Para a Elite a Liberdade do Pobre é, Ferido, Quase sem Dentes, não Poder Comer

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, neste final de junho, um projeto que busca restringir a distribuição de comida a pessoas em situação de rua. O texto prevê 17,6 mil reais em multa para quem descumprir as novas regras. O projeto, de autoria do vereador Rubinho Nunes (União Brasil), o mesmo que em março deste ano, tentou instalar uma CPI contra a atuação do padre Júlio Lancellotti e de ONGs no amparo às pessoas em situação de rua no centro da cidade (https://www.cartacapital.com.br/politica/camara-de-sp-aprova-projeto-que-preve-multa-de-r-176-mil-por-doacao-de-alimentos/).

Antes mesmo de ser votado em segundo turno o projeto, altamente repudiado pelas organizações e movimentos sociais e por vozes de maior repercussão política, está praticamente inviabilizado, como o foi o intento de confrontar a ação misericordiosa do padre Júlio, com a tentativa de instalar a CPI.

Ainda bem. Não é só uma postura aporofóbica a que reveste a proposição. E que nele insere um núcleo de inconstitucionalidade, assinando-lhe um destino de merecido descarte. A Constituição, é notável, se funda nos princípios da fraternidade, da solidariedade, dos direitos humanos, com a finalidade de alcançar uma sociedade justa coma superação da pobreza.

Mostrei isso aqui neste espaço (Coluna O Direito Achado na Rua), ao analisar e comentar a posição do Supremo Tribunal Federal, firme nessa justa causa  (https://brasilpopular.com/o-stf-e-a-acao-consciente-contra-a-aporofobia-oasco-a-pobreza/).

É certo que, tal como no legislativo, também no judiciário, a justa causa não é uma matéria imediatamente acessível. Nesta mesma conjuntura, conforme publicação no blog do Sintajufe, com o título Corte Educada à Mesa – https://sintrajufe.org.br/tribunal-promove-aula-de-etiqueta-para-treinar-novos-juizes-no-uso-de-talheres-e-guardanapos-regras-de-etiqueta-nao-deveriam-ser-preocupacao-na-formacao-de-magistrados/ – em expor uma disposição do tribunal Regional Federal da 3ª Região, sobre a promoção deaula de etiqueta para treinar novos juízes no uso de talheres e guardanapos, como se regras de etiqueta devessem ser preocupação na formação de magistrados. A matéria publicada“aponta que a Escola de Magistrados do TRF3 (Emag) contratou, para seus novos juízes, um curso de etiqueta que inclui uma palestra sobre a disposição e o uso de pratos e talheres na mesa – o “ABC da Mesa”. Conforme o Metrópoles, a empresa responsável recebeu R$ 9,8 mil. Mesmo com um valor relativamente baixo, se comparado a outros gastos no Poder Judiciário, a escolha da pauta revela, em parte, uma preocupação que caberia em um serviço de diplomacia, mas não para um membro do Estado que deve ter como prioridade julgar demandas da população”.

O que mais incomoda na notícia é o levantamento que o Sindicato faz do que classifica como “muito além do folclórico: autoconcessões da magistratura ameaçam orçamento e expõe prioridades”, descrevendo uma catálogo de medidas entre bizarras e extravagantes, que vão desde a criação de uma “Calçada da Fama” cogitada em um tribunal de justiça “para homenagear ex-presidentes do tribunal, como a disse o Presidente do Tribunal em entrevista, que “a gente só via em Hollywood, no Maracanã. […] Vamos fazer as mãos – que é o nosso instrumento de trabalho – de todos os presidentes que ainda estão vivos, hoje são 17. E, à medida que os presidentes forem saindo, eles vão fazer o molde da mão, com a assinatura moldada, o nome e o ano”, explicou. E concluiu: “Vai ficar uma coisa muito bonita, uma atração para os turistas, para os juristas, para todos que visitam a nossa cidade”. Ainda bem que a repercussão negativa da proposta, levou o Tribunal em nota, a negar a proposta.

O fato é que oSintrajufe/RS, responsável pelo levantamento conforme a matéria referida, chega a ser assertivo ao afirmar que“vem há muito tempo alertando que a criação de benefícios autoconcedidos pela magistratura consome os recursos de todo o Judiciário, na medida em que não há orçamento próprio para esses pagamentos. Rapidamente já começamos a sentir os efeitos dessas medidas. E esse cenário gera riscos também para medidas como a nomeação de novos servidores e servidoras para vagas abertas. Ao mesmo tempo, esse “cobertor curto” faz aumentar a pressão para que “soluções criativas” sejam implementadas em detrimento da realização de concursos públicos e da valorização de servidores e servidoras. São exemplos desse processo as terceirizações e a contratação de “residentes jurídicos” por uma fração de um salário de um técnico ou analista concursado, numa evidente substituição de mão de obra”.

É desalentador para uma sociedade que foi capaz de promover uma constituição cidadã (1988) para sinalizar o percurso que reverteu a origem desumanizadora de cidadania alienada da dignidade e dos direitos como se registrava na constituição da mandioca (1824), ainda se confrontar, no institucional, com tais disposições neocoloniais.

Por isso a importância de ações que se indignem, que como o padre Julio Lancellotti, se armem, de gestos solidários e, no limite, da marreta com a qual estilhasse obstáculos arquitetônicos, legais, posturas e medidas antipovo, porque encouraçados na convicção de que sãoserpentes, e mesmo quando vestem a pele de governo, da justiça, ou qualquer outra institucionalidade, diz Eduardo Galeano: “só mordem os pés descalços” (https://www.brasilpopular.com/ossos-de-boi-arroz-e-feijao-quebrados-e-pe-de-galinha-fome-no-brasil/; ver também https://brasilpopular.com/humanizar-se-estando-ao-lado-dos-pobres/; e https://brasilpopular.com/lei-padre_lancellotti/.

Como Juvenal, é necessário transformar a matéria da indignação em atos, e até em riso, em face do bizarro e da extravagância. E como ele, denunciar a hipocrisia e a carência de discernimento das elites, para que a liberdade do pobre não seja a de ferido, derrubado por golpes, chegar ao ponto de proibido de comer: “A liberdade do pobre é esta: ferido pede, e derrubado pelos golpes implora que lhe seja permitido voltar para casa com alguns dentes (Libertas pauperishaec est: pulsatusrogat e pugnisconcisusadorat ut liceatpaucis cum dentibusinde reverti), com a tradução de Monica Costa Vitorino, para a Sátira III, em Juvenal o Satírico Indignado. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 2003.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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