Lido para Você: O Que Se Perde Quando Se Lucra

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Organizadores e organizadoras:

Alexandre Bernardino Costa; José Geraldo de Sousa Junior; Claudiane Silva Carvalho; Natalia Clemente Cordeiro (Organizadores e organizadoras). O Que Se Perde Quando Se Lucra. Neoliberalismo e Direitos Humanos sob o olhar de o Direito Achado na Rua. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. Direito Vivo | Volume 10, 2025, 536 p.

A Editora descreve o mais recente volume da Coleção Direito Vivo, o 10º, com um texto de Natália Cordeiro, uma de suas organizadoras: “Entre a teoria crítica e a prática social, este livro convida o leitor a refletir sobre as contradições do nosso tempo. O título é um trocadilho, mas também uma advertência: aquilo que nos vendem como vitória e progresso, ou seja, os “ganhos” do neoliberalismo, pode, na verdade, significar perdas profundas. Perdem-se direitos conquistados, fragiliza-se a democracia, esvazia-se a promessa universal dos direitos humanos. Este é, portanto, um livro sobre paradoxos: o de ganhar e perder, o de falar em universalidade e conviver com exclusões, o de proclamar direitos enquanto se amplia a desigualdade. Sob a lente crítica de O Direito Achado na Rua, esta obra não apenas denuncia esse processo de erosão, mas também aponta para outras possibilidades, sendo, então, um livro sobre esperança crítica: mostrar que quando se resiste ao que se apresenta como inevitável, abre-se a chance de reinventar o próprio sentido do humano e do jurídico. E que, quando o Direito retorna às ruas, o que se ganha é o que nunca deveria ter sido perdido: dignidade, solidariedade, vida”.

Lançado em sessão de autógrafos durante o III Congresso Internacional de Direitos Humanos na UnB a obra representou o acumulado de elaboração político-epistemológica que forma lastro para a linha de pesquisa O Direito Achado na Rua, desenvolvidas nos Programas de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – PPGDH (CEAM/UnB) e do Programa de Pós-Graduação em Direito (Faculdade de Direito – PPGDG/UnB).

Uma nota de localização. A Coleção Direito Vivo da Lumen Juris é coordenada na Editora Lumen Juris por Alexandre Bernardino Costa e por José Geraldo de Sousa Junior, que também lideram o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.

A Coleção teve início com o Volume 1 – Direito Vivo: Leituras sobre Constitucionalismo, Construção Social e Educação a Partir do Direito Achado na Rua, org. Alexandre Bernardino Costa, com o selo da Editora UnB, em 2013.

Já na Lumen seguiram-se: Volume 2 – O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, 2015; Volume 3 – O Direito Achado na Rua: Nossa Conquista é do Tamanho da Nossa Luta, 2017; Volume 4 – O Direito Achado na Rua: Lendo a Contemporaneidade com Roberto Aguiar, 2019; Volume 5 – O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias, 2021; Volume 6 – O Direito Achado na Rua:  do Local ao Universal a Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e Vencer a Peste, 2022; Volume 7 – O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, 2023; Volume 8 – Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais, 2024; Volume 9 – O Direito Achado na Rua e os Caminhos do Direito Insurgente. Ruas, Movimentos e Horizontes de Justiça, 2025.

Em O que se perde quando se lucra: neoliberalismo e direitos humanos no olhar do Direito Achado na Rua, volume 10, da Coleção Direito Vivo, materializa-se mais um resultado coletivo de esforços reflexivos sob uma perspectiva teórica e prática desenvolvidos por pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras, em ambiente de ensino, pesquisa e extensão, serão apresentados aqui trabalhos que constituem o acervo crítico da Coleção, demarcada pela perspectiva teórico-crítica de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.

A publicação, conforme esclarecem os seus organizadores e organizadoras, reúne e traz para debate ensaios elaborados no programa acadêmico do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua – UnB (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), organizados pelos participantes do programa didático da linha de pesquisa e disciplina com a mesma denominação. A obra dá continuidade aos 9 volumes já publicados, a partir do trabalho desenvolvido nos últimos meses de 2023 e no período acadêmico de 2024 nos Programas de Pós-graduação em Direito – FD e em Direitos Humanos e Cidadania – CEAM da Universidade de Brasília, sob a coordenação e regência dos Professores José Geraldo de Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa, vinculados aos respectivos Programas, seus co-organizadores.

Assim, ela reflete a diversidade das trajetórias acadêmicas e profissionais dos autores e das autoras, o ponto de conexão entre os ensaios foi a participação profícua e coletiva nos debates, reflexões e seminários sobre temas e realidades que atravessam o debate a partir da perspectiva teórica crítica do Direito e dos Direitos Humanos, tendo como eixo suleador o tema Direito Achado na Rua, Direitos Humanos e Neoliberalismo.

A obra se apresenta, então, como um conjunto de reflexões e de diálogos teóricos e práticos a partir da fortuna crítica das categorias do Direito Achado na Rua. Os ensaios foram organizados em quatro eixos temáticos, construídos tanto singular quanto coletivamente, com diferentes abordagens que se aproximam em relação à perspectiva de proteção e de promoção dos direitos humanos à luz dos fundamentos e da concepção de O Direito Achado na Rua.

Reproduzo para efeito de caracterizar a obra o que seus organizadores e organizadoras, eu próprio, Alexandre Bernardino Costa, Claudiane Silva Carvalho e Natalia Clemente Cordeiro, indicamos na sua Apresentação.

O que se perde quando se lucra: neoliberalismo e direitos humanos no olhar do Direito Achado na Rua é uma síntese das discussões que surgiam nesse contexto de estudos e pesquisas e apontam para pertinentes inquietações, tais como: afinal, o que é neoliberalismo? Qual a relação entre direitos humanos e neoliberalismo? Como O Direito Achado na Rua pode servir como modalidade de resistência a esse laço social contemporâneo em que o outro se apresenta como inimigo?

Questões como essas foram se consolidando como interpelações não só acadêmicas, mas também de inflexões de sentidos de luta e de vida que atravessavam os estudantes e os próprios docentes do curso.

Ancorados em histórias pessoais e gerais do nosso tempo, e situados no campo político do Direito Achado na Rua, interessava refletir sobre os significantes da cultura, do direito, do trabalho e da economia. A partir desses estudos que essa obra foi sendo tecida.

Dividida em cinco seções, a primeira intitula-se Do que falamos quando pensamos em Neoliberalismo e Direitos Humanos, e reúne em seu primeiro artigo a autoria de Audrey Choucair Vaz, sob o título A contribuição da política de austeridade neoliberal para o surgimento de movimentos neofascistas. Em seu texto, a autora realiza uma análise entre o aumento e recrudescimento de movimentos e governos com viés neofascista em todo mundo com o fortalecimento das políticas neoliberais. O artigo busca, assim, realizar uma análise histórica do fascismo, elencando suas principais características e sua ocorrência na atualidade, repaginada e com algumas alterações, na forma do que chama de neofascismo, inclusive pincelando eventos, na política brasileira, que evidenciam uma trajetória perigosa de flerte com o fascismo.

O segundo artigo da primeira seção, de autoria de Marisa Isar dos Santos, tem como título Austeridade, Protestos e Repressão: o lado sombrio do Neoliberalismo. O trabalho apreende e evidencia as razões pelas quais as democracias liberais, e que adotaram a política econômica de austeridade, passaram a reprimir de forma violenta as manifestações em espaços públicos, bem como criminalizá-las. A autora demonstra como que, diante do acirramento das desigualdades sociais promovido pelo neoliberalismo, o sistema penal e a violência policial assumiram papel fundamental na manutenção e reprodução da lógica neoliberal, de modo a conter qualquer contestação que ameace a ordem instituída.

O terceiro e último texto da seção, Neoliberalismo e o direito à alimentação no Brasil: o dilema do pão e do aço, de autoria de Valéria Torres Amaral Burity, evidencia que apesar de o direito à alimentação ser um direito reconhecido como essencial, e de haver  produção de alimentos, em termos quantitativos, suficiente para alimentar toda população mundial, de fato a alimentação não tem sido garantida como direito. O artigo confirma como os Estados têm sido falhos, ineficazes ou agem de forma contrária à garantia da alimentação como direito, e nesse percurso, como o neoliberalismo tem sido apontado como um fator estruturante para que ainda exista fome e outras formas de má-nutrição no mundo. A autora faz uma análise específica da situação brasileira e do agravamento da fome e do acesso aos alimentos após as medidas de austeridade aplicadas de 2016 em diante, levando o Brasil novamente ao Mapa da Fome.

A segunda seção do livro apresenta o título Renda e Arquitetura do Poder, em que oferece aos leitores temas relacionados ao percurso do neoliberalismo no mundo contemporâneo. São visões teórico-práticas escoradas no projeto instigante desenvolvido pelo O Direito Achado Na Rua, que propõe um movimento constante de releitura do Direito sob uma proposta emancipadora, neutralizando a abordagem clássica e dogmática do direito. Nessa linha, as autoras e autores dos artigos tratam de temas como renda e poder, descortinando as razões neoliberais infiltradas nas camadas sociais e no comportamento humano.

O primeiro texto da seção II, de autoria de Almir Hoffmann de Lara Junior e Diego Ferreira Pimentel, possui como título Renda básica da cidadania como instrumento de efetivação dos Direitos Humanos. O artigo realiza um debate acerca da renda básica da cidadania como método de reconhecimento e consagração de direitos e de oposição às políticas de austeridade replicadas pelo neoliberalismo. A partir disso, os autores defendem que os direitos humanos devem ser pensados e compreendidos como um instrumento de transformação, fundado nas premissas teórico-conceitual e política de O Direito Achado na Rua, através do qual se busca a redução das desigualdades e a inserção de sujeitos coletivos historicamente marginalizados como parte primordial no processo político. A renda básica, nesse contexto, emerge como um instrumento para garantia do mínimo existencial e maximização da cidadania.

Na mesma seção, o ensaio seguinte, de título As estratégias do Governo Bolsonaro versus as necessidades da rua: o uso da política de transferência de renda pela agenda neoliberal, escrito por Poliana Leonardo dos Santos, desvenda o uso da política de transferência de renda pela agenda neoliberal. A autora reflete sobre a contaminação política do programa de transferência de renda pela pauta neoliberal, e denuncia a manipulação do benefício social denominado Auxílio Brasil como moeda eleitoral. Para isso, o texto discorre sobre a redução do papel do Estado diante das necessidades sociais, o acirramento da questão social no país e as respostas apresentadas pelo governo.

Aporofobia e neoliberalismo: análise das relações de poder com O Direito Achado na Rua, produzido em coautoria por Danilo Rinaldo dos Santos Junior e Paulo Roberto Almeida Campos Junior, consiste no terceiro artigo da Seção II, e tem por objetivo demonstrar as formas de controle e de produção de sujeitos mediante os processos de subjetivação e da aporofobia, de modo a entender como esses institutos, juntamente com o neoliberalismo, possuem capacidade de controlar o comportamento humano e de persuadir as pessoas a fazerem, mesmo que sem percepção, o que interessa à classe dominante. O artigo, assim, pretende verificar se há afetação nos direitos humanos e direitos fundamentais, quais as consequências da aporofobia e dessas relações de poder, e se existe alguma relação do neoliberalismo com o racismo e com a fobia aos pobres.

A contribuição proposta por Aurélio Faleiros da Silva Maia e Georges Elias Azar Filho, com a escrita do artigo Big Techs, neoliberalismo, democracia e participação política: o debate sobre o PL das Fake News sob a perspectiva de O Direito Achado na Rua, remete a uma discussão atual e necessária. O ponto de reflexão trazido pelos autores constitui a tentativa de captura do debate político ocorrido no PL das Fake News e a atuação das Big Techs no processo de campanha midiática contrária ao projeto. Para os autores, esses ingredientes são típicos da lógica neoliberal e arranham os direitos fundamentais e a participação popular. O texto destaca, ainda, a resistência democrática pela aprovação do projeto, sob a perspectiva do O Direito Achado Na Rua, e propicia uma análise que parte de um direito vivo, retroalimentado pela participação popular, em oposição aos valores do individualismo, do ódio e da intolerância.

O artigo O “revogaço” e a resposta do Supremo Tribunal Federal: neoliberalismo e antidireito, assinado por Daniela de Lima Torres Renófio, último dessa seção, aborda o retrocesso democrático verificado no período de 2018-2022, com a extinção de parte dos conselhos federais de controle e a redução da participação popular nos colegiados que permaneceram em atuação. O tema central perpassa pela indagação se o ‘revogaço’ instituído pelo Decreto n° 9.759/2019 é ou não um ato neoliberal. Partindo de elementos conceituais como ‘inimigo interno’, ‘antidireito’ e ‘ingovernabilidade da democracia’, a autora percorre um paralelo entre formulações teóricas e documentos oficiais para certificar que o citado Decreto pode ser caracterizado como um ato revestido de causas neoliberais.

Todos os artigos reunidos na seção II, considerados em seu conjunto, exprimem os aportes teóricos e os experimentos acadêmicos que evidenciam e rebatem os efeitos perversos e dissimulados do neoliberalismo. Envolvidos e inflamados pela consciência crítica de O Direito Achado Na Rua, as autoras e autores idealizam um processo histórico de formação de cidadãos conscientes, cultivados com valores democráticos, estabelecendo uma cultura de direitos, e desenhando um projeto de sociedade canalizado nos direitos humanos.

A Seção III se debruça sobre a análise crítica do neoliberalismo e suas interseções com o trabalho e os direitos humanos, explorando perspectivas emancipatórias através da prática do Direito Achado na Rua. Este eixo começa com a análise de André Luiz Pinto de Freitas, que em seu artigo O Rentismo Neoliberal e o Futuro da Classe Trabalhadora, discute o enfraquecimento do sujeito coletivo sob a nova racionalidade neoliberal. Freitas destaca a correlação entre a financeirização da economia e as novas formas de exploração da mão de obra, apontando para a necessidade urgente de fortalecimento dos sujeitos coletivos de direito.

Segue-se a contribuição de Meilliane Pinheiro Vilar Lima, que, no artigo Os Trabalhadores em Empresa de Plataforma Digital e o Direito Achado na Rua, investiga a situação laboral dos trabalhadores de plataformas digitais, como entregadores e motoristas, evidenciando a aplicabilidade do Direito Achado na Rua em contextos de trabalho digital emergentes.

No artigo Dinâmicas de Transformação e Resistência: Direitos Humanos, Neoliberalismo e o Direito do Trabalho – Uma Perspectiva do Constitucionalismo Achado na Rua, Michele Andreza Lopes Castro da Costa aborda a necessidade de uma análise que reconheça a historicidade e a politização dos direitos humanos. Seu trabalho reflete sobre como as reformas trabalhistas neoliberais impactam negativamente a eficácia dos movimentos sociais, destacando a importância de reformulações jurídicas baseadas no “Constitucionalismo Achado na Rua” para promover justiça social e igualdade.

Finalizando esta seção, Rodrigo Camargo Barbosa, em Lógica Neoliberal e Superexploração do Trabalho: É Possível um Sindicalismo Achado na Rua?, discute a superexploração do trabalho e a precarização sob o neoliberalismo, destacando a necessidade de um novo tipo de sindicalismo que responda aos desafios impostos pela atual configuração econômica e social.

Na Seção IV, As ruas, as águas e os povos, conformada por 5 artigos escritos por mulheres pesquisadoras da área do Direito e das Ciências Sociais, tem-se um atual e crítico debate em torno de temas socioambientais, como as lutas pelos direitos às cidades, às águas, aos territórios e à justiça. Em O manifesto grito das águas do DF, Joana Tanure faz uma profícua relação entre o avanço da degradação do bioma do Cerrado e a efetividade da participação social na elaboração do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal (PDOT), demonstrando como as mobilizações sociais evidenciaram suas inconsistências e os impactos da ocupação urbana neoliberal para o Cerrado e para as suas águas.

Seguindo o fluxo das águas, Carla Neves Mariani estabelece, em seu artigo Territórios de cidadanias e do comum, as aproximações entre o Direito Achado nas Ruas e a produção do comum, experienciada nas lutas dos povos ribeirinhos, comunidades tradicionais e movimentos sociais na defesa das águas do Rio Arrojado diante da expansão do agronegócio no Cerrado baiano e sua consequente produção de escassez. A autora evoca também o diálogo com o direito à cidade como uma das dimensões dos direitos humanos, a fim de auxiliar na compreensão das dinâmicas socioespaciais provocadas pelos processos neoliberais de sobreposição dos modos de produção urbano em cidades médias e pequenas.

Em O Direito “achado” nos desastres ambientais, Lívia Cristina dos Anjos Barros e Maria Lydia de Melo Frony debatem sobre a possibilidade de ampliar o conceito de “acesso à justiça ambiental”, com base nas ferramentas teóricas e metodológicas de O Direito Achado na Rua. As autoras demonstram que, no contexto neoliberal de exploração predatória da natureza, as alterações legislativas que visam garantir o direito material à reparação pelos danos ambientais podem ser esvaziadas em virtude do interesse das elites políticas. Como exemplos, analisam a tutela de direitos a partir de duas catástrofes ocorridas no estado de Minas Gerais – Brumadinho e Mariana.

A Seção IV do livro se encerra com evocações à Justiça de Transição e à Justiça Territorial para os Povos Indígenas, por meio dos artigos de Carolina Ramos e Rute Pacheco, Aldear a Justiça de Transição, e de Priscila Marques Cavalcante Lemos, O direito ancestral à terra indígena e a face neoliberal do marco temporal. No primeiro, as autoras demonstram as limitações da Justiça de Transição no país, destacando a invisibilização dos crimes da ditadura militar contra os povos indígenas e a recente contribuição intelectual e social indígena em torno desse tema. No segundo, a autora debate acerca do caráter neoliberal da tese do Marco Temporal, agora transformada na Lei nº 14.701/2023.

A V e última seção do livro, A violência como expressão da racionalidade neoliberal, apresenta as várias expressões de violência que o neoliberalismo impõe às pessoas do campo, negras, à juventude, à mulher e às vítimas de conflitos armados internacionais. Com a leitura do eixo, o leitor poderá perceber como a racionalidade neoliberal desqualifica, extermina e estigmatiza o outro, seja por meio da força física ou por uma intimidação moral, social e política. De modo antagônico, O Direito Achado na Rua se apresenta como uma lente que denuncia a violência neoliberal ao menos tempo que conduz à experiências que se insurgem contra essa racionalidade.

O primeiro texto do eixo é de autoria de Euzamara de Carvalho, quem possui uma exemplar trajetória de militância. A autora embasa a sua vivência de luta pela terra e na educação popular na Região Nordeste. É na educação jurídica, por meio da formação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que elabora a formulação e pesquisa no Direito. O trabalho é intitulado Práticas instituintes de Direitos Humanos no enfrentamento à violência no campo, e analisa as práticas sociais dos movimentos do campo por meio de registros e denúncias de violências, as quais culminam em práticas instituintes de direitos humanos, através da publicação de relatórios e cadernos de conflitos das três pastorais do campo destacadas.

O autor Douglas Franzoni Rodrigues apresenta seu trabalho Racismo estrutural e encarceramento em massa no Brasil: Neoliberalismo e Direitos Humanos, cujo foco foi investigar como as políticas neoliberais, enfatizando a austeridade fiscal e a redução da intervenção do Estado, impactam os direitos humanos, particularmente em relação ao encarceramento da população negra e parda no Brasil.

A autora Sulamita Soares abordou A lógica da socioeducação juvenil em tempos de neoliberalismo, no qual reflete sobre as contradições da Política Nacional de Socioeducação, e os impactos do neoliberalismo nas juventudes submetidas ao poder/controle do Estado.

Em seguida, Keisy Emanuele apresenta o artigo A propriedade do corpo feminino e a criminalização do aborto, em que discute a criminalização do aborto e os direitos sexuais e reprodutivos, numa perspectiva emancipatória das mulheres. A autora identifica a criminalização seletiva pela prática de tal crime: mulheres pretas e periféricas. Com isso, expõe como a sociedade patriarcal e neoliberal subordina a autonomia do corpo das mulheres aos homens, e ainda em uma particular questão racial.

O texto de Silvia Pérola,  A Violência contra a mulher e o direito de andar na rua em uma sociedade neoliberal, abordou como o neoliberalismo e o patriarcado são determinantes para a banalização da violência contra a mulher, e como restringem o direito constitucional da mulher de ir-e-vir, revelando que o Estado não consegue garantir total proteção.

Por fim, o artigo Direito Internacional Humanitário e o Impacto do neoliberalismo, de autoria de Tuane Daga, ilustra como o neoliberalismo impacta na aplicação efetiva do direito humanitário, dificultando a assistência em situações de conflito, afetando grupos vulneráveis e limitando a proteção das populações afetadas. Ainda, sugere que o Direito Achado na Rua pode dar voz e preservar os direitos fundamentais das vítimas dos conflitos armados.

Por fim, mas não menos meritória, a obra se encerra emoldurada pelo posfácio de Saulo Dantas, Ayla Ferreira e Diego Vedovato, cujo alvissareiro texto- homenagem Quando a Rua bate às portas do Parlamento: com a palavra o Professor José Geraldo de Sousa Júnior analisa um fato histórico ocorrido no mesmo lapso temporal em que esse livro estava sendo construído. O ensaio discorre sobre a audiência pública ocorrida no Senado Federal, em junho de 2023, no âmbito de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) instituída para discutir as ocupações de terra no campo. A participação do professor José Geraldo de Sousa Junior gerou extremo interesse na opinião pública, a partir de um esclarecimento acerca da cosmovisão de vida não compreendida por uma das deputadas participantes.  Esse episódio, apenas um na carreira tão impactante do Professor José Geraldo, teve um impacto avassalador nas redes sociais e na mídia, digno, assim, de estudo e registro.

Todo nosso esforço foi na tentativa de conseguirmos nos conectar com questões contemporâneas que enxergam as sombras do que está aparente no campo social, demonstrando como o Direito Achado na Rua atua no mundo como elemento desmobilizador do medo e da não solidariedade. Nossa temática afetiva se revestiu na medida de estabelecer recolocações de experiências que auxiliem a dimensionar as diversas singularidade e desejos, em outras formas criativas de viver, não neoliberais.

A missão desse trabalho foi, portanto, a de dar contorno ao mundo que nos cerca, mostrar que há furos na lógica neoliberal, e que existem muitos modos diversificados de apreender a realidade. Mobilizar e endereçar as angústias do tempo neoliberal à rota dos direitos humanos, refletindo coletivamente sobre as agruras da vida e os possíveis novos sentidos de existência foram nossa bússola.

Encontra-se na obra um tanto daquela atenção ao interesse acadêmico sugerido pelo professor Antonio José Avelãs Nunes, da Universidade de Coimbra, autor de Neoliberalismo & Direitos Humanos, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Renovar, 2003, no sentido de aferir o significado econômico da política de globalização que marca a fase atual do capitalismo em escala mundial. Com Avelãs Nunes, e com o olhar de O Direito Achado na Rua, a obra busca exibir o fio condutor ético de sua reflexão que nela se organiza, vale dizer: a intenção de trazer para o centro de sua abordagem econômica a mediação interpelante dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, enquanto estranha as relações entre neoliberalismo e direitos humanos.

Do que se trata pois, senão, buscar estabelecer a relação entre a desigualdade existente no Brasil, a política econômica neoliberal e sua conexão com as crises sazonais que se instalam no Brasil (pense-se a título de exemplo a crise necropolítica provocada pela pandemia do Covid-19), num “contexto de desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil, seus pressupostos epistemológicos, bem como sua correlação com a democracia e autoritarismo, de modo a demonstrar como o desenvolvimento do discurso neofascista está associado ao discurso neoliberal e apontar a relação entre neoliberalismo e uma economia desumana –sempre agravada pelas injunções excludentes de uma sociedade profundamente desigual” (COSTA, Alexandre Bernardino; CARVALHO, Claudiane Silva (Organizadores) Desigualdade, Crise Sanitária e Direitos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021).

Em O que se perde quando se lucra: neoliberalismo e direitos humanos no olhar do Direito Achado na Rua, os ensaios nela reunidos, sustentam de modo muito orgânico, no sentido intelectual e político do termo, nuances autorais que se escoram reciprocamente, por meio da interconexão de abordagens que os eixos que organizam o livro, proporcionam. Em certa medida, na sua intencionalidade, acessível por disposições distintas há sempre uma preocupação a afirmação de teorias de justiça, no que elas permitam a realização emancipatória do social. Algo que não quer uma mesma perspectiva ideológica ou política. Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), o notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, sob outro arranque, fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.

Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.

 

Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual se estabelece toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.

Eis aí uma perspectiva que se insere no que tem sido chamado de constitucionalismo achado na rua (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (organizadores). Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais. Coleção Direito Vivo, vol. 8. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2024).

Com essas referências, alcança-se o patamar que é fortalecido pelas contribuições trazidas em O que se perde quando se lucra: neoliberalismo e direitos humanos no olhar do Direito Achado na Rua. Elas vêm aliar-se às concepções de direito e de direitos humanos (ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Políticos sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), que levam O Direito Achado na Rua a percorrer o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Como enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.

Alexandre Bernardino Costa

José Geraldo de Sousa Junior

Claudiane Silva Carvalho

Natalia Clemente Cordeiro

Almir Hoffmann de Lara Junior

Audrey Choucair Vaz

Euzamara de Carvalho

Lívia Cristina dos Anjos Barros

Michele Andreza Lopes Castro da Costa

Rute Pacheco

Silvia Pérola

(Organizadores)

 

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