Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
O MST e a Memória. MST 1984-2024. Caderno de Formação nº 61. Organização: Rosmeri Witcel, Edgar Jorge Kolling, Jade Percassi, Geraldo Gasparin, Rosana Cebalho Fernandes e Roseli Salete Caldart. São Paulo: MST Secretaria Nacional, 1ª edição, novembro de 2023; 2ª edição atualizada, março de 2024, 123 p.
Começo, numa coluna que tem por objetivo a leitura, destacando a Arte da Capa, que ilustra o texto deste Lido para Você: MST 40 anos. Criação e concepção: Anderson Augusto de Souza Pereira, Tarcísio Leopoldo, Manoel Joaquim da Silva Neto, Vanessa Dias Diniz, Joatan Xavier, da brigada Cândido Portinari; e Rosmeri Witcel, da equipe “Rumo aos 40 anos”. Pintura: Anderson Augusto de Souza Pereira: Foto @gcaetanoj.
A publicação reafirma uma das principais configurações do agir contemporâneo dos Sem Terra e do MST, forte no articular memórias de lutas e experiências transformadoras. Isso faz o Movimento se constituir um ser educador e atribuir ao MST o lograr apreender a dimensão educativa de suas ações, fazendo delas um espelho para suas práticas de educação. Essa referência de olhar ajuda a enxergar os limites e desafios destas práticas.
Por isso se diz que os participantes do MST são sujeitos pedagógicos que cotidianamente apreendem novos conhecimentos e os transmitem em seu movimento pedagógico. É o que afirma Natálya Dayrell de Carvalho, da Universidade Federal de Uberlândia, em “A Proposta de Educação e a Pedagogia do MST” (https://www2.fct.unesp.br/cursos/geografia/CDROM_IXSG/Anais%20-%20PDF/Natalya%20Dayrell.pdf).
Não é pois incidental que essa disposição educadora tenha contribuído para a criação de uma das mais importantes políticas públicas de fomento a emancipação da cidadania do campo, exatamente a política de educação do campo – PRONERA. Que aponta, ao fim e ao cabo – mencionei isso em contexto de leituras sobre a educação do campo – https://estadodedireito.com.br/o-direito-e-a-educacao-do-campo/ – para a possibilidade efetiva de constar e confrontar a existência persistente ainda em nosso Pais de uma disputa que envolve, de um lado, a secular manutenção da concentração da terra frente à necessária democratização do acesso à essa terra e ao território; e de outro, a formulação de projetos políticos antagônicos para o campo brasileiro, desafiando a elaboração de agendas para a adoção de estratégias econômicas, sociais, políticas e jurídicas que conforma esse tema.
Para uma recensão acerca vertente de educação popular transformadora, vale conferir o Dossiê Educação do Campo: documentos 1998-2018. Clarice Aparecida dos Santos, Edgar Jorge Kolling, Eliene Novaes Rocha, Mônica Castagna Molina, Roseli Salete Caldart (Organizadores). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2020, 435 p. E, a propósito, minha resenha sobre essa edição que me foi oferecida por minha colega Mônica Castagna Molina, do curso de educação do campo da UnB (licenciatura) e ex-Diretora do PRONERA, também co-organizadora do vol. 3 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Agrário.
Trata-se, como indica o título, de um dossiê, que reúne as memórias de 20 Anos da Educação do Campo e do PRONERA. São documentos, relatórios, pareceres, manifestos e atos sobre a educação dos povos, trabalhadores, educadoras e educadores do campo e sobre o pensamento pedagógico nesse processo desenvolvido, revelando sujeitos políticos-educadores no contexto da história de um Movimento Social Educador.
Com efeito, compulsando algumas dessas agendas, que conformam o tema geral do direito à terra a à reforma agrária, notadamente na conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático que levou ao afastamento da Presidenta Dilma Rousseff e com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da educação do campo compõe essa agenda, em concreto no âmbito da formulação de políticas públicas, juntamente com a questão estratégica da preservação da água como um bem social, do direito agrário, do cooperativismo, do fortalecimento da agricultura familiar, e da função social da terra e da propriedade, para valorizar a agroecologia para garantir a soberania alimentar brasileira e a humanização da produção agrícola com a substituição do modelo de produtividade apoiado no sistema de uso intensivo de agrotóxicos, da estrangeirização mercantil da terra, do protagonismo político e da participação deliberativa na governança.
Certamente há outros aspectos que se inserem nessa agenda, de algum modo aceita pela governança para conferir itens de negociação, sobretudo com os movimentos sociais do campo, Basta ver os enunciados dos representantes dos principais movimentos – MST e também Via Campesina – enquanto denunciam a criminalização que sofrem e propõem a valorização da vida no interior, com geração de emprego e oportunidade de formação para jovens com a implantação de milhares de pequenas agroindústrias na forma de cooperativas, capazes de dar emprego e estudo a milhões de assentados e participantes dos programas de reforma agrária e de acesso à terra e a territórios (quilombolas, ribeirinhos, indígenas), em confronto com os modelos promovidos pelo capitalismo financeiro e por suas grandes empresas assentadas na monocultura, onde cada fazenda se especializa em um produto, com uso intensivo de máquinas agrícolas e agrotóxicos.
Essa é a plataforma formulada pelo Projeto O Direito Achado na Rua para, com a sua reflexão, contribuir criticamente para a qualificação teórica e política dos movimentos sociais do campo, corroborando o que dizia Plínio de Arruda Sampaio, no vol 3, da Série O Direito Achado na Rua (Introdução Crítica ao Direito Agrário”, Brasília/UnB/São Paulo/Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, pág. 317: “o desenvolvimento de um pais está travado por uma questão agrária quando a trama das relações econômicas, sociais, culturais e políticas no meio rural produz uma dinâmica perversa que bloqueia tanto o esforço para aumentar a produtividade, como as tentativas de melhorar o nível de vida da população rural e sua participação ativa no processo político democrático”.
De modo intrinsecamente pedagógico, a publicação, ela em si um programa de formação, a partir da série que lhe dá consistência político-pedagógica, está toda organizada com contribuições que sustentam a memória como um fundamento para a ação política transformadora, animada por um projeto de sociedade.
Aberta com a Apresentação, assinada por João Pedro Stedile e com o Documento Síntese do Seminário ‘O MST e a Memória’; seguem-se os textos O MST e a Memória: considerações em torno do lugar da memória e sua relação com a história na ação social, de Regina Célia Gonçalves; Notas ao Seminário ‘O MST e a Memória’, de Adelaide Gonçalves; Memória e luta de classes, de Douglas Estevam; A CPT e sua contribuição à memória das lutas no campo, de Ronilson Costa; Memória e história não são iguais, de Clifford Welch; e O trabalho da equipe de arquivo e memória do MST, de Lucimeire Barreto e Tassiana Barreto.
Logo, a epígrafe para demarcar a publicação, retirada de Walter Benjamin: “O dom de atear ao passado a centelha das esperanças pertence somente àquele que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso” (4ª capa).
Lembramos eu e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade) – https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/ – que é necessário “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade”.
Tudo para ter como apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, “apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo?”.
Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter.
A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.
Em https://brasilpopular.com/mst-formacao-comunitaria-em-direitos-humanos/, procurei mostrar a importância de construir, na relação entre o acadêmico e o protagonismo social, compromissos sérios de fortalecimento de projetos emancipatórios, tal como sugeri em meu depoimento na CPI do MST, conforme registro de minha exposição transcrita aqui mesmo na Coluna O Direito Achado na Rua, neste Jornal Brasil Popular – https://brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/ -, valendo reproduzir o final de minha exposição: “A Academia leva a sério esse tema. Também o Congresso que se constitui pela força instituinte dos movimentos sociais que lhe deram feição e alcance constituinte, pode ser o promotor da valorização de um programa de atuação emancipadora que caracteriza o MST e que lhe angaria reconhecimento quase universal. Claro que o MST é conflito, mas insisto, também é projeto. Conforme disse o Promotor de Justiça Marcelo Goulart em entrevista recente (https://jornalggn.com.br/cidadania/reforma-agraria-estrategia-e-direito-difuso-por-marcelo-goulart/), nesse projeto não é só a reforma agrária que está em causa, por ser é uma das principais formas de emancipação do povo trabalhador, mas também a democratização do acesso à terra e produção econômica e ecologicamente sustentável no campo, e o que é de mais básico para todos: soberania e segurança alimentar”.
Nesse compromisso se inscreve a proposta de formação comunitária em direitos humanos que a Universidade de Brasília realiza em formato de extensão universitária para o setor de direitos humanos do MST, numa parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e com o fomento promovido por emendas parlamentares designadas orçamentariamente pelos deputados federais Orlando Silva e Helder Salomão.
O projeto tem o Objetivo Geral (desdobrado em objetivos mais específicos) de contribuir para a “Organização, mobilização e realização de seminários regionais de formação comunitária em direitos humanos para populações rurais, de modo especial famílias camponesas, agricultoras/es familiares, assalariadas/os rurais, assentadas/os e acampadas/os da reforma agrária, indígenas, quilombolas, discentes e egressas/os dos cursos do PRONERA, lideranças comunitárias e defensoras/es de direitos humanos, em diálogo, interação e articulação com ativistas, comunicadoras/es, estudantes e professoras/es universitários, profissionais do sistema de justiça e advogadas/os populares, com a organização de dois livros”.
E espera ter como resultados, entre outros desenhados na sua justificativa, “Promover atividades de debate e reflexão sobre Direitos Humanos, desigualdades, preconceito e discriminação social, de gênero, raça, etnia e sexualidades para um público alvo direto de 420 pessoas distribuídas nos 6 seminários nas cinco regiões do país; Discutir o acesso de bens e serviços nas áreas rurais e formas de melhorar as condições de vida das populações do campo, considerando as diferentes ruralidades; Ampliação dos conhecimentos historicamente construídos sobre Direitos Humanos por parte dos participantes, compreendendo as diferenças culturais e territoriais na concepção, elaboração, reivindicação, mobilização e aplicação dos direitos em face das autoridades locais, regionais e nacionais; Sistematização dos conhecimentos adquiridos e construídos durante os seminários, materializado em livro sobre a atualidade dos direitos humanos no campo brasileiro; Fomentar o desenvolvimento de projetos locais que busquem promover nas comunidades rurais a educação em direitos humanos”.
Vamos agora para o II Seminário Formação Comunitária em Direitos Humanos – Região Nordeste – em Fortaleza, nele também, o 2º Encontro Nacional do Coletivo Jurídico Zé Maria do Tomé (Centro Frei Humberto. Endereço: Rua Paulo Firmeza, 445 – São João do Tauape).
A Programação, instaurada como sempre com recepção, alojamento e credenciamento, acolhida, agenda cultural e mística terá as mesas “Racismo Ambiental e a defesa dos territórios e dos bens comuns no contexto da emergência climática”, “Novas formas de violência e conflitos no campo”, “Resistência e Violência no Campo no Nordeste”, “Cenário atual da Política Fundiária no Nordeste”, “Participação e impacto do Sistema Justiça nos acesso a terra e território”, “Relações étnico-raciais e de gênero na luta por terra e território”, “Direitos Humanos e Natureza: o combate aos agrotóxicos no Brasil”, com a distribuição temática e eventos distribuídos entre os promotores, parceiros e aliados, num acumulado que será sintetizado ao final de todos os seminários e nas publicações previstas no projeto.
Desde a perspectiva da UnB, do que se trata é articular memória e cultura contra essas estratégias desconstituintes e desdemocratizantes, já com um bom acervo constitutivo para pensar outras possibilidades de conferir “definição jurídica diferente”, descriminalizando e politizando no sentido instituinte, condutas que ampliam acesso a direitos. No volume 3, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília: Editora da UnB/Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002 organizado por mim, Mônica Castagna Molina e Fernando da Costa Tourinho Neto (então Presidente da Associação dos Juízes Federais), sintentizamos essas possibilidades ao horizonte de que o MST é conflito, mas é também projeto.
Essa perspectiva está conforme o que o próprio MST assenta no campo da cultura, articulando memória e educação para a cidadania ativa. Veja-se no livro, no documento síntese (p. 17-18), como está inscrita a conjuração de sua memória coletiva:
A luta do MST se reconhece como herança das lutas da classe trabalhadora que o antecederam, mas também se enraíza no presente como referência para experiências no futuro. Há uma memória do MST e ela nos conecta com o futuro e para além de nós.
A experiência da vida no Movimento se configura como um processo de formação humana, que contém história, memória e cultura como dimensões que dialogam entre si. Cada espaço de experiência social e política do MST é um lugar de memória, onde se vive e se aprende; e se produz documentos históricos de toda natureza: símbolos, poemas, canções, filmes, fotografias, campos de cultivos, construções, depoimentos, textos escritos, monumentos etc.
Trabalhar a memória implica organizar, pôr alguma ordem em tudo isso, selecionando coletivamente o material que toma parte da disputa de projetos do presente, prospectando possibilidades de futuro. Precisamos que mais gente nossa entenda a força do legado, o que herdamos e o que estamos deixando para os que vêm depois de nós. Isso implica reconhecer que essa força está em nossos acampamentos e assentamentos, em cada luta, escola, cooperativa ou prática solidária.
As matrizes formativas sistematizadas pela Pedagogia do Movimento podem ser uma chave para pensar a construção da memória do MST: luta, organização coletiva, trabalho, cultura e história. E no trabalho socialmente produtivo, a especificidade formadora do trabalho na terra, ela mesma matriz do ser humano como ser natural e social.
Nessa direção, reafirmamos algumas dimensões e processos que constituem as diferentes camadas da materialidade viva de nosso percurso e podem orientar a produção intencional de nossa memória coletiva, bem como a organização de registros e acervos.
Com seu programa de formação o MST instaura aquele movimento que corresponde ao vaticínio de Marx sobre a caminhada dos trabalhadores em direção a sua emancipação. Recupero-o em Roberto Lyra Filho (Desordem e Processo: Um Posfácio Explicativo. In LYRA, Doreodó Araujo (org). Desordem e Processo. Estudos sobre o Direito em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986) p. 273: “É também nesse movimento dos fatos que se pode buscar o rumo da História, isto é, o sentido objetivo duma caminhada para a emancipação humana, que traz na filosofia o cérebro condutor e nos trabalhadores o seu coração destemido (Marx-Engels, Werke, 1983, 1, 391). Porque estes últimos têm um elemento de sucesso: o número – que, entretanto, ‘só pesa na balança quando se unifica, na associação, e é guiado pelo saber’ (Marx-Engels, Werke, 1983, 16, 12)”.
Foto Valter Campanato | José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |