No recém-lançado livro “Corrupção política e republicanismo – a perda da liberdade segundo Jean-Jacques Rousseau”, Vital Alves, filósofo e professor, esmiúça a corrupção na política
Por João Negrão
O filósofo e professor Vital Alves acaba de lançar o livro “Corrupção política e republicanismo – a perda da liberdade segundo Jean-Jacques Rousseau”. A obra, que tem o pensamento de Rousseau como objeto de análise, é resultado de suas pesquisas para o doutoramento.
O Expresso 61 conversou com Vital Alves e quis saber, entre outras questões, sobre o fato de seu livro chegar num momento importante da vida nacional, em que os métodos de combate à corrupção da Lava Jato e de outras forças tarefas, juízes, procurados, policiais, etc., estão sendo colocados em cheque.
“Se a corrupção é um problema grave e implacável para a república, os métodos de combatê-la devem ser rigorosos, não podemos ter dúvida quanto a isso, mas, os métodos devem seguir rigorosamente também os princípios republicanos e serem apartidários”, assertou.
“Nesse sentido, os vazamentos das conversas entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol do MPF, vem comprovando uma relação de conluio entre o juiz e o promotor, uma relação eivada que contraria os princípios republicanos mais elementares. Agora que estamos compreendendo o quanto essa relação entre juiz e promotor era indecorosa”, agregou.
Confira a entrevista:
Seu livro é resultado de suas pesquisas para o doutorado. Conte como foram suas investigações.
No decorrer da pesquisa, busquei compreender o republicanismo ou a tradição republicana por meio do problema da corrupção política e tive como base teórica, pensadores como Cícero, Maquiavel, Montesquieu, e, principalmente, Rousseau.
Você poderia definir o que venha a ser o republicanismo?
O republicanismo é uma teoria política que tem sua origem na Antiguidade (Roma antiga, precisamente) e encontra-se intimamente ligado à figura de Cícero, pensador e político romano. Ele foi o primeiro a definir a República como um regime político e estabelecer uma série de valores que versam sobre a liberdade política – construída pela ação dos cidadãos – e como ela produz o bem comum: a coisa pública. Posteriormente o republicanismo ecoa na reflexão de diversos teóricos políticos e em vários momentos históricos, podendo ser verificado no Humanismo Cívico durante o Renascimento, na primeira fase da Revolução inglesa, na Revolução Americana, na Revolução Francesa (ao longo do século XVIII) e, no Brasil, na Inconfidência mineira.
Seu livro chega num momento importante da vida nacional, em que os métodos de combate à corrupção da Lava Jato e de outras forças tarefas, juízes, procurados, policiais, etc., estão sendo colocados em cheque. Por favor, comente sobre esse momento.
De fato, o livro chega num momento oportuno e decisivo da vida nacional. Um momento no qual a operação Lava Jato e seus métodos vêm sendo bastante questionada. Bem, se a corrupção é um problema grave e implacável para a república, os métodos de combatê-la devem ser rigorosos, não podemos ter dúvida quanto a isso, mas, os métodos devem seguir rigorosamente também os princípios republicanos e serem apartidários. Nesse sentido, os vazamentos das conversas entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol do MPF, vem comprovando uma relação de conluio entre o juiz e o promotor, uma relação eivada que contraria os princípios republicanos mais elementares. Agora que estamos compreendendo o quanto essa relação entre juiz e promotor era indecorosa; a operação Lava Jato, seus métodos (que já vinham sendo questionados mesmo antes dessas conversas entre juiz e promotor virem à tona) e suas práticas (muitas vezes pirotécnicas), estão diretamente comprometidas e, a legitimidade da Operação, no meu entendimento, sofrerá uma derrocada brutal.
A corrupção é a pior inimiga da república porque além de dizimar vidas, gerar uma constante desconfiança entre as pessoas, ela conduz a república à falência e introduz outros valores opostos aos republicanos
Nós falamos muito da corrupção política, entendendo apenas como atos de agentes do Estado. Mas sabemos que não há corrupção de agentes do Estado se não houver os corruptores da iniciativa privada. Por favor, comente e nos indique em quê seu livro aprofunda nesta questão?
Sua pergunta é bastante interessante porque toca em um dos pontos centrais do problema da corrupção política. Ou seja, a relação entre o público e o privado. Uma relação necessária para o Estado, porém, bastante delicada. Os limites dessa relação precisam ser estabelecidos de forma transparente e é imprescindível a existência de uma frequente fiscalização para saber se, realmente, os limites estão sendo respeitados. Tendo isso em vista, devo dizer que abordo essa questão no meu livro quando trato do que no vocabulário político republicano denominamos de “facções” (grupos políticos ou econômicos). As “facções” buscam fazer com que seus interesses e vontades corporativas prevaleçam sobre o bem público. As facções ao agirem dessa maneira atentam contra o Estado e destroem o bem comum.
É possível associar a organização republicana e o Estado burguês à prática corrupta?
Trata-se de uma boa provocação! Em uma perspectiva marxista talvez essa leitura tenha alguma razoabilidade. No entanto, eu não faço essa associação. Para tanto, penso que é importante assinalar uma distinção entre republicanismo e liberalismo. Como disse anteriormente, o republicanismo tem sua origem na Antiguidade e seus alicerces fundamentais são a liberdade política e a defesa da coisa pública. O liberalismo, por sua vez, nasce em meados do século XVII na Inglaterra a partir de discussões sobre a tolerância política e religiosa e, ao mesmo tempo, contestando a centralização do poder e assumindo a defesa da separação dos poderes. Podemos distinguir essas doutrinas políticas mediantes seus fundamentos. Por exemplo, a perspectiva republicana prioriza e defende a construção de uma igualdade que não se limita ao campo civil e político. Ela avança em discussões econômicas e sociais, pois a igualdade deve ser à base da liberdade política (direitos e deveres de participar ativamente da vida pública ou uma cidadania ativa, como compreendemos atualmente). Enquanto a perspectiva liberal se preocupa, sobretudo, na defesa do cidadão à vida, à propriedade e à liberdade individual. Comparando brevemente as duas abordagens políticas, posso afirmar que a republicana preconiza a maior presença do Estado, ao passo que a liberal, como sabemos, deseja a menor intervenção possível do Estado na vida individual e na economia. Esclarecida essa separação, posso dizer que a organização republicana não se encontra associada à prática da corrupção. Ao contrário, a corrupção é a pior inimiga da república porque além de dizimar vidas, gerar uma constante desconfiança entre as pessoas, ela conduz a república à falência e introduz outros valores opostos aos republicanos. Consequentemente, a república perde sua razão de ser. Uma república devastada pela corrupção não deve ser mais chamada pelo nome de república.
A república demanda cidadãos comprometidos com a vida pública, cidadãos que consigam se compreender como parte de um todo, que sejam dotados de sentimento de pertencimento a cidade ou ao país
É comum aos brasileiros em geral considerar que o Brasil é o país mais corrupto do mundo. A partir de seus estudos é possível afirmar isto? A corrupção não seria uma marca da própria estrutura de organização do Estado republicano?
Antes de tudo, é preciso pontuar que estamos acostumados a acreditar que a corrupção se refere tão somente ao desvio de dinheiro público e infelizmente a grande mídia contribui muito para o fortalecimento dessa mentalidade. É preciso também pontuar que existe a corrupção (o problema) em si e o discurso sobre a corrupção. O problema é cruel para a república porque tende a levá-la à ruína. O discurso é nocivo porque gera um profundo desinteresse pela política e produz um sentimento social de aversão a política. Além disso, o discurso em nome de um suposto combate a corrupção contribui para eliminar grupos e atores políticos que poderiam colaborar para pluralidade de ideias e o enriquecimento da vida pública. Esse tipo de discurso costuma ser apropriado em campanhas políticas por políticos demagógicos com inclinações autoritárias ou por políticos aventureiros que prometem acabar com a corrupção e salvar a pátria. No Brasil, podemos tomar como exemplo da apropriação desse discurso, as campanhas “Varre, varre, vassourinha”, de Jânio Quadros, e, a do “Caçador de marajás”, de Collor. Agora… pensando mais diretamente na usa pergunta e retomando a minha pontuação inicial, posso afirmar que, em uma acepção republicana, a corrupção não se limita ao desvio do dinheiro público, mas abrange fundamentalmente a questão do desvio de conduta do cidadão na vida pública. A república é o regime político que exige que seus cidadãos sejam éticos, por assim dizer. Acredito que atualmente estejamos vivendo um retrocesso no combate a corrupção, isto é, a retomada de velhas práticas de escamoteação do problema. Mas, se o problema da corrupção ganhou notoriedade no Brasil nos últimos anos é sinal que ela vinha a sendo combatida ao invés de ser jogada para debaixo do tapete ou engavetada, é sinal que as instituições políticas estavam se fortalecendo e os instrumentos de combate ao problema estavam igualmente sendo aperfeiçoados. Mas essa evidência do problema torna o Brasil o país mais corrupto do mundo? Evidentemente que não. Afirmar que o Brasil é o país mais corrupto do mundo além de ser uma falácia representa um desmerecimento das instituições que combate o problema de maneira séria, transparente e segue os princípios republicanos. Preciso reiterar que a corrupção ao invés de ser uma marca estrutural do Estado republicano consiste em um problema de extrema gravidade que pode levar a república ao declínio. A manutenção de um regime republicano se inicia com a garantia da igualdade, da liberdade e da prevalência do bem comum. Soma-se a tais princípios, a criação de um projeto educacional que invista na formação dos futuros cidadãos. Uma república requer um projeto que estimule inicialmente as crianças a participarem da vida escolar e da vida de sua comunidade para no futuro, como cidadãos, sentirem-se encorajados a participarem das decisões públicas. A república demanda cidadãos comprometidos com a vida pública, cidadãos que consigam se compreender como parte de um todo, que sejam dotados de sentimento de pertencimento a cidade ou ao país. Um regime republicano, portanto, necessita de uma cultura política que forme os cidadãos do futuro e encoraje os cidadãos do presente a exercerem plenamente a cidadania.