Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Proponho esse título para me contrapor a uma expressão tradicional que sempre me incomodou: “Si vis pacem, para bellum”, pronunciada em latim, frequentemente interpretada como uma forma de dizer que a paz é alcançada através da força, ou seja, que uma sociedade forte é menos propensa a ser atacada. “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”.
Talvez uma remissão à dimensão política da guerra, que desde Julio César – Commentarii de BelloGallico(latim para “Comentários sobre a Guerra Gálica”) o César relata as operações militares durante as Guerras da Gália, que se desenrolaram de 58 a.C. a 52 a.C., das quais ele foi vencedor, para dar ênfase em parecer eficiente, decisivo e direto, e oferecer sua visão sobre como a guerra deve ser travada e justificar o conflito como ação política, inevitável e necessária.
Da Guerra, é um livro sobre guerra e estratégia militar do general prussiano Carl von Clausewitz, escrito principalmente após as guerras napoleônicas, entre 1816 e 1830, e publicado postumamente por sua esposa Marie von Brühl em 1832. No entendimento de Clausewitz,“guerra é ação política forte que envolve não somente fortes sentimentos como também um caráter transformador da realidade”. Pare ele, “guerra é, portanto, um ato de força para obrigar o nosso inimigo a fazer a nossa vontade”. Por meio dessa frase, o estrategista prussiano estabelece uma importante relação, explicando que a guerra, por não ser autônoma, é a extensão da política. Numa frase: “A guerra é a continuação da política por outros meios”.
Em todo caso, uma condição invariável que conduz, como mostra o Dom Carlos (Shakspeare, Friedrich Schiller), diante da interpelação de Filipe II pelo Marquês de Posa, íntimo do príncipe protagonista, sobre o que pretendia fazer com os domínios flamengos do império e constar na afirmação de Filipe que o seu “projecto” é idêntico ao que pratica na “sede” – a paz. Ao que Posa responde desafiadoramente: ” estaSire, não é a paz dos cemitérios?”. A paz que a abreviatura RIP da expressão latina requiescat in pace, que significa “descanse em paz”, indica para desejar paz após a morte, para a retirada irremediável da luta pela vida.
Curioso que no mesmo período, marcado pelas guerras napoleônicas, outro notável escritor Lev Tolstói tenha escrito um romance monumental Guerra e Paz (1869).Não sei se há relação, mas é sabido quedurante a década de 1870, Tolstói experimentou uma profunda crise moral, seguida do que ele considerou um despertar espiritual igualmente profundo, conforme descrito em seu trabalho não-ficcional A Confissão (1882), o que certamente o conduziu a uma postura fervorosa anarquista cristã e pacifista, aplicada ao valor da educação e da comunicação. Ele próprio fundou 13 escolas para crianças camponesas que acabavam de ser emancipadas pela reforma de 1861. Tolstói descreveu os princípios educacionais em seu ensaio The SchoolatYasnaya Polyana (1862). No entanto, suas experiências pedagógicas duraram pouco por conta do assédio imposto pela polícia secreta czarista. Tolstói pode ser considerado o precursor da liberdade na educação escolar, além de ser pioneiro na aplicação teórica da gestão democrática nas escolas.
É de Tolstói o conceito de não-violência ou Ahimsa reforçado quando ele leu uma tradução alemã dos versos sagrados Tirukkural. Mais tarde, ele sugeriu esse estilo de vida ao jovem Mahatma Gandhi, com quem se correspondia e aconselhava, como se pode conferirem sua Carta ao Hindu.
A referência a Tolstói e a Gandhi, vem a propósito de uma conversa com o Dr. Ulisses Riedel, idealizador com Isaac Roitman e outros colegas da UnB, Professor Mário Brasil (CEAM), Nair Bicalho (NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos), dessa Tribuna Livre pela Paz, em seguida à exposição do Professor Cristovam Buarque. Me surpreendeua interpelação do humanista e teósofo, em pretender conferir aos diálogos que a TV Supren propaga, uma disposição de cientificidade.
Eu pensava ser mais próximo da agenda da Tribuna, ver transparecer como em JidduKrishnamurti, conforme depreendi no programa Diálogos Sobre a Vida, no qual Marcos Resende e Eduardo Weaver refletem sobre “A Paz Em Nós e a Paz do Mundo”, a perspectiva de que para que a paz seja alcançada no mundo, cada pessoa deve fazer as pazes consigo mesma, buscando alcançar um estado de harmonia ou tranquilidade, sem conflitos ou violência, experenciando em diferentes níveis, na vida pessoal, profissional, em família, com amigos, ou mesmo globalmente, o respeito a vida, a rejeição à violência, a generosidade, o ouvir para compreender, a preservação do planeta, a redescoberta da solidariedade.
Ou artisticamente, como em Fernando Pessoa, pelo sensacionismoteopoético – “Quero sentir tudo de todas as maneiras” – de seu heterônimo Álvaro de Campos, no poema Dá-nos a Tua paz, (Álvaro de Campos – Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. – 25)
Pensando como integrante da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, tenho que, se queremos a paz devemos trabalhar para a Paz. No sentido a que alude o lema da CJP: “Se queres a paz, trabalha pela justiça”. Porque, construir a paz é contribuir para a formulação de propostas que visem solucionar questões ou desafios identificados no campo dos direitos humanos universais, da promoção da justiça, condição para a edificação da paz.
Na Pacem in Terris (11 de abril de 1963) | João XXIII, num tempo tenso de reconstrução do pós-segunda guerra, mas no rico contínua de uma “guerra fria”, convocou para a construção deum mundo onde a paz seja alcançada pelos governos dedicados ao cumprimento dos direitos humanos e onde as instituições globais seriam estabelecidas para atender às necessidades globais.
Atualmente, o Papa Francisco, atento aos conflitos do que já caracteriza com uma terceira guerra mundial em pedaços, tem relativamente à paz, o entendimento de que ela é uma construção que requer compromisso, colaboração e paciência; para ser duradoura só pode ser uma paz sem armas, por isso ela precisa estar nas mãos do povo, pois ela é fruto de relações que reconhecem e acolhem o outro na sua dignidade inalienável.
Todo esforço pela paz implica e requer um compromisso com a justiça. A paz sem justiça não é paz verdadeira, não tem fundamentos sólidos nem possibilidades de futuro. A justiça não é uma abstração ou uma utopia, é o cumprimento honesto e fiel de um dever:“Não é apenas o resultado de um conjunto de regras a aplicar com competência técnica, mas é a virtude pela qual damos a todos aquilo que lhe diz respeito, indispensável ao bom funcionamento de todas as áreas da vida comum e de todos para levar uma vida tranquila.”
A cada ano o Papa proclama mensagens pelo dia mundial da paz (1º de janeiro). Agora em 2024, o núcleo da mensagem éninguém pode salvar-se sozinho; recomeçarmos juntos a partir da Covid-19 para traçar caminhos de paz; compreender que a tecnologia é resultado do potencial criativo da pessoa humana; a necessidade de discernimento no uso de dados e conteúdos da internet; ter consciência de que o vírus da guerra é mais difícil de derrotar do que os vírus que atingem o organismo humano; cuidar para que a Inteligência Artificial possa promover o desenvolvimento humano desde que seja utilizada de forma ética.
Volto à exortação do Dr. Ulisses Riedel. Instalada na UnB, no Memorial Darcy Ribeiro, é sim importante que A Tribuna Livre pela Paz, esteja integrada à perspectiva da racionalidade científica, na sua dimensão paradigmática do complexo, do multi, inter e transdiscisplinar que organizam o protocolo do conhecimento no contemporâneo. A paz como campo de estudo, de pesquisa, como modo de conhecer.
É pertinente essa exortação. Desde seu estatuto, a UnB insere em seu projeto (universidade necessária), a atualização de suas finalidades, nelas inscrita a condição de inclusão, de completude, de lealdade com o social (universidade emancipatória) assumindo o compromisso, conforme as finalidades essenciais inscrita no seu Estatuto Art. 3º, item XII com a paz, com a defesa dos direitos humanos e com a preservação do meio ambiente.
Em Educando para os Direitos Humanos: Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade. Organizadores: José Geraldo de Sousa Jr, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão, Marilson dos Santos Santana, Sara da Nova Quadros Côrtes. Porto Alegre: Editora Síntese, 2004, anotamos que a inserção dos temas Paz e Direitos Humanos, para conduzir as reflexões temáticas neste novo modelo, derivou de duas motivações complementares. No primeiro termo, -a eleição naquele ano do Reitor CRISTOVAM BUARQUE para a Presidência do Conselho da Universidade para a Paz, das Nações Unidas, com sede em San José, Costa Rica, criando condições para a celebração de um protocolo de intenções entre aquela Universidade e a UnB, para o desenvolvimento de um programa comum.
O protocolo, assinado na cidade de Yxtapa (México), pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, Prêmio Nobel de Literatura, na qualidade de testemunha, pedia um ambiente universitárioadequado ao desenvolvimento dos seus termos. Este ambiente, na UnB, foi o NEP, criado em 1º de janeiro de 1986, como Núcleo de Estudos e Pesquisas para a Paz e os Direitos Humanos. Para alcançar os seus objetivos, o NEP se propôs, conforme os seus documentos constitutivos, a: (1) desenvolver pesquisa capaz de produzir conhecimento novo sobre a paz e os direitos humanos, reunindo investigadores de diferentes campos científicos num esforço interdisciplinar; (2) manter programa permanente de ensino e pesquisa no âmbito da universidade e da comunidade; (3) divulgar os conhecimentos sobre a paz e os direitos humanos, mediante publicações de resultados de pesquisas, do próprio NEP e de centros congêneres. Organizar seminários, cursos e atualizações, e promover conferências, colóquios, exposições e eventos; (4) efetuar intercâmbios com centros similares; e (5) oferecer à comunidade acesso às suas atividades.
A atuação consolidada do NEP levou à especificação de três linhas principais de estudos e pesquisa: O Direito Achado na Rua e Os Direitos Humanos e Cidadania; a pesquisa para a paz, propriamente dita, instituída e coordenada pelo Professor NIELSEN DE PAULA PIRES e focalizada nos estudos de graduação (disciplina pesquisa para a paz) e de pós-graduação. O professor Nielsen aliás, foi Diretor do CEAM e, originado do Instituto de Ciências Políticas acabou institucionalizando nessa unidade, como vocação fomentadora do CEAM, a campo de estudos e pesquisas sobre a paz.
Ainda no CEAM, os esforços para institucionalizar epistemologicamente os estudos e as pesquisas para a paz, se deram pela interlocução internacional com os setores avançados nessa área, relevo para a cooperação coma IPRA – International Peace ResearchAssociation.
Nessa interlocução a fonte principal de referência foi Johan Galtung, professor e pesquisador norueguês que se insurgiu contra a naturalização da guerra na política internacional e reorientou o debate acadêmico sobre a paz durante a Guerra Fria. Galtung faleceu neste ano de 2024, no dia 17 de fevereiro, aos 93 anos de idade. Ele deixou um legado intelectual importante, que abrange contribuições seminais sobre tópicos tão diversos como os conceitos de violência direta-estrutural-cultural, o conceito de paz negativa e paz positiva, o imperialismo e suas implicações para a paz, as noções de peacekeeping, peacemaking e peacebuilding, a resistência não violenta, bem como o conceito de transformação de conflitos.
Para uma referência mais direta remeto a https://diplomatique.org.br/johan-galtung-paz/, de modo a reter de Galtung, a sua indicação de que a equação da paz que daí emerge é complexa e levanta desafios imensos no campo da resolução de conflitos e construção da paz, apontando para a necessidade de um conjunto abrangente de medidas que engloba não só os tradicionais mecanismos diplomáticos de cessação da violência direta (negociação, mediação, acordos de paz), mas também ações mais ambiciosas, voltadas para a transformação das raízes estruturais da violência (desenvolvimento social e econômico, redução da pobreza e das desigualdades, paridade de gêneros, ampliação das oportunidades de acesso à saúde, educação, habitação e à terra, aumento da participação política, combate aos mecanismos de opressão e exploração, justiça de transição, etc.) e para a transformação das raízes culturais da violência (educação e comunicação para a paz, revisão de mitos e narrativas históricas, atividades culturais e artísticas que desconstruam estereótipos e promovam a reconciliação e a tolerância etc.).
Forte nessas referências, dirijo a atenção para a edição temática – Guerra e Paz – da Revista Humanidades. Brasília: Editora UnB, nº 18, ano V/1988. A edição contou com a colaboração de Clóvis Brigagão, Secretário-Geral da IPRA no Brasil (International Peace ResearchAsociation). Na abertura, o texto-editorial do Reitor Cristovam Buarque, contextualiza a proposta editorial: “A luta pela paz exige o entendimento, o esclarecimento, a denúncia e a reformulação do próprio conceito de guerra – ampliando-o a todas as formas de destruição do patrimônio humano, provocadas, contraditoriamente, pelo poder e esforço criativo do homem. Nesta luta de ideias, pela paz singular contra todas as guerras, a educação é o principal fator, a escola o principal exército. Mas um fator que não cumprirá o seu papel se for apenas um agente propagandístico. É preciso que a escola que busque a paz seja uma escola que busque desvendar o véu que encoberta todas as formas de relações injustas entre os homens”.
E, certamente, a dimensão educadora e política da abordagem do tema, leal aos paradigmas acadêmicos de racionalidade epistemológica, estão em concordância com os pressupostos do que a UNESCO já fixou como Cultura de Paz. Uma perspectiva presente no teto de Cristovam mas, igualmente, no texto contextualizador de VicençFisas no pressuposto de que “o conceito de paz não se refere somente à ausência de guerra mas relaciona-se com a ausência de qualquer tipo de violência que impeça a satisfação de necessidades humanas básicas. Assim, a paz se caracteriza ‘por um elevado grau de justiça e uma expressão mínima de violência’. Trata-se da possibilidade de reencontro do ser humano com seu ambiente social, político, econômico, tecnológico e ecológico, em termos de equilíbrio e isento de opressão”. Dito de forma sintetizadora, com o escritor e poeta Tetê Catalão, um dos editores: “Se é de paz, faz…”.
Ao fim e ao cabo, trata-se de conectar, a partir das tradições ancestrais, muito presente na UnB, a quem o Conselho Universitário outorgou o título de Doutor Honoris Causa, e um dos mais recentes intelectuais admitidos na Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak. Em discurso em prol da coletividade, da tolerância, da ciência e da paz, proferido em abertura de semestre na UnB (aliás, foi também na UnB que ele cunhou a expressão que dá título a um de seus livros – Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Krenak toca a sensibilidade dos estudantes quanto à expectativa que têm das universidades.Krenak vislumbra como horizonte: “produzir ciência e conhecimento que auxilie o mundo a viver em paz”, ciente de que a paz é resultado de lutas. “Ciência. Ciência. Ciência. Paz. Paz. Paz, ciência”. “Paz não é um orvalho da manhã, mas resultado de resistência e luta“, O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal (KRENAK, Ailton. Caminhos para a cultura do bem viver. São Paulo, Cultura do Bem Viver, 2020).
Num Brasil de quebradas, num Brasil com s, sufocado por um Brazil com z (Aldir Blanc, Querelas do Brasil), qual a paz que queremos, qual a paz a construir. Essa é a função da atitude científica para conhecer a paz; a disposição sensível já exibe a paz que não queremos, como em Minha alma (A paz que eu não quero), canção de O Rappa (https://www.youtube.com/watch?v=vF1Ad3hrdzY):A minha alma ‘tá armada/E apontada para a cara do sossego/Pois paz sem voz paz sem voz/Não é paz é medo…
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).