Por Paulo Lemos
Entre 28 e 31 de outubro de 2025, os complexos da Penha e do Alemão viveram uma megaoperação policial.
O governo falou em 64 mortos; moradores e jornalistas relataram números acima de 120.
Foram milhares de agentes, helicópteros, blindados, pânico e luto. Passado o choque, fica a pergunta que a contabilidade não responde: o que esse tipo de ação entrega além de manchetes, medo e ganhos políticos de curto prazo?
Chamo isso de marketing de confronto: quando a política escolhe o atalho do espetáculo e abandona a paciência da construção.
O roteiro se repete. Anuncia-se uma operação “histórica”, contam-se corpos, prometem-se leis “mais duras” e, semanas depois, tudo volta ao mesmo lugar. Não se nega a necessidade de enfrentar o crime.
Afirma-se que impacto de mídia não desmonta cadeia de comando, não muda incentivos, não melhora a presença do Estado onde a vida acontece e, muitas vezes, aumenta a desconfiança entre comunidade e instituições.
As críticas vêm de vários lados. Líderes religiosos e comunitários apontam o ciclo “prende e solta” e olham para a raiz do problema: falta de política pública consistente, escola que não retém, trabalho que não chega, saúde que não acolhe. No campo jurídico, a leitura é sistêmica.
Como lembra o desembargador William Douglas, o problema não é só policial; envolve educação, emprego, urbanização, corrupção, armas e financiamento do crime. O tráfico não começa na favela; termina lá.
Enquanto investigar e punir os elos de cima não for prioridade — quem lava, abastece e lucra —, seguiremos enxugando gelo.
Esse pano de fundo explica a disputa política em curso.
Depois de aprovações apressadas na Câmara em 2024, o Senado discute um pacote heterogêneo.
De um lado, medidas de apelo punitivista que afrouxam controles ou fragmentam a coordenação nacional.
De outro, propostas de integração federativa, inteligência e descapitalização das facções.
A primeira linha é aplaudida pelo barulho que faz. A segunda exige governar com dados, reconstruir capacidades do Estado e medir resultados.
A tentação do populismo penal é grande porque rende frases fortes; as soluções que funcionam costumam ser menos fotogênicas e dão trabalho.
Há também um falso dilema que precisamos abandonar. Não é preciso escolher entre “ser duro” ou “ser garantista”. Esses rótulos alimentam torcidas e pouco ajudam na vida real.
Liderar é recusar essa moldura estreita, perguntar se as opções postas estão completas e abrir espaço para alternativas à altura da complexidade do problema.
A criminologia contemporânea já superou a explicação única de que homicídio é só questão de pobreza ou de desigualdade.
Ambas importam, mas junto com a disponibilidade de armas, a estrutura dos mercados ilícitos, o desenho urbano, a governança policial, a qualidade da investigação e uma impunidade que corroi a confiança social.
O país esclarece apenas uma fração dos homicídios. Enquanto isso persistir, a mensagem ao criminoso é simples e perigosa: o risco compensa.
Sem investigação qualificada e coordenação efetiva, o ciclo recomeça a cada coletiva de imprensa.
A alternativa responsável não é um slogan; é um arranjo. Um pacto pela vida que alinhe repressão qualificada e investimento social permanente, com metas, transparência e controle social.
Uma política de segurança que comece na prova e termine na prevenção. Investigar melhor e mais alto é o primeiro eixo: inteligência financeira para atacar lucros e logística, cooperação entre polícias, Receita, unidades de inteligência e Ministérios Públicos para alcançar autores e mandantes, e não apenas a base da pirâmide.
Controlar armas de verdade é o segundo: rastreabilidade efetiva, auditorias de estoques, cooperação interestadual e internacional, fiscalização de fronteiras e rotas internas, com avaliação independente e periódica.
O terceiro eixo é ocupar o território com Estado que funciona: urbanização, iluminação, saneamento, transporte confiável, cultura, esporte, CRAS e CAPS abertos e resolutivos.
O quarto é fazer da escola a âncora: tempo integral, busca ativa, ensino técnico ligado a oportunidades reais de trabalho e portas de entrada para o ensino superior.
O quinto envolve trabalho e renda: políticas para o primeiro emprego, economia solidária e cadeias produtivas locais, com o poder de compra do Estado ajudando a ancorar mercados no território.
O sexto reorganiza o policiamento: proximidade com métricas claras, tecnologia a serviço da prova e da transparência, metas de redução de crimes violentos por área e respeito ao morador como regra.
Operações policiais continuarão necessárias, mas precisam voltar a ser ferramenta — não política.
Quando o combate ao crime organizado vira vitrine, método e palanque eleitoral, a conta chega em vidas, confiança e legitimidade.
Subordinadas a uma estratégia integrada, com investigação robusta, controle de armas, presença do Estado e metas claras, elas têm chance de produzir resultados duradouros. É indispensável também alinhar incentivos.
Quem lucra com o espetáculo?
Governos que surfam na narrativa da mão firme, parte da mídia que monetiza a comoção, segmentos econômicos que orbitam mercados ilícitos e lideranças que transformam medo em capital político.
Quem perde?
As famílias que enterram seus, as comunidades estigmatizadas e os policiais lançados a terreno hostil sem estratégia sustentável.
O Senado tem agora uma oportunidade adulta: separar simbolismo de efetividade, ruído de resultado, espetáculo de Estado.
Rejeitar anistias que fragilizam o controle de armas, desconfiar de medidas que apenas trocam placas ou criam estruturas paralelas e investir no que já mostrou potencial: integração federativa, inteligência, urbanização de favelas, escola integral, emprego juvenil, governança metropolitana e avaliação independente.
No fim, a escolha é entre dois projetos de país.
Um viciado em cenas fortes, de alto custo humano e ganhos eleitorais efêmeros.
Outro exigente e menos barulhento, mas capaz de entregar paz com dignidade: política pública integrada, com gente dentro, números à vista e coragem para mexer no topo da cadeia do crime.
Se queremos paz duradoura, a tarefa é ocupar com vida.
Vida não se improvisa: se planeja, se financia, se governa — e se garante e se preserva.
* Paulo Lemos é advogado e articulista de opinião
paulolemosadvocacia@gmail.com
