Por José Geraldo de Sousa Júnior
Morreu nesse 11 de fevereiro o Miro – Miroslav Milovic, em Recife, em decorrência de complicações septicêmicas, enquanto internado por infeção de covid-19. A notícia caiu de modo fulminante entre seus colegas e alunos, absolutamente chocados. Miro tinha 65 anos e estava na plenitude de sua docência, atualmente na Faculdade de Direito da UnB, onde era professor titular, regendo a cadeira de Filosofia do Direito.
Miro “filósofo verdadeiro, buscava sempre a coerência entre seu discurso e sua ação na vida”, assim o caracterizava nossa colega Bistra Stefanova Apostolova, como ele originada dos Balcãs, ele dos Alpes Dináricos da Sérvia, ela das montanhas Rila, na terra de Spartacus, a antiga Trácia, de cujo comentário também retirei o título deste depoimento.
E, na vida e na morte, encarnadamente premonitório. Há poucas semanas escreveu: “O vírus nos confronta com o nosso próprio mundo. Obviamente que ele não pode resolver problemas, mas ele pode tornar o mundo mais transparente, pode nos fazer pensar o que esquecemos. E nos mostrar a ordem maquiavélica do mundo, chamada neoliberalismo”.
Contra essa ordem maquiavélica Miro estruturou a sua prática acadêmica e de mundo. Pensador rigoroso com graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Belgrado (1978), doutorado de Estado em Filosofia – Université de Paris IV (ParisSorbonne) (1990), com a tese Razão teórica e razão prática e suas relações com a comunidade ética e política, tendo como orientador J. Chanteur e doutorado em Filosofia – Universitat Frankfurt (Johann-Wolfgang-Goethe) (1987), com a tese Subjetividade e comunicação, tendo como orientador Karl Otto Apel. Miro, lembra ainda Bistra, abrindo-se às diferenças, “sua excelente produção acadêmica não o impedia de se fazer presente na vida das pessoas”.
“Ele sempre foi aberto, generoso, engajado em transformar o mundo e genial”, diz Alexandre Araújo Costa, nosso colega professor na Faculdade de Direito da UnB. Bruno Henrique Moura, relembra as suas aulas de metafísica. “Ele tinha pureza e elegância. Nunca perdia a paciência nas aulas. Uma das mentes mais brilhantes que eu conheci”.
“Deixa sua marca em diversas gerações que passaram pela Faculdade de Direito, sem mencionar o seu impacto inigualável no desenvolvimento do direito e da filosofia”, afirma a nota do Centro Acadêmico de Direito da Universidade.
“Hoje partiu meu grande amigo Miroslav Milovic, professor de tantos anos, orientador de tantas pesquisas, um gênio da filosofia”, diz sentidamente Juliano Zaiden Benvindo, ex-coordenador de pós-graduação da Faculdade de Direito.
“Ele foi um professor muito importante para a construção não apenas da graduação, mas da pós-graduação da Faculdade de Direito, tendo participado do projeto de mestrado e doutorado desde o seu início. Fica aqui a nossa homenagem ao seu legado, nossos sentimentos à família e aos amigos mais próximos e nosso alerta para que continuemos nos cuidando”, assim se manifestou nossa colega Claúdia Roesler, que dirigiu nosso programa de pós-graduação em Direito; todas expressões de um luto sentido e introjetado, afinal reconhecido e decretado pela direção da Faculdade de Direito.
Para Mamede Said Maia Filho, que foi nosso Diretor na Faculdade de Direito: “Nele se fundiam o intelectual brilhante e o homem simples: para além do conhecimento que tinha sobre filosofia e sobre política; para além de ter sido orientado por Karl-Otto Apel em Frankfurt; para além de ser o acadêmico que foi (professor titular da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Metafísica da UnB), Miro era apaixonado pelas coisas triviais da vida: estar com os filhos, ver o Flamengo jogar, brincar no Carnaval do Rio, compartilhar uma boa mesa, falar com saudade de sua terra natal, a Sérvia, e do papel de Josip Broz Tito como o homem que conseguiu unir e manter a paz entre os diferentes povos da antiga Iugoslávia”.
A professora Loussia Felix, que na minha gestão como diretor da Faculdade de Direito conduziu o processo de institucionalização do doutorado em Direito, com abertura interdisciplinar, trazendo, para o espaço jurídico, professores como Miro e Terrie Groth, mas também Luis Roberto Cardoso de Oliveira (Antropologia), Rebeca Igreja (Antropologia), Simone Rodrigues Pinto (Ciências Sociais) e Débora Diniz (Ciências Sociais), traça seu perfil: “Miro, assim como Terrie Groth (também professor da Faculdade de Direito, da cadeira de Ciência Política, falecido no ano passado) foram docentes que trouxeram tanto para a FD. Os dois vieram para o PPGD em 2003. Uma linda, profícua e intensa trajetória. Mais tarde retorno aqui. Miro nos desafiava. Lembro dele em tantas, tantas reuniões. Era sempre participativo. Tão sério em seu trabalho. Chegou de tão longe e vai deixar tantas sementes no Brasil”.
Em Carta Pública Aberta, que a emoção ditou, a Professora Loussia sintetizou:
Na formação jurídica que vislumbrávamos ambiciosa um conceito tornava-se então inarredável. Interdisciplinaridade. Mesmo que a teoria social crítica então se disseminasse como água que escorria de um veio precioso em terra calcinada, não havia tantos docentes com tua formação de velho mundo. Onde tudo ocorrera (as promessas iluministas, a barbárie das “soluções finais”). Você chegava então como promessa de filósofo “old school”, a formação impecável, a mente treinada nos rigores da academia alemã, mas também associada a uma perspectiva generosa de compreensões do agora. Aqui mesmo. No Brasil que era então microcosmo das tantas possibilidades globais de, enfim, nos tornarmos tolerantes, diversas, propiciar lugares de educação superior até então negados para – que surpreendente – a maioria. Lá fomos nós. Tua história na FD-UnB vai se consolidando ao mesmo tempo que tantas esperanças de educação jurídica que pudesse propiciar mais amplas compreensões.
Com efeito, docente altamente adestrado em contextos acadêmicos bastante avançados e complexos – Chiba University, Japão; Universidad de Granada, UGR, Espanha; Middle East Technical University, METU, Turquia; Faculdade de Filosofia de Belgrado, FFB, na ex-Iugoslávia, Miro foi adensando e refinando os temas que organizou para agrupar seus alunos, orientandos e associados: Direito como Potência no contexto da Tradição, Modernidade e Contemporariedade; Biopolítica e Direito no contexto da despolitização moderna e da aproximação entre política, biopolítica e direito; a mpossibilidade da Democracia na modernidade e a questão do Direito e muito designadamente a questão da Democracia e da Diferença, visando a analisar a modernidade como afirmação de uma nova identidade: a identidade do sujeito ou a sua desconstrução.
Relacionado a esses temas, um livro de Miroslav chama a minha atenção: Comunidade da Diferença. 1. ed. Rio de Janeiro, Ijuí: Relume Dumará, UNIJUI, 2004, traduzido para várias línguas. A obra remete a uma questão presente no seu pensamento, posta em termos por ele próprio, em entrevista que concedeu ao sítio http://filosofia.com.br/vi_entr.php?id=21 (www.filosofia.com.br). Nesse livro, ele diz:
Tentei questionar a Modernidade não nos contextos políticos, como mencionei acima, mas discutindo as perspectivas abrangentes da racionalidade. Assim, a gente chega até os próprios fundamentos da Modernidade, até a sua própria rigidez tratada como a Identidade. Modernidade é uma forma da Identidade, da nivelação, mediocrização que apaga com as possibilidades da Diferença. A cultura global, como a consequência da Modernidade é um exemplo disso. Estamos na sombra hegeliana, vivendo o fim da história, onde a nossa vida só tem sentido como a reprodução do passado. Futuro do capitalismo é o passado da história. É o mundo sem futuro. Precisamos repensar isso, nos confrontar para que seja possível nossa autenticidade.
Projetando essa ordem de preocupação, ele dirá em obra mais recente, o livro Política e Metafísica, de 2017, tecendo críticas aos processos de globalização, o quanto eles se desenvolvem como “forma de colonização do mundo”, até para advertir as opções
que se colocam para o Brasil, nesse processo, afirmando que “o futuro do Brasil não é seguir os caminhos estabelecidos e metafísicos da globalização. Isso seria muito estranho”, pois, “um país tão grande ficar como uma pequena nota de rodapé na história.
Claro que em seu pensamento filosófico, muito mais instigado por uma percepção sistêmica, racional ao impulso espiral dos grandes processos, hegelianamente falando, Miro se propunha pensar o Brasil num movimento dialético inscrito na historicidade. Não podia sequer imaginar que se pusesse intencionalmente numa vocação redutora para descer ao nível de rodapé, tangido pelo banal malicioso convertido em ação política. Quem poderia imaginar esse regresso? Esse suicídio histórico? Essa politização despolitizadora do social?
Ao ferir a questão da despolitização da modernidade como um sintoma de tipo de fenômeno profundo de nosso tempo, Miro apontava para o que considerava um fenômeno característico de nosso tempo, a despolitização, indicando a exigência de reinvenção da política como perspectiva de articulação das novas subjetividades.
É sobre essa condição dramática que Miro adverte em aguda entrevista que concedeu ao sítio IHU Unisinos, para a EDIÇÃO 438 | 24 MARÇO 2014 (http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/5391-miroslav-milovic-3), na inteligente instigação de Márcia Junges e Ricardo Machado, afinal resumidas no título que indexa seus comentários: “Contemplar para compreender, entender a si mesmo para fazer o bem”, pois, para Miro, “agir no mundo requer, antes de tudo, saber o que é o mundo, o que é a própria natureza, para nos entendermos”. Por isso ele diz: “Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a
banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a consequência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou”.
Miroslav nos deixa nesse momento crucial. Que falta ele fará com seu filosofar
potente, exatamente quanto mais é necessário sofisticar a habilidade do pensamento para
prevenir, o que agora nos desafia, as “catástrofes políticas” do nosso tempo.
- José Geraldo de Sousa Júnior é professor titular da Faculdade de Direito; ex-diretor da Faculdade e ex-reitor da UnB;colidera o grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua
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