MST: Formação Comunitária em Direitos Humanos

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

Matéria da jornalista Mariana Serafini, publicada em Carta Capital na edição n° 1314 em 12 de junho de 2024 e também em https://www.cartacapital.com.br/politica/boiadeiros-em-furia-2/, com o título boiadeiros em fúria, traz a constatação de que “mesmo após o melancólico fim da CPI do MST, avançam os projetos para criminalizar os movimentos sociais”.

Foto: Suzana Motta

A jornalista ouviu para a preparação da matéria, várias “fontes” e de mim, uma manifestação do que me parece ser um modus operandi bem programado que ela recolheu de forma correta e precisa: “o Professor da Faculdade de Direito da UnB, José Geraldo Sousa Jr. observa que a atuação das bancadas conservadoras tem duas faces. ‘Uma delas é bruta, na linha do coronelismo, herança da nossa sociedade colonial. Serve para armar o braço miliciano que que promove a violência no campo e na cidade.’ Esse lado, diz Sousa Jr., se fortaleceu com a política de flexibilização do acesso a armas de fogo na gestão de Jair Bolsonaro. ‘Tanto que hoje vários clubes de tiro estão nas imediações de territórios indígenas e diariamente vemos notícias de líderes ambientais e ativistas mortos.’ Já a outra face, acrescenta o professor, ‘tem um verniz polido, institucional, mas defende uma agenda de assalto aos recursos públicos e concentração de riqueza’. E isso passa pela criminalização dos movimentos sociais e de qualquer um que tente se se opor a esse projeto. ‘Perceba que, após o melancólico fracasso da CPI do MST, as principais lideranças daquele grupo foram realocadas em outras comissões e, a cada votação, a cada debate, eles avançam com projetos em favor dos interesses do agrobanditismo’.”

A jornalista completa a matéria afirmando que “Em meio às sucessivas derrotas legislativas do governo Lula, uma, em particular, demonstra a força dos setores mais retrógrados do Congresso. No fim de maio, a oposição conseguiu derrubar 28 vetos do presidente na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024. Nos trechos mantidos pelos parlamentares, destacam-se iniciativas que ameaçam os movimentos sociais e os direitos da população LGBTQIA+ e das mulheres. Sob o pretexto de defender o direito à propriedade e os valores da família cristã, o deputado Eduardo Bolsonaro propôs, e seus colegas aprovaram, a criação de dispositivos que proíbem a União de realizar despesas destinadas à “invasão ou ocupação de propriedades rurais privadas”, “cirurgias em crianças e adolescentes para mudança de sexo” e “realização de aborto, exceto nos casos autorizados em lei”.

E ela associa o movimento atual dessa articulaçãocom a formação dafrente parlamentarcriada na esteira da CPI do MST, que“parece replicar o modelo da União Democrática Ruralista, que possuía um braço político, mas também uma milícia rural, bastante ativa nos anos 1980, para reprimir qualquer mobilização dos sem-terra”.

Anoto que minha manifestação colhida pela matéria replica e está antecipada em artigo que com Renata Carolina Corrêa Vieira escrevemos para o Le Monde Diplomatique– https://diplomatique.org.br/a-funcao-social-da-propriedade-pedra-angular-da-constituicao-cidada/ – ao refutar a malícia dessa articulação embutida na estratégia de desconstitucionalização que estava e ainda está em curso no país, especificamente em face de Proposta de Emenda à Constituição, subscrita pelo Senador Flávio Bolsonaro, com assinaturas de apoio de conhecidos membros da bancada ruralista, que tem por objetivo “alterar os artigos 182 e 186 da Magna Carta de 1988 para definir de forma mais precisa a função social da propriedade urbana e rural e os casos de desapropriação pelo seu descumprimento”.

Ao desvelar a manobra inscrita na “proposta”, acabamos por sustentar, com Plínio de Arruda Sampaio (Constituinte em 1988), que “o desenvolvimento de um país está travado por uma questão agrária quando a trama das relações econômicas, sociais, culturais e políticas no meio rural produz uma dinâmica perversa que bloqueia tanto o esforço para aumentar a produtividade, como as tentativas de melhorar o nível de vida da população rural e sua participação ativa no processo político democrático” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). vol 3, da Série O Direito Achado na Rua “Introdução Crítica ao Direito Agrário”, Brasília/UnB/São Paulo/Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, pág. 31).

Daí a importância de construir, na relação entre o acadêmico e o protagonismo social, compromissos sérios de fortalecimento de projetos emancipatórios, tal como procurei sugerir em meu depoimento na CPI do MST, conforme registro de minha exposição transcrita aqui mesmo na Coluna O Direito Achado na Rua, neste Jornal Brasil Popular – https://brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/ -, valendo reproduzir o final de minha exposição: “A Academia leva a sério esse tema. Também o Congresso que se constitui pela força instituinte dos movimentos sociais que lhe deram feição e alcance constituinte, pode ser o promotor da valorização de um programa de atuação emancipadora que caracteriza o MST e que lhe angaria reconhecimento quase universal. Claro que o MST é conflito, mas insisto, também é projeto. Conforme disse o Promotor de Justiça Marcelo Goulart em entrevista recente (https://jornalggn.com.br/cidadania/reforma-agraria-estrategia-e-direito-difuso-por-marcelo-goulart/), nesse projeto não é só a reforma agrária que está em causa, por ser é uma das principais formas de emancipação do povo trabalhador, mas também a democratização do acesso à terra e produção econômica e ecologicamente sustentável no campo, e o que é de mais básico para todos: soberania e segurança alimentar”.

Nesse compromisso se inscreve a proposta de formação comunitária em direitos humanos que a Universidade de Brasília realiza em formato de extensão universitária para o setor de direitos humanos do MST, numa parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e com o fomento promovido por emendas parlamentares designadas orçamentariamente pelos deputados federais Orlando Silva e Helder Salomão.

O projeto tem o Objetivo Geral (desdobrado em objetivos mais específicos) de contribuir para a “Organização, mobilização e realização de seminários regionais de formação comunitária em direitos humanos para populações rurais, de modo especial famílias camponesas, agricultoras/es familiares, assalariadas/os rurais, assentadas/os e acampadas/os da reforma agrária, indígenas, quilombolas, discentes e egressas/os dos cursos do PRONERA, lideranças comunitárias e defensoras/es de direitos humanos, em diálogo, interação e articulação com ativistas, comunicadoras/es, estudantes e professoras/es universitários, profissionais do sistema de justiça e advogadas/os populares, com a organização de dois livros”.

E espera ter como resultados, entre outros desenhados na sua justificativa, “Promover atividades de debate e reflexão sobre Direitos Humanos, desigualdades, preconceito e discriminação social, de gênero, raça, etnia e sexualidades para um público alvo direto de 420 pessoas distribuídas nos 6 seminários nas cinco regiões do país; Discutir o acesso de bens e serviços nas áreas rurais e formas de melhorar as condições de vida das populações do campo, considerando as diferentes ruralidades; Ampliação dos conhecimentos historicamente construídos sobre Direitos Humanos por parte dos participantes, compreendendo as diferenças culturais e territoriais na concepção, elaboração, reivindicação, mobilização e aplicação dos direitos em face das autoridades locais, regionais e nacionais; Sistematização dos conhecimentos adquiridos e construídos durante os seminários, materializado em livro sobre a atualidade dos direitos humanos no campo brasileiro;  Fomentar o desenvolvimento de projetos locais que busquem promover nas comunidades rurais a educação em direitos humanos”.

Dentro dos objetivos o projeto já iniciou o método de seminários, realizando o primeiro deles, entre 27 e 29 de maio nas instalações da Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, São Paulo.

Neste primeiro seminário, conforme a matéria publicada pelo Setor de Comunicação do MST – https://mst.org.br/2024/05/29/seminario-na-enff-traz-formacao-comunitaria-voltada-a-direitos-humanos/ – discutiu-se políticas fundiárias, direitos humanos e a luta pela Reforma Agrária no Brasil.

Para Ayala Ferreira, do Setor de Direitos Humanos do MST, o projeto foi inspirado em experiências anteriores na região Nordeste, focando na formação de base para aqueles que vivem nos acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária Popular e atuam na mediação de conflitos. Segundo Ayala, “há algum tempo atrás, apareceu essa oportunidade junto com a UnB, em parceria com o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania e através das emendas parlamentares do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) e do deputado Salomão (PT-ES). Estamos agora englobando o Brasil e vamos fazer cinco seminários regionais, começando com esse na região Sudeste”.

A mesa de abertura contou com a fala inicial de Ney Strozake, do Setor de Direitos Humanos do MST, e Orlando Silva, deputado federal pelo PCdoB. Orlando enfatizou a importância do histórico dos movimentos sociais e populares e elogiou a organização do MST na construção de propostas para o país a partir da Reforma Agrária Popular.

O primeiro debate trouxe o cenário atual da política fundiária, com a presença de Sabrina Diniz, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA-SP), Sandra Maria da Silva Andrade, da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), e Ricardo Baraviera, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Diniz ressaltou a necessidade de conhecimento dos processos para que os movimentos sociais saibam onde exercer pressão para avançar nas suas causas.  “Nós retrocedemos 50 anos em 5, e isso é difícil de recuperar […], mas a única forma de garantir estes direitos e avançar para desfazer os retrocessos feitos nos governos anteriores é com informações e conhecimento”.

E complementou: “esses seminários são fundamentais para que as pessoas entendam as nossas limitações, mas que não se paralisem por isso. É importante a gente colocar todas essas limitações orçamentárias, burocráticas, judiciais e entender como funciona e o porque que alguns projetos não saem, se é falta de vontade política, e às vezes é, mas também se é um impedimento de outro setor”, afirmou Diniz.

Neste mesmo sentido, Sandra Maria da Silva Andrade, em participação por videoconferência direto do quilombo, falou sobre os desafios enfrentados pelos quilombolas, destacando a violência constante contra seus corpos e territórios, citando a morte de mãe Bernadete, assassinada em agosto de 2023. Ricardo Baraviera, da APIB, também abordou a violência no campo, ressaltando que os movimentos populares ali presentes são “movimentos irmãos”, pois partem de uma luta que muitas vezes é territorial, é cultural, e que resiste mesmo diante das violências.

O Professor doutor José Geraldo de Sousa Júnior, da UnB, participou da mística da ENFF e realizou o plantio de uma muda de aroeira antes de sua conferência inaugural sobre “Direitos Humanos na Atualidade” (veja a foto que ilustra a matéria). Esta foi a primeira visita do professor à Escola, e fez menção à uma passagem do pesquisador durante sua passagem na CPI contra o MST, realizada no ano passado. “Como é bom estar em um debate em que as pessoas têm cognição”, lembrou.

José Geraldo refletiu sobre o princípio de função social da terra, introduzido na Constituinte de 1988, e como este princípio é questionado atualmente no Congresso Federal. Ele destacou que os direitos humanos são uma disputa por posições democráticas e constitucionais, e que a Constituição Federal de 1988 foi construída pelos movimentos sociais.

“Os Direitos Humanos não são as declarações, não são os monumentos produzidos como símbolos, embora estes tenham indícios. […] Direitos Humanos estão nas ideias, mas ele só se concretiza enquanto disputa por posições democráticas e posições constitucionais. É, em suma, ação política. E por isso que nossa constituição é um instrumento importante, ela foi construída pelos movimentos sociais”, afirmou em discurso.

Na terça-feira (28), o seminário contou com conferências que debateram temas como os massacres no campo, conflitos e emergências climáticas, criminalização e formas de resistência no campo, e a participação e os impactos do Sistema de Justiça no acesso à terra e território. O evento se encerra nesta quarta (29), com uma mesa de reflexão sobre as relações étnico-raciais e de gênero na luta por terra e território, com representantes da CONAQ, APIB e MST.

Para Ayala Ferreira a importância de reunir pessoas para refletir sobre a situação atual do campo, mobilizando membros do MST, movimentos populares para abordar o reconhecimento e a demarcação dos territórios indígenas e quilombolas, e a Reforma Agrária como dimensões fundamentais para superar as desigualdades no Brasil.  “Estamos muito felizes com essa perspectiva de reunir as pessoas para sonharmos coletivamente um outro Brasil, que passa pela democratização do acesso à terra e pelo reconhecimento das terras tradicionais indígenas e quilombolas”, afirmou Ayala.

Foto: Antonio Escrivão Filho (equipe da UnB na ENFF na tarefa de autogestão de serviços gerais-cozinha)

Para a equipe da UnB, incluindo os estudantes-bolsistas do projeto, oriundos da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho, além da atuação nas atividades de realização intelectual do projeto, nas oficinas e na consecução do temário, valeu ainda a vivência de solidariedade de “brigada” nas tarefas de revezamento dos serviços gerais incluindo a limpeza dos utensílios de cozinha.

O Seminário foi também uma ocasião para difundir leitura de conjuntura que impacta o agir social dos movimentos sociais:MST entrevista o professor José Geraldo de Sousa Junior (Assista a entrevista com o professor, realizada no Seminário Inaugural de Formação Comunitária em Direitos Humanos, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP) –  MST entrevista o professor José Geraldo de Sousa Junior – https://www.youtube.com/watch?v=_g_DLc1aBQc.

Tal como está na justificativa do projeto, o difícil e reiteradamente golpeado exercício da democracia no Brasil reivindica a cada dia a retomada e o exercício ativo da cidadania no compartilhamento e construção cotidiana da deliberação sobre o que é o direito, quem possui direitos, e quais os modos de exercê-los e acessá-los em uma sociedade grassada por desigualdades, discriminações e preconceitos sociais, de gênero, raça, etnia e sexualidades, dentre outros fatores de poder que insistem na manutenção de hierarquias e violências institucionais e sociais em nosso país.

Portanto, trata-se de “conhecer, debater, refletir e experimentar a formulação e afirmação dos direitos humanos desde uma perspectiva comunitária, conectando a esfera local ao nível nacional e global, se apresentam ainda como fatores de potencial fortalecimento democrático em relação aos quais a universidade possui importantes papéis e funções sociais a desempenhar”.

E, ao que tudo indica, “a sociedade brasileira permaneceu ausente no processo histórico de formulação da concepção e realização dos direitos e da justiça, uma ausência produzida por intensas relações de poder. Compreender o modo como esta produção de ausências impacta na experiência cotidiana de justiça e direitos humanos, e sobretudo projetar sobre este cenário uma perspectiva de transformação democrática desde o social”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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