região Sudeste”.
No que se refere à dimensão instrumental, a pesquisa buscou verificar quais as ferramentas e estratégias presentes no cotidiano de atuação das entidades, confirmando a análise que aponta para uma utilização combinada de instrumentais políticos e jurídicos na solução de demandas referentes à violação ou efetivação dos direitos humanos no Brasil”.
Nessa linha de especificação e de continuidade de uma experiência que de fato “revoluciona” o ensino jurídico e contribui para o processo de democratização da justiça (Justiça como categoria de reconhecimento e de emancipação e não como sistema funcional e burocrático), tal como propõe Boaventura de Sousa Santos – http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/ – guardo grande expectativa do estudo que Adda Luisa de Melo Sousa, estudante de graduação na UnB, dirigente do Centro Acadêmico e do Projeto de Extensão Universitária Assessoria Jurídica Roberto Lyra Filho, está desenvolvendo no PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica): “Histórico, concepção e prática da Assessoria Jurídica Universitária Popular da UnB – Roberto Lyra Filho“.
Tendo como base teórica, principalmente O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, Adda sustenta como hipótese de pesquisa “que AJUP-RLF, assim como muitos projetos de extensão, vivenciou, ao decorrer da sua história, gerações, muito marcadas pelos membros que estavam à frente do projeto na época”, todos mobilizados por uma concepção emancipatória de jurídico, notadamente na UnB (http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/; também (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/) e a sua proposta “é desenvolver essa tese ao decorrer da escrita do artigo, assim como, apresentar a atuação do projeto com os movimentos sociais no DF”.
Folgo em que a base teórica em que se quer apoiar Adda Luisa também esteja presente nos pressupostos conceituais que orientam a elaboração do Mapa, sobretudo quando os autores da pesquisa, constatam o reaparecimento dos “movimentos sociais no cenário político da reivindicação de direitos civis, políticos, econômicos e sociais como sujeitos coletivos de direitos”, capazes de, “Instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas do ponto de vista semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas interpretações para velhas categorias), mas também do ponto de vista pragmático (como fonte de práticas que inspiram novas formas de operabilidade do fenômeno jurídico)”, valendo-se, nesse passo, de fontes que se organizam no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua:
“Esses movimentos sociais, segundo Sousa Júnior, constituem-se como sujeitos coletivos a partir da elaboração do modo como vivem suas relações e identificam seus interesses. Para o autor, o que dá o caráter de sujeito coletivo a esses grupos “é a conjugação do processo de identidades coletivas, como forma do exercício de suas autonomias e a consciência de um projeto coletivo de mudança social a partir das próprias experiências” (1999, p. 257). Ainda de acordo com Sousa Júnior (1999, p. 258), a ação desses sujeitos coletivos na defesa de interesses reflete o entendimento por parte deles de negação de um Direito, daí a luta para conquistá-lo. É justamente essa luta por Direitos, fundada nas necessidades desses grupos, articuladores de vontades gerais, que realça o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, constituindo novos espaços sociais de participação política nos quais se enunciam novos Direitos e que torna os movimentos sociais como novos sujeitos de Direito, os sujeitos coletivos de Direito”.
Confira-se, sobre isso, notadamente as páginas 22 e 23 do texto. Ali se verá ainda, conforme os autores que “Pensar a democratização da justiça a partir dessa ótica exige um duplo movimento de observação, análise e reflexão: primeiro, em torno dos processos e práticas de lutas sociais concretas, em cujos horizontes se instituem os direitos humanos (nesse sentido, Sousa Júnior, 1999); segundo, a respeito das formas – de reconhecimento e abertura, ou de invisibilização e indiferença, ou ainda de escancarada repressão – como os órgãos do sistema estatal de justiça relacionam-se ou não com essas lutas”.
Além dos pressupostos teórico-conceituais, dos elementos vivos colhidos em entrevistas e questionários, a pesquisa alcança ainda o objetivo de oferecer instrumentalidade. Há uma importante bibliografia reunindo referências teórico-epistemológicas e relatórios de intervenção. Por sua vez, os mapas são muito ilustrativos e desenham o cenário do desenvolvimento da assessoria jurídica popular no Brasil. Nesse aspecto, designam os autores (p. 74):
“Ainda sobre a perspectiva instrumental verifica-se que a pesquisa revelou novos elementos empíricos aptos a contribuir para o debate sobre a judicialização dos conflitos sociais e dos direitos humanos. Neste sentido os dados permitiram realizar um importante debate sobre a medida em que a judicialização pode representar uma tendência voltada para o acesso à justiça ou, de modo contrário, um processo de criminalização da luta por direitos.
De um modo geral, portanto, a pesquisa aponta para a renovada importância jurídico política da assessoria jurídica e advocacia popular na atualidade. Afinal, a necessidade de transformar as condições objetivas de vida da população brasileira aponta para a centralidade dos movimentos sociais e populares na percepção e luta por direitos e acesso à justiça. Desta forma, o campo da assessoria jurídica e advocacia popular se consolida junto aos movimentos sociais num cenário de luta por direitos.
Resta, por fim, um firme agradecimento ao Observatório da Justiça Brasileira, e em especial a todos aos movimentos e organizações presentes na pesquisa, em especial àquelas que contribuíram com suas experiências e vivências respondendo às entrevistas. Espera-se que esta pesquisa configure, ao final, uma contribuição útil para a avaliação e construção do cenário da assessoria jurídica e advocacia popular no Brasil”.
É nesse sentido que tenho destacado o protagonismo emancipatório dos movimentos sociais, apoiados por assessorias jurídicas, que concebem o Direito como condição de constituir processos sociais legítimos de liberdade (LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo, Brasiliense. Coleção Primeiros Passos, 1ª ed. 1982), para afinal pensar concepção alargada de acesso à justiça e da justiça a que se tem acesso (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça”. In: Revista Jurídica da Presidência da República, Brasília, v. 10, n. 90, ed. especial, pp. 01-14, abr./maio, 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_90/Artigos/PDF/ JoseGeraldo_Rev90.PDF; também, et al. Observar a justiça: pressupostos para a criação de um observatório da justiça brasileira. Relatório de Pesquisa. Brasília: Ministério da Justiça, PNUD, 2009, aqui já citado).
Reside aí o princípio esperança, no sentido utópico de uma sociedade que se transforme por mediação da Justiça e da Democracia, contra toda forma de obscurantismo. ‘Alguém acredita que esse processo termina com Lula vivo?’, indaga o presidente do Clube Militar, em nota abusiva, boquirrota, em seguida a julgamento no Supremo Tribunal Federal que anula processo corrompido contra o ex-Presidente Lula. Uma declaração que confirma, além da instigação criminosa, a erosão institucional que caracteriza o Brasil hoje, em todos os âmbitos e com sua casta específica, trânsfuga da hierarquia, se aboleta no enorme banco de cargos civis com os quais passa a remunerar-se e a gerir com assombrosa incompetência (veja-se o descalabro do sistema de saúde no enfrentamento à pandemia). Desorientados até nos rudimentos da logística, nem sabem mais que foi Rondon, Pandiá Calógeras, marechal Bittencourt. Não saberiam entregar uma mensagem a Garcia. Garcia? Quem é Garcia?.
A leitura e o acesso à justiça levados a sério – http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/ -, tal como tratados nesse estudo ora Lido para Você, indicam ser possível resgatar o país e permitir que não se perca o rumo do futuro, o acumulado utópico das forças sociais organizadas na sociedade civil, de cuja mobilização derivam todas as conquistas democráticas e a defesa da Constituição, dos direitos e da cidadania, para quem faz a leitura atenta e correta da história social de nosso povo.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
- Publicado originalmente no site Estado de Direito