Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
O Desenho Constitucional da Desigualdade. Antonio Moreira Maués. 1ª edição – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, 208 p. (Há acesso à Versão Digital Grátis na Nuvem: atendimento@tirant.com).
Recebi, com afetiva dedicatória, esse livro escrito pelo brilhante Antonio Moreira Maués. Conheço Maués desde seus tempos de estudante, quando me recebeu, na condição de dirigente do Centro Acadêmico de Direito, juntamente com seu colega de graduação então e hoje seu colega de congregação José Heder Benatti, para uma palestra na UFPA, sobre meu tema de interpelação crítica ao jurídico, o direito achado na rua.
Curiosamente, há poucos meses, pude reecontrar ambos, por ocasião do concurso de titulação de Banetti, tendo como presidente da Comissão, o Maués https://estadodedireito.com.br/uma-trajetoria-academica-do-agrarismo-aos-direitos-socioambientais/, eu, representando a Universidade de Brasileira, participando como membro externo ao curso (BANCA AVALIADORA, formada pelos professores titulares Antonio Gomes Moreira Maués (Presidente da Banca – UFPA); Carlos Frederico Marés Souza Filho (Examinador Externo – PUCPR); Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega, (Examinadora Externa – UFG); Antonio José de Mattos Neto (Suplente Interno – UFPA) Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray (Suplente Externo – UFMT) ocasião em que foi apresentado e defendido o Memorial para habilitação à titulação, ponto culminante de uma também brilhante carreira.
Sobre o livro, o resumo oferecido pela editora e o sumário, dão conta da relevância da Obra. Vou ao resumo:
A desigualdade é o maior problema da sociedade brasileira. De que modo as instituições constitucionais podem atuar para combatê-la? É possível que a própria ordem constitucional contribua para manter estruturas desiguais? Em que medida a desigualdade afeta o funcionamento do regime democrático? Este livro busca responder às questões acima analisando a atuação das instituições constitucionais do Brasil nas últimas décadas. A Constituição de 1988 conferiu ao Estado instrumentos para reduzir a desigualdade, garantindo o direito à não discriminação e a implementação de políticas sociais. Porém, ao lado das normas que promovem inclusão e redistribuição, outras disposições constitucionais limitam os gastos sociais, preservam o caráter regressivo do sistema tributário e favorecem a concentração da propriedade. O trabalho demonstra que, desde o processo constituinte, tanto interesses favoráveis quanto contrários à redistribuição de renda e riqueza conseguiram se entrincheirar na Constituição, embora de modo assimétrico. As constantes emendas constitucionais sobre tributação e orçamento evidenciam como é difícil obter acordos estáveis para gerir os conflitos distributivos da sociedade brasileira. Além disso, o caráter rígido da Constituição e a justiça constitucional têm operado para restringir avanços nas políticas sociais. O autor conclui que o desenho constitucional adotado em 1988 se mostrou apto para reduzir a pobreza no Brasil, mas não para implementar reformas estruturais que alterem a concentração de renda e riqueza em nossa sociedade. Conhecer como funcionam esses obstáculos constitucionais é fundamental para buscar alternativas que contribuam para a retomada do processo de democratização do país.
E logo ao Sumário:
Agradecimentos ………………………………………………………………….. 7
Capítulo 1 Uma Constituição, Duas Histórias………………………………………. 11
- Desigualdades………………………………………………………………………….. 23
- Igualdade e Democracia …………………………………………………………….. 30
- O Enigma da Constituição de 1988…………………………………………….. 40
Capítulo 2 Constituição e Conflito ……………………………………………………. 44
- Constituição e Estruturação de Conflitos……………………………………… 44
- Constituição e Recursos de Poder………………………………………………… 49
- Regras que Conferem Poderes…………………………………………………….. 56
- Recursos de Poder e Igualdade ……………………………………………………. 62
Capítulo 3 Conflitos Distributivos e Reforma Constitucional ………………. 77
- A Formação de Maiorias na Constituinte……………………………………… 78
- Modelos de Reforma Constitucional……………………………………………. 87
- A Prática da Reforma Constitucional …………………………………………… 97
Capítulo 4 Constituição, Redistribuição e Pobreza……………………………… 111
- Entrincheiramento Estratégico e Maiorias Qualificadas…………………. 113
- O Entrincheiramento da Política Fiscal………………………………………. 124
- O Entrincheiramento da Política Social ……………………………………… 136
- Avanços e Recuos nos Gastos Sociais………………………………………….. 139
- Constituição Redistributiva ou Constituição Anti-Pobreza? …………… 153
Capítulo 5 Constituição, Propriedade e Reforma Agrária …………………… 161
- A Propriedade na Constituição …………………………………………………. 164
- O STF como Ponto de Veto……………………………………………………… 174
Considerações Finais ……………………………………………………….. 188
Referências bibliográficas
O livro de Maués vem juntar-se a um movimento, uma onda, uma tendência, uma disposição, como quer que a chamemos para designar o constitucionalismo de um outro modo, lembrando, com Canotilho (J.J. Gomes Canotilho), quando destaca um importante ator no vetor histórico de transformação social: o sujeito coletivo de direitos. Com Canotilho, pensando outros modos de designar o Direito que se oriente por teorias de sociedade e de justiça, podemos vislumbrar como o social se expressa, atua (é instituinte) e constitui direitos.
Tracei um panorama desse vetor históric-constitucional a propósito de livro que recém co-organizei https://estadodedireito.com.br/constitucionalismo-achado-na-rua-uma-contribuicao-a-teoria-critica-do-direito-e-dos-direitos-humanos-constitucionais/ . E ainda ampliei o desenho, para me valer do título do livro de Maués, até para situar a perspectiva que ele propõe, aludindo a um constitucionalismo da desigualdade, de outra feita, ao elaborar recensão do livro Direitos Humanos e interconstitucionalidade: processos de abertura. Isabella Faustino Alves. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, conforme https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-interconstitucionalidade-processos-de-abertura/.
Assim é que, como está no meu desenho, por impulso de direitos humanos instituintes, tenho chamado a atenção para o que já é possível designar como “Constitucionalismo Achado na Rua”. Em artigo recente, publicado no volume 9, n. 2 (2022): Dossiê: “IPDMS, 10 anos de história e desafios”. Julho a dezembro de 2022. Organização do dossiê: Carla Benitez Martins, Diego Augusto Diehl, Luiz Otávio Ribas e Ricardo Prestes Pazello. DOI: https://doi.org/10.26512/revistainsurgncia.v8i2. Publicado: 31.07.2022, 535 p.) Leura Dalla Riva (p. 406-421) publica um texto que tem como título Bem viver e o “Constitucionalismo Achado na Rua”: um olhar a partir da teoria da ruptura metabólica.
A Autora parte de uma análise da crise ecológica hodierna como resultado da ruptura metabólica existente entre seres humanos e natureza e suas consequências, este artigo focaliza o desenvolvimento do novo constitucionalismo latino-americano como um movimento “achado na rua”. A pesquisa tem como problema de pesquisa: em que medida o novo constitucionalismo latino-americano abre caminhos para a superação da ruptura metabólica ao consagrar a ideia de Bem Viver? Para tanto, utiliza-se abordagem dedutiva. Primeiramente, aborda a categoria “ruptura metabólica” com especial foco na exploração da natureza na América Latina, o que envolve a abordagem de questões como capitalismo dependente no continente e o histórico extrativismo. Num segundo momento, analisa-se qual o papel das constituições da Bolívia e do Equador como construtoras de um constitucionalismo achado na rua e apresentam-se as origens, conceitos e aspectos principais da ideia de “Bem Viver” a partir dos povos latino-americanos. Por fim, aborda-se em que aspectos essas constituições apontam para a superação da ruptura metabólica em prol da ideia de Bem Viver.
Esse texto vem se agregar a um bem constituído modo de pensar o constitucionalismo, enquanto constitucionalismo achado na rua, tal como temos os pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação – O Direito Achado na Ria (certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), tal como o mais atualizado, até aqui, percurso dos estudos com essa concepção, conforme descrito a seguir.
Desde logo, uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua en México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno (De la TORRE RANGEL, 2021).
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.
Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, (WOLKMER; WOLKMER, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido: “Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robo y el abigeato se traduce finalmente, en prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. 1993).
Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019 op. cit.), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.
Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.
A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.
É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.
Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad. Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.
Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).
Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.
O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF. O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.
Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.
Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, op. cit.), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).
Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.
É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.
É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:
A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.
Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.
É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021, op. cit.).
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, 2008a).
Ao indicar a desigualdade como eixo que interpela o constitucionalismo, Maués resgata um momento episódico nos estudos constitucionais brasileiros e mesmo na teoria da justiça que marcaram esses estudos.
Com efeito, subjugados esses campos a uma dogmática pobre, o jurídico sempre foi um epifenômeno, reflexo pálido de uma realidade naturalizada na desigualdade e na exclusão. O positivismo legalista que marcou esses estudos repercutia num manualismo descritivo de um jurídico extremamente redutor delirante do real instituinte inscrito nas relações sociais e de produção.
Aqui, os autores eram repetições da pedagogia de um Bugnet, exacerbado no seu exegetismo, máxima ideologia do legalismo que mal se dava conta que a nova legalidade era a expressão de uma emergência político-econômica da emancipação burguesa. Reproduziam o sentimento que repercutia a vontade dos membros desse pensamento, na forma de uma locução célebre “não conheço o direito civil, ensino somente o Código Napoleão”.
E note-se que Ferdinand Lassalle já tivera sua conferência de 1862 – A Essência da Constituição – publicada, com a constatação certamente compartilhada de sua colaboração com Marx, de que a essência da Constituição reside nos fatores reais de poder.
Também já tinha curso o texto de 1908 de Jean Cruet – A vida do direito e a inutilidade das leis (La vie du droit et l’impuissance des lois), argumentando que, para compreender a legalidade, é necessário estudar as leis como fenômenos históricos, econômicos e sociais.
E mesmo no Brasil, o socialismo de João Mangabeira indicava que não são possíveis direitos elementares desvinculados dos direitos alimentares, de modo a orientar o jurídico pelo viés da desigualdade expresso na máxima do suum cuique tribuere. Deixado ao formalismo que a máxima expressa, numa sociedade desigual, o seu de cada um será sempre o atribuir-se ao pobre a pobreza e ao rico a riqueza, enquanto a igualdade se realize conforme uma transformação social justa, que se expresse na máxima, de cada um conforme o seu trabalho, a cada um conforme a sua necessidade (conferir em MANGABEIRA, João. A Oração do Paraninfo, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). Série O Direito Achado na Rua, vol. 1 – Introdução Crítica ao Direito. Brasília: Editora UnB, 4ª edição, 1993).
Essa talvez seja a vertente que levou Orlando Gomes, em 1956, em A Crise do Direito (Max Limonad) a indicar o curso costeiro dos que fazem navegação de cabotagem ao redor dos códigos, e assim, na perspectiva da economia e do trabalho, a buscar os pressupostos econômicos, sociais e políticos para contextualizar o jurídico.
No âmbito do Direito Constitucional, essas dimensões contextualizadoras estão bastante bem assentadas e integram a bibliografia corrente dos programas e dos currículos jurídicos. Mas até bem pouco tempo e ainda em muitas escolas, há um estigma para abordagens que tragam essa condição.
Por isso que duplamente deve-se registar em Direito Constitucional os estudos muito desafiadores de Luiz Pinto Ferreira, da Faculdade de Direito do Recife. Estudos que até incomodavam e logo sofriam rotulação – não se enquadravam na perspectiva positiva do direito constitucional – tal como reivindicavam autores até progressistas.
É que, o próprio Pinto Ferreira assentava ((Discurso de posse como Diretor da Faculdade de Direito do Recife, pronunciado de improviso no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife, em 8 de março de 1982). Cf. em http://www.luizpintoferreira.com/), “Creio na justiça social, porque a justiça é o ideal do direito, permitindo a constante e progressiva eliminação do desnível de classes entre os homens, o constante desenvolvimento da vida social, dessa justiça que não distingue entre ricos e pobres em face do direito, dessa justiça que é o único escudo dos pequenos contra os grandes e o anteparo protetor do povo humilde e simples”.
Com foco na questão da desigualdade, Maués indica que “para compreender mais as dificuldades enfrentadas pela ordem constitucional inaugurada em 1988, nosso caminho irá explorar as relações entre desigualdade e democracia. A Constituição assumiu a tarefa de construir um regime democrático e reduzir as desigualdades da sociedade brasileira. No Brasil, os avanços e recuos em um desses campos contribuem para os avanços e recuos no outro campo e a análise da Constituição de 1988 deve dar conta dos movimentos de progresso e retrocesso que compõem os dois lados de sua história”.
Há outras questões interpelantes. Mas para mim, essa é a singularidade do livro de Antonio Moreira Maués.
Foto Valter Campanato | José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |