Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Direito à Consulta e Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. Biviany Rojas Garzón, Erika M. Yamada, Rodrigo Oliveira. – São Paulo: Rede de Cooperação Amazônica – RCA, 2016.
Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Guia de Orientações. Erika M. Yamada, Luís Donisete Benzi Grupioni, Biviany Rojas Garzón. – São Paulo: RCA – Rede de Cooperação Amazônica, 2019.
As publicações que apresento neste Lido para Você, foram trazidas para exposição e compartilhamento por ocasião de painel, realizado e transmitido pelas redes sociais do Centro Cultural de Brasília (Jesuítas), com o apoio das mesmas entidades que promovem mensalmente os chamados Diálogos de Justiça e Paz: o OLMA – Observatório Nacional de Justiça Sociambiental Luciano Mendes de Almeira, a CJP/DF – Comissão Justiça e Paz de Brasília e a CBJP – Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Sobre o painel, uma iniciativa do COPAJU Brasil (O Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os Direitos Sociais e a Doutrina Franciscana – COPAJU foi constituído em 4 de junho de 2019 na Cidade do Vaticano, sob a inspiração das palavras de Sua Santidade o Papa Francisco) e a Rede de Cooperação Amazônica, com a participação de mulheres indígenas, entre elas as que participaram do painel
Para a integral apreensão do roteiro do painel, as participações que lhe deram conteúdo, e seus objetivos, pode-se conferir https://www.youtube.com/watch?v=xE0V_TcvMNA, Percursos & Perspectivas – Encontro com Mulheres Indígenas da Rede de Cooperação Amazônica: Convenção 169 da OIT.
De relevo o fato de que o eixo da atividade foi a apresentação dos conceitos, enunciados e, sobretudo, com a locução das mulheres indígenas, a apresentação de um conjunto de registros de protocolos autônomos de consulta e de consentimento, e de experiências que permitiram realizar o modo como foram livremente estabelecidos por povos e comunidades, notadamente na região amazônica. E a mobilizada e comprometida moderação a cargo da Juíza Ananda Tostes Isoni, do TRT 10ª Região, Coordenadora-Geral do COPAJU Brasil.
Nos dois textos postos em relevo, em formato de informação e de guia de procedimento, o instituto da consulta é descrito e situado no contexto de sua formulação, a partir da Convenção 169, da OIT – Organização Internacional do Trabalho (ONU), ratificada pelo Brasil.
No primeiro – Direito à Consulta e Consentimento de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais – de modo claro, bem informado (como orienta o próprio instituto da consulta – os organizadores identificam o marco normativo e jurisprudencial que explica o mecanismo, os desafios para a implementação do direito à consulta e consentimento, oferecem uma reflexão crítica acerca dos percalços de implementação e abrem um capítulo de recomendações em prol da efetivação do direito à consulta prévia no Brasil.
No segundo – Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Guia de Orientações – como o título indica, o objetivo é oferecer uma espécie de manual de uso: em seguida a uma Introdução que esclarece a natureza e os conceitos fundamentais que designam o instituto (consulta), os organizadores o contextualizam desde a perspectiva do dever do Estado de consultar e de buscar o consentimento livre, prévio e informado; indicam o sujeito legítimo a quem se destina e que deve ser o protagonista do processo – o direito de decidir como ser consultado; estabelecem os fundamentos que dão autenticidade ao sistema – para que servem os protocolos de consulta? e a oportunidade para a sua realização – o momento adequado da consulta. Na sequência, o guia de procedimentos: modo de se fazer uma consulta adequada e dicas práticas para a elaboração de Protocolos de Consulta (Dicas para trabalhar informações sobre o contexto local; dicas sobre o Direito à Consulta Prévia e Consentimento; dicas sobre organização social e representação política). Ao final arrolam materiais de referência (Direito à consulta prévia e protocolos de consulta).
Chamo a atenção para outro evento que precedeu o debate inscrito em Percursos & Perspectivas, realizado duas semanas antes no mesmo espaço sob enfoque próximo: https://www.youtube.com/watch?v=9LqU6B1Yn-Q. Nessa edição do Diálogos de Justiça e Paz com o tema Luta Indígena e o Marco Ancestral“. Para fomentar essa conversa, o DJP recebe Kretã Kaingang, liderança da Arpin Sul e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Angela Inácio Kaingang, cacica da Retomada Faxinal do Rio Grande do Sul, e Luis Ventura, Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Luiz Felipe, do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (Olma) e da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), é o responsável por mediar esse diálogo.
Entre os expositores uma cacica (Angela Inácio Kaingang), liderança da Retomada Faxinal, no Rio Grande do Sul. Destaco a designação. Entre temas fortes que o evento trouxe, a partir do título, ao opor a noção de marco ancestral, à exdrúxula e astuciosa expressão colonizadora forjada pelo agronegócio e pelo latifúndo, marco temporal, os indígenas e aliados logo identicaram os grandes eixos que marcam sua luta autônoma, de sujeitos coletivos, para formar a agenda da afirmação de seus direitos originários: retomada, desintrusão, autodemarcação e elaboraão de protocolos autônomos de consulta e consentimento.
Aliás, essa agenda já vem sendo constituída pela ação política dos povos e comunidades. Basta olhar com atenção as pautas de diferentes modos de trazer a debate as questões que mobilizam os povos e comunidades. Eu próprio me dei conta disso, em meu ofício acadêmico e social.
Assim, quando examinei a dissertação de MATHEUS DE ANDRADE BUENO. Ouça um bom conselho: povos-floresta, o caso da UHE Belo Monte (Monstro) e práticas reconstituintes de direitos na Amazônia brasileira. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) – https://estadodedireito.com.br/ouca-um-bom-conselho-povos-floresta-o-caso-da-uhe-belo-monte-monstro/.
Nesse estudo vê-se que se agregam à intensa e constante resistência dos povos tradicionais, verificada não apenas no enfrentamento do projeto da UHE Belo Monte, mas ilustrada a partir dele. Com efeito, as práticas reivindicatórias no ambiente da Amazônia brasileira, sobretudo a partir de mobilizações dos povos tradicionais, consistem efetivamente em práticas, não se exaurindo em atos episódicos.
Também, em https://estadodedireito.com.br/o-mercado-de-carbono-e-o-direito-dos-povos-xinguanos/, dissertação de mestrado de Ewésh Yawalapiti Waurá. O mercado de carbono e o direito dos povos xinguanos. Dissertação de Mestrado defendida na Faculdade de Direito – Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB, 2023. Por coincidência, Ewésh é sobrinho de Watatakalu Yawalapiti que se apresentou com muita força no debate sobre a Convenção 169.
No seu trabalho Ewésh se posiciona estabelecendo como objetivos do seu estudos “entender e compreender: 1) o que é mercado de carbono, quais as bases jurídicas e normas de sua regulamentação; 2 ) como se dá na prática com contratos de carbono envolvendo povos indígenas, quais os riscos, os requisitos e os tipos de contratos de crédito de carbono; 3) como os povos indígenas vem se organizando para defesa dos direitos na temática de mercado de carbono, quais são os sistemas da Governança Geral do Território Indígena do Xingu e sua compreensão sobre o tema”.
Mas uma boa síntese pode ser encontrada em livro recentemente publicado, com apoio do ISA – Instituto Socioambiental, no qual tem papel organizativo alguns dos que também cumprem essa função nos dois textos em destaque neste Lido para Você.
O livro a que me refiro é Tribunais brasileiros e o direito à consulta prévia, livre e informada. SILVA, Liana Amin Lima da et al (Coord.). São Paulo: Editora Instituto Socioambiental/CEPEDIS, 2023, 322 p. (para download: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/tribunais-brasileiros-e-o-direito-consulta-previa-livre-e-informada).
Conforme indiquei -https://estadodedireito.com.br/tribunais-brasileiros-e-o-direito-a-consulta-previa-livre-e-informada/ – vale mergulhar no oitavo capítulo, a cargo de Juliana de Paula Batista, Luiz Eloy Terena, Luiz Henrique Reggi Pecora e Vercilene Francisco Dias. No capítulo eles discutem a relação do Supremo Tribunal Federal com a consulta prévia, livre e informada. Daniel Lopes Cerqueira e Biviany Rojas Garzón, no nono capítulo, apresentam uma coletânea e sistematização analítica de decisões da Corte IDH sobre o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado de povos indígenas e tribais. Por fim, no capítulo conclusivo, Rodrigo Magalhães de Oliveira, Liana Amin Lima da Silva e Joaquim Shiraishi Neto tecem, juntos, a análise sistemática e um balanço crítico da jurisprudência brasileira.
A obra tem caráter único, enquanto repositório crítico de jurisprudência de tribunais. Atualmente há todo um esforço acadêmico, organizacional e funcional no sentido de dar evidência ao alcance da Convenção 169, da OIT, que trata da Consulta. Anoto, por exemplo, Convenção n. 169 da OIT e os Estados Nacionais/Organizadora: Deborah Duprat. – Brasília: ESMPU, 2015, resultado de seminário realizado em 2014, pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, e que dá origem à presente obra, teve por eixo os contextos nacionais na aplicação da Convenção n. 169. Seu propósito foi fazer avançar, no nosso âmbito interno, a concretização desse documento, colhendo da experiência de outros países os avanços obtidos e, com eles, exercitar uma reflexão que possibilite superar as dificuldades que nos são comuns.
Penso que todos esses esforços, incluindo o livro ora Lido para Você, vêm reforçar estratégias que contribuem para designar – eu o disse em outro texto (https://estadodedireito.com.br/povos-indigenas-no-brasil-2017-2022/), o alcance insurgente das lutas dos povos indígenas, para as quais chamo a atenção, para que sejam lidas em matérias, artigos, entrevistas e palavras indígenas que dão atualidade à obra, entre outras manifestações que logo procurei examinar: É a Hora de Ouvir: Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento, de Biviany Rojas Garzón e Luíz Donisete Benzi Grupioni; Retomar e Fortalecer a Funai, de Fernando Vianna (Fedola), Luana Almeida e Mitia Antunha; Protocolo de Consulta e Fortalecimento do Movimento Indígena no Rio Negro, de Renata Carolina Corrêa Vieira e Renato Martelli Soares; Comunidades Indígenas Engajam-se na Autodemarcação, de José Cândido Ferreira, Patrícia Carvalho Rosa e João Bento Ramos; “Autodemarcação é Ato Político. É a Nossa Forma de Dizer que essa Terra é Nossa”, Entrevista concedida à equipe de edição; Desintrusão da TI Pankararu (PE) e Covid-19 no Real Parque (SP), de Arianne Rayis Lovo; A Autodemarcação do Povo Nawa, de Fábio Pontes e Alexandre Noronha; Povo Pataxó Retoma Territórios Tradicionais, de Tiago Miotto; Território Insurgente – o Uso da Terra nas Retomadas Terena, de Carolina Perini de Almeida e Gilberto Azanha; O Conselho do Povo Terena como Instância de Consolidação das Retomadas, box; Os Avá Guarani e as Retomadas pela Terra e pela Vida, de Rafael Nakamura e Júlia Navarra.
Incluo ainda, como leitura necessária, o artigo de Eloy Terena e Roberta Amanajás – “O Direito Constitucional à Retomada de Terras Indígenas Originárias”. Este texto está lançado em obra coordenada pela FIAN Brasil e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos / Organização Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior. 1ª edição. Brasília: FIAN Brasília; O Direito Achado na Rua, 2020). Para os autores, “as retomadas dos territórios tradicionais podem ser entendidas como atos de resistência em defesa dos direitos humanos” e por essa via, inseridos constitucionalmente e convencionalmente ao direito dos povos indígenas ao “Território tradicional, do Direito à Identidade Cultural e da inadequação ou omissão de políticas públicas articuladas e específicas”.
Encontro nesses textos, a força daquela disposição que procurei levar para com ela aferir o alcance insurgente e constituinte que encontrei na dissertação de Luís de Camões Lima Boaventura. Autodemarcação Territorial Indígena: uma análise da via acionada pelos Munduruku face o abandono das demarcações. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB, 2023, quando a examinei (https://estadodedireito.com.br/luis-de-camoes-lima-boaventura-autodemarcacao-territorial-indigena-uma-analise-da-via-acionada-pelos-munduruku-face-o-abandono-das-demarcacoes/.
Com enunciados desenvolvidos por intelectuais indígenas e assessores, as abordagens se relacionam a toda a tradição de estudos de assessoramento aos povos originários desenvolvidos no Peru, pelo Instituto Internacional Derecho y Sociedad, dirigido por Raquel Yrigoyen Fajardo. Destaco o que a respeito escrevo aqui neste espaço Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/memoria-del-i-curso-internacional-interdisciplinario-e-intercultural-proteccion-internacional-de-los-derechos-humanos-de-pueblos-indigenas/), a propósito da Memoria del “I Curso Internacional, Interdisciplinario e Intercultural: Protección Internacional de los derechos humanos de pueblos indígenas. Derechos Territoriales y Consulta Previa”, desarrollado en Lima, del 7 al 12 de octubre de 2019. © Raquel Yrigoyen Fajardo, IIDS (coord.) Esta Memoria ha sido elaborada con la asistencia de Briggitte Jara (IIDS), y el apoyo de Renata Carolina Corrêa Vieira (UnB), en coordinación con Raquel Yrigoyen Fajardo, Coordinadora General del Curso. Las fotografías que aparecen en esta Memoria son parte del archivo fotográfico del Instituto Internacional de Derecho y Sociedad-IIDS. Participei intensamente dessa rica experiência.
A referência ao trabalho que Raquel Yrigoyen vem imprimindo ao IIDS, valeu, exatamente nesse momento, seu credenciamento para se fazer representar em Audiencia Pública do Pedido de Opinião Consultiva sobre “Emergência Climática e Direitos Humanos” apresentada pela República da Colômbia e pela República do Chile (SECRETARÍA DE LA CORTE, San José, 12 de abril de 2024 REF.: CDH-SOC-1-2023/1529, Opinión Consultiva SOC-1-2023), que será realizada presencialmente em Brasília, Brasil, no dia 24 de maio de 2024, e em Manaus, Brasil, nos dias 27, 28 e 29 de maio de 2024.
Explica Raquel que “el planteamiento que hemos enviado desde el IIDS, para ser considerado por la Corte IDH en su Opinión Consultiva, señala que las actividades extractivas en territorios indígenas, como el secamiento de lagunas para la minería a cielo abierto (como está autorizado en el caso Conga o Río Blanco), o la tala de bosques para la extracción de petróleo (como está autorizado en el caso Achuar) o actividades agroindustriales o mineras, es una causa central del calentamiento global y la emergencia climática mundial. Ello se debe a concesiones inconsultas otorgadas por el Estado a favor de corporaciones extractivistas, en violación de derechos de los pueblos indígenas a su integridad territorial, autodeterminación, participación, consulta y consentimiento previo, libre e informado. Y, además, generan criminalización y violencia institucional por décadas, cuando los pueblos defienden sus territorios para evitar tales actividades de destrucción de su territorio y secamiento de fuentes de agua. Ante ello, planteamos la declaratoria de la nulidad de las concesiones extractivas otorgadas sin consulta ni consentimiento previo, libre e informado, como una medida necesaria que, simultáneamente, garantizaría los derechos de los pueblos indígenas y protegería el planeta del calentamiento global y la emergencia climática que padecemos. Esa es nuestra posición como IIDS”. Não são diferentes esses temas dos que também nos afligem.
Daí a importância de uma forte mobilização que vem caracterizando a luta dos povos e comunidades indígenas a partir dos temas fortes dessa agenda. Relevo para para a elaboração autônoma de protocolos de consulta e de consentimento e para enfrentamento às teses jurídicas que são continuamente erigidas para afrontar os direitos indígenas (AS TESES JURÍDICAS EM DISPUTA NO STF SOBRE TERRAS INDÍGENAS. Conselho Indígena Tapajós Arapiuns – CITA e Terra de Direitos. Apoio: Misereor. Autores: Auricelia dos Anjos, Elida Lauris, Pedro Sérgio Vieira Martins e Raimundo Abimael dos Santos. Contribuição: Franciele Petry Schramm, José Lucas Odeveza e Lizely Borges Foto da capa: Gabriele Siqueira. Diagramação: Sintática Comunicação. Agosto de 2021 (https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Justica-e-o-marco-Temporal-de-1988-(final).pdf); https://bit.ly/tesesmarcotemporal. Cf. https://estadodedireito.com.br/as-teses-juridicas-em-disputa-no-stf-sobre-terras-indigenas/).
Nas ilustrações são apresentados alguns modelos desses protocolos autônomos que foram apresentados aos participantes do evento realizado no Centro Cultural de Brasília. O seu teor pode ser conferido nas edições virtuais dos documentos. São muitos, mas não são todos. Em Procolos Autônomos de Consulta e Consentimento. Um olhar sobre o Brasil/Belize/Canadá/Colômbia, há uma lista de protocolos autônomos de consulta, formada pelos que foram analisados para a obra. Belize, 1; Brasil,23; Canadá, 7; Colômbia, 5.
No evento, o Ministro Lélio Bentes, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, recapitulo os elementos constitutivos do instituto da consulta. Até mais porque, com a memória de 14 anos de exercício das funções de perito da OIT, em Genebra, om o tema da consulta no seu escopo de expertise, pode conferir os atributos do instituto, livre, prévia e informada, de boa-fé, conducente a acordo, por meio de diálogo transparente e consentimento. O ministro discorreu sobre todos esses aspectos mas insistiu numa categoria validadora do processo, o processo participativo. No Guia esse requisito está assim enunciado: “as regras do processo de consulta deverão ser decididas conjuntamente entre os povos e comunidades tradicionais afetados e o Estado”. A participação e a representatividade indígena são dois pressupostos da consulta legítima e eficaz. Todos os protocolos examinados dão ênfase a esses pressupostos e é uma riqueza constatar o alcance desse processo radicalmente participativo, na forma, no tempo, no compartilhamento, e no alcance das deliberações.
É notável o esforço de aprendizado a que leva, não só entre os povos e comunidades, mas a partir deles dos demais agentes convocados para o processo. Em face da participação do TST, por seu Presidente e por juízes (no caso juízas) movidos (as) pelo apelo do social que deve animar a realização funcional da Justiça. Na reunião, recebi de Maíra Pankararu (atualmente assessoria da Presidência do TST), uma mostra dessa disposição de aprendizado recíproca. Maíra me passou a notícia do programa Letramento em Diversidade – (re) pensando o Direito do Trabalho a Partir dos Territórios, promovido pelo CENTRO DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE ASSESSORES E SERVIDORES DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO – CEFAST. E a realização da Aula 2 O que o Direito do trabalho tem a aprender com os povos indígenas?. Nesse abril indígena, dia 25 das 14h às 17h, Auditório Ministro Arnaldo Lopes Süssekind – Térreo do Bloco B – Tribunal Superior do Trabalho. Abertura Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, Diretor do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Assessores e Servidores do TST. Mediador: Jônatas dos Santos Andrade, Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça. Docentes: Janina Karipuna, Professora da Universidade Federal do Amapá e indígena do povo Karipuna; Cris Julião Pankararu, Líder indígena do povo Pankararu; Paulo Celso de Oliveira, Advogado e indígena do povo Pankararu.
Não é por acaso que Maíra tenha sido a protagonista de um grande pioneirismo em matéria de reconhecimento de direitos dos povos indígenas. Ela foi relatora na Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, com um voto aprovado unanimemente de anistia coletiva determinando a reparação de violações não a um indivíduo, mas a todo um povo (https://brasilpopular.com/anistia-coletiva-efetivacao-da-justica-de-transicao-para-os-povos-indigenas-no-brasil/). O voto de Maíra e o julgamento, no contexto de 60 anos passados desde o Golpe de 1964 e as violências que o caracterizaram, representa bem possibilidades efetivas para um agir, não só na Comissão de Anistia, mas no sistema de governo, para a criação de políticas com o recém criado Ministério dos Povos Indígenas ou para a atuação emponderada do Movimento Indígena para avançar nesse campo. O voto é também um voto de confiança. Eu também sou confiante, na medida de conquistas que vençam o pessimismo da razão com o entusiasmo da vontade, em razões bem fundadas cujas referências próximas se encontram na dissertação de mestrado da própria Maíra (https://estadodedireito.com.br/nossa-historia-nao-comeca-em-1988-o-direito-dos-povos-indigenas-a-luz-da-justica-de-transicao/).
Mas confesso que me preocupam mais os aliados que os adversários. O juiz Cançado Trindade, por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exemplar em seus votos de valorização das exigências de reparação para restaurar a dignidade de projetos de vida e projetos sociais, lembrava que o principal obstáculo para integrar os direitos humanos nos sistemas nacionais de direito é o obstáculo do positivismo – o científico e o jurídico – que reduzem o humano na hierarquia da evolução (será o indígena gente como nós?) e o direito ao legal que desconsidera a dimensão antropológica de outras sociabilidades em dinâmica de pluralismo jurídico (aliás, já acolhidas no voto do relator Ministro Fachin no exame da ADPF que discutiu e rejeitou a tese esdrúxula do chamado marco temporal.
Nesse caso, sustentei essa constatação, em texto no qual afirmo que a Constituição é mais que o texto disputas por posições constitucionais (in A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023), conforme https://estadodedireito.com.br/a-constituicao-da-democracia-em-seus-35-anos/. Até para aludir a interpretações construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias à disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que dêem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro.
É assim, portanto, que se pode compreender a decisão do Ministro Fachin um dos coordenadores esta obra, para repensar a dimensão política da função judicial e reconhecer que “são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma ‘participação política da comunidade [indígena]’ expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural”, conforme seu voto no TSE (segundo semestre de 2022), por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco
Com a sua repristinação pelo Senado Federal da teratológica tese do marco temporal (embora na iminência de novo rechaço pelo STF), ainda permanece a preocupação: será o direito positivo, legal, capaz de abrir-se a esse reconhecimento?
Claro que essa possibilidade só se dá valendo-se de consideração sobre “a dimensão política da função judicial, apontada por Antônio Escrivão Filho e José Geraldo Souza Junior (Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016)” para, não só afastar “o mito de neutralidade e buscando processos de democratização da justiça a partir, inclusive, da sua reorientação aproximada da realidade brasileira”, mas para afirmar, nesse passo, que são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma “participação política da comunidade [indígena]” expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural.
Como está em Maíra Pankararu, que esteve presente no evento do CCB e que em co-autoria tem participado no plano teórico dessa forma de interpelação ao jurídico para que ele se abra ao social e ao político (O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021. Em especial: Larissa Carvalho Furtado, Luana Bispo de Assis, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu, Natália Albuquerque Dino, Solange Ferreira Alves integrantes do primeiro eixo de autoria, elaboraram o “Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias” onde problematizaram sobre a “necessidade de privilegiar a autonomia dos povos originários, de suas lutas, linguagens, práticas e produções, também no campo da construção do que se entende por “conhecimento”, “ciência” e “Direito” no pensamento jurídico brasileiro” (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol) e assim apresentam uma convocação à um modelo epistemológico do Direito Achado na Aldeia inserido como um conjunto de instrumento teórico capaz de romper as práticas coloniais ainda hoje vigentes no ensino e na prática jurídica tradicional. (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol). Cf. https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |