Por Salin Sidhartha
Há um país que pede socorro e a solidariedade internacional: o Saara Ocidental. Seu povo, o povo saarauí, luta pela sua independência do regime neocolonial que, atualmente, o Reino do Marrocos lhe impõe.
O Saara Ocidental é um território do noroeste da África que tem o tamanho aproximado do Estado de São Paulo, sendo cercado pelo Oceano Atlântico, de um lado, e pelo deserto do Saara, do outro lado. Limita-se ao norte pelo Marrocos, a leste pela Argélia, a sul e sudeste pela Mauritânia e a oeste pelo Oceano Atlântico, por onde faz fronteira marítima com a região autônoma espanhola das Ilhas Canárias. O território do país se estende do deserto do Saara até o Sahel – uma faixa de transição até a savana africana, que atravessa aquele continente horizontalmente.
O Saara Ocidental tem uma costa rica em recursos pesqueiros e possui vultosas jazidas de fosfato (matéria prima para as indústrias de produtos químicos e de fertilizantes), cobre, urânio e ferro, além de haver indícios de que o subsolo da região possua petróleo. A reduzida população de cerca de 500 mil habitantes descende de beduínos (bérberes, a cuja cultura saárica o povo do país está relacionado), que moravam em tendas de pele de camelo as quais, atualmente, já não são mais utilizadas devido à sedentarização da antiga população nômade, dedicando-se, em grande parte, ao comércio e a atividades agropastoris. A língua principal no país é o hassaniya, mas o árabe e o espanhol também são falados. A religião predominante é o islamismo sunita, com uma interpretação liberal e adaptada à outrora vida nômade (geralmente funcionando sem mesquitas). O povo saarauí tem tradições e cultura próprias, seculares, diferentes da tradição cultural marroquina ou de qualquer outro povo.
A maioria dos ativistas saarauís está em prisão domiciliar, com a repressão na porta de suas casas, impedindo-os de receber visitas ou de sair de suas residências. A ocupação marroquina é patriarcal e violentíssima
O Saara Ocidental foi vítima, inicialmente, de uma bárbara invasão espanhola, cuja dominação perdurou covardemente até 1975. O movimento saarauí de libertação nacional organizou a luta contra a colonização espanhola a partir do final da década de 1960 e, no início dos anos 1970, deu início à guerrilha dos habitantes nativos do Saara Ocidental, com o nome de Frente Popular de Libertação de Saguia el-Hamra e Rio do Ouro, mais conhecida pela denominação de Frente Polisário, que teve, inclusive, um papel importante já na luta antifranquista. Desde 1974, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução nº 3.292, referente à solicitação feita por ela de parecer consultivo à Corte Internacional de Justiça, que firmou não ser o Saara Ocidental uma “terra nulis” (terra de ninguém), porém habitada por uma população autóctone saraauí que, portanto, deveria responder pelo seu território; decidiu também a Corte Internacional de Justiça que o Saara Ocidental era um Estado soberano, sem qualquer laço jurídico com o Marrocos ou a Mauritânia (países vizinhos). O mesmo documento da Corte Internacional deixa nítida a necessidade de “aplicação do princípio de autodeterminação através da expressão livre e genuína da vontade do povo daquele Território”.
Tal como sói acontecer com os processos de descolonização no decorrer da história, quando um país deixa de ocupar uma colônia, é comum outro país assumir o seu lugar no processo de dominação. Foi assim, por exemplo, no Timor Leste, que, ao ser desocupado por Portugal, passou a ser ocupado pela Indonésia, até sua relativamente recente libertação como país independente. Tal fato também se deu no Saara Ocidental, pois com a retirada espanhola, em 1975, o país foi invadido pelo Marrocos, a despeito da vontade do povo saarauí e do processo de descolonização que estava sendo promovido pela ONU.
Ao invadir o Saara Ocidental, o Marrocos começou a expulsar a população com bombas de napalm e fósforo branco, enquanto transferia os cidadãos marroquinos, tornados colonos, para o território invadido. Até hoje, o Marrocos ocupa 2/3 daquela nação e construiu um vergonhoso muro de concreto armado de 2.700 quilômetros de extensão (o maior muro já construído no mundo), que confina os saarauís a viverem numa situação precária e sob forte repressão, além de o muro impedir o acesso às suas riquezas e ao Oceano Atlântico. Há 39 presos políticos e cerca de 500 desaparecidos políticos, desde 1975. A maioria dos ativistas saarauís está em prisão domiciliar, com a repressão na porta de suas casas, impedindo-os de receber visitas ou de sair de suas residências. A ocupação marroquina é patriarcal e violentíssima. Os direitos humanos são sistematicamente violados nas zonas ocupadas do Saara Ocidental, principalmente contra as mulheres. O Marrocos persegue e impõe torturas e assassinatos ao povo saarauí e às suas lideranças políticas, mantendo-os sob seu jugo.
A Frente Polisário, como legítima representante daquele povo, trava uma heroica luta pela independência do Saara Ocidental e pela autodeterminação de seus cidadãos. Há anos que a Frente Polisário tenta negociar a retirada do Marrocos de seu território, e já conseguiu reconquistar algumas áreas invadidas.
A guerra destrói as famílias e o tecido social, entrementes, significativo é o fato de, embora as pessoas tendam a fugir quando as guerras eclodem, no caso do Saara Ocidental tem-se visto cidadãos saarauís que vivem e trabalham na Europa retornarem à frente de batalha e se alistarem para lutar pela libertação do país
A Argélia, país vizinho, contesta até hoje a legitimidade da invasão perpetrada pelo Marrocos e dá abrigo para que a Frente Polisário possa continuar operando em contestação à ocupação estrangeira. Existe um compromisso argelino para com o direito de autodeterminação do povo saarauí, e a Argélia mantém-se como o maior aliado da Frente Polisário, tendo aberto as fronteiras aos refugiados (perto de 180 mil pessoas que se concentram em campos de refugiados no sudoeste da Argélia), fornecendo-lhe apoio político e logístico e abrigando a sede provisória da RASD – República Árabe Saarauí Democrática.
A União Africana reconheceu o Saara Ocidental como país-membro desde 1984, diversos órgãos estrangeiros e a própria Organização das Nações Unidas consideram que o Saara Ocidental tem direito à independência. Dezenas de resoluções de organismos internacionais declaram apoio ao povo saarauí. A RASD é reconhecida internacionalmente por 50 países e mantém embaixada em 16 nações (Madagascar foi o primeiro Estado a reconhecê-la, e a África do Sul foi o mais recente).
Em 1987, a ONU, por intermédio da MINURSO-Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental, estabeleceu um acordo com o Marrocos e a Frente Polisário para a realização de um referendo, marcado para 1992, sobre se o povo saarauí desejaria a independência do Saara Ocidental. Com base nessa iniciativa das Nações Unidas, em 1988 foi selado um cessar-fogo entre o governo marroquino e a Frente Polisário. O referendo não aconteceu até hoje, visto que o Marrocos não aceita que somente os saarauís sejam consultados, mas também os marroquinos. Por outro lado, há leniência sensível dos organismos internacionais em garantir o referendo do povo saarauí, todavia é preciso garantir o referendo que possibilite ao povo saarauí escolher seu destino e forma de governo, a despeito do desprezo que o Marrocos vem demonstrando por ele.
Com o objetivo de debater um estatuto comum para o Saara, Marrocos e a Frente Polisário reiniciaram conversações em 2007, com o patrocínio da ONU, apesar de o Marrocos insistir que a Frente Polisário não seja interlocutor legítimo para conversações e negociações. No entanto, o cessar-fogo foi violado por parte do Marrocos em novembro passado, demonstrando o descaso que a monarquia marroquina faz ao Direito Internacional. A violação do acordo de paz está levando o povo saarauí a viver uma situação de guerra. Há civis nas zonas de conflito armado, e as mulheres são as que mais sofrem com as torturas do país ocupante (vídeos e fotos documentam e mostram a brutal repressão que sofrem diariamente – assista-se, por exemplo, ao filme “Um Fio de Esperança”). O momento é crítico, pois está somando-se à guerra a pandemia.
Por sua vez, é impossível manter-se sob um armistício baseado em um acordo que não caminha para uma solução, enquanto aquela região é explorada, perseguida e punida, porque não é possível existir paz com um povo oprimido nos seus direitos. Essa guerra só terminará com o referendo e a libertação completa dos territórios sob domínio marroquino. A guerra destrói as famílias e o tecido social, entrementes, significativo é o fato de, embora as pessoas tendam a fugir quando as guerras eclodem, no caso do Saara Ocidental tem-se visto cidadãos saarauís que vivem e trabalham na Europa retornarem à frente de batalha e se alistarem para lutar pela libertação do país, isto é, esse povo pacífico se vê obrigado a pegar em armas para alcançar a paz. A Frente Polisário alertou que “os combates continuarão até a retirada total das tropas marroquinas de ocupação.”
A luta pela independência desse país é uma luta que envolve um compromisso civilizacional, pois defender essa luta é mais do que defender o povo saarauí em si: é defender a civilização. Nesse aspecto, a maior resistência que pode existir, maior até do que a das armas, é a resistência cultural – a resistência de uma mentalidade que não se submete à opressão.
Desde 1963, quando foram descobertos enormes depósitos de fosfato na parte norte do Saara Ocidental (uma das maiores reservas de fosfato do mundo), a região virou uma área cobiçada
A soberania do Saara Ocidental não passa somente pelo referendo, que o Marrocos não quer realizar porque sabe que o resultado será favorável à autodeterminação dos saarauís, a soberania passa também por uma resistência física, armada e, acima de tudo, de mentalidade política, no sentido de angariar solidariedade internacional comprometida com a causa civilizatória, de modo tal que faça abalar as posições equivocadas e retrógradas com relação ao Saara Ocidental. Na Europa, esse movimento de solidariedade é muito mais forte do que o nosso, aqui na América Latina, e impressiona o fato de o povo brasileiro sequer saber da existência do Saara Ocidental, com exceção de uma minoria. Realmente, a questão saarauí não é muito conhecida no Brasil, e persiste uma manipulação jornalística na grande imprensa, que esconde de forma contumaz a luta daquele povo e sua história.
É preciso criar uma consciência de que há uma estratégia mundial de domínio das civilizações a que governos como o Reino do Marrocos não querem dar lugar, não querem dar espaço a uma civilização que precisa ser dominada devido à cobiça econômica internacional pela riqueza mineral do país e pelo patrimônio do povo saarauí. Isso está dentro da estratégia mundial de domínio das civilizações a que o capital monopolista internacional não quer dar existência, impedindo, assim, que os povos massacrados consigam-se erguer. Desde 1963, quando foram descobertos enormes depósitos de fosfato na parte norte do Saara Ocidental (uma das maiores reservas de fosfato do mundo), a região virou uma área cobiçada, em termos econômicos, por qualquer país que pudesse impor-lhe controle.
O Saara Ocidental ainda não é reconhecido pelo Brasil como Estado independente, nossa Pátria considera-o como parte do Reino do Marrocos. Nesse aspecto nem mesmo os Governos Lula e Dilma cumpriram um papel eficiente nas Nações Unidas. Veem-se navios chegando no porto de Santos, Brasil, com minérios, mercadorias, patrimônios e recursos naturais do povo saarauí, negociados pelo Marrocos.
A solidariedade internacional vai vencer. Afinal, o povo saarauí quer, necessita e tem direito à sua autodeterminação e à soberania sobre seu território.
* Salin Sidhartha é graduado em Letras, pós-graduado stricto-sensu em Linguística, professor credenciado em Filosofia pelo Conselho Nacional de Educação, radialista, assessor parlamentar na Câmara dos Deputados, comendador pela Ordem Tiradentes da PMDF, ex-administrador regional do Cruzeiro-DF.
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