por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Num encontro com a Anmil, associação que reúne deficientes e trabalhadores deficientes, o Papa Francisco voltou a falar sobre a necessidade de garantir a segurança no trabalho, alertando também para o fenômeno do ‘carewashing’. O seu apelo: “Somos seres humanos e não máquinas”
Em reportagem de Antonella Palermo, publicada por Vatican News, 12-09-2023, a síntese da manifestação de Francisco é a de que“A segurança no trabalho é como o ar que respiramos: só percebemos a sua importância quando ele desaparece tragicamente e é sempre tarde demais!”.
Conforme a matéria do Vatican News, o Papa Francisco já tinha tocado no tema das ‘mortes brancas’, respondendo a uma pergunta de um jornalista a bordo do voo de ida para a Mongólia, poucas horas depois do acidente em Brandizzo, na zona de Turim, onde cinco trabalhadores perderam a vida atingidos por um trem. Naquela ocasião o Pontífice repetiu que o trabalhador é sagrado e que estas tragédias, calamidades e injustiças acontecem sempre por falta de cuidado. Agora, na Sala Clementina do Palácio Apostólico, perante cerca de 300 membros da Associação Nacional dos Trabalhadores Mutilados e Inválidos do Trabalho (ANMIL), que comemora o octogésimo aniversário da sua fundação, volta ao tema precisamente lembrando, ele diz isso explicitamente de improviso, sobre aqueles trabalhadores “que o trem matou… estavam trabalhando“. E com um discurso que investiga as dinâmicas subjacentes às tragédias no local de trabalho, apela ao respeito pelas regras e à consideração da responsabilidade para com os trabalhadores como uma prioridade.
Essa ordem de preocupação está no centro da reflexão que advogados trabalhistas brasileiros, articulados num coletivo que reúne mais de 27 grandes escritórios comprometidos com a causa dos direitos dos trabalhadores, o Coletivo Lado, não que a expressão seja uma sigla, mas antes uma tomada de posição – “somos vários, mas de um só Lado” – levaram a cabo recentemente em São Paulo, num Seminário com o título “Admirável Mundo Novo: Não há trabalho sem direitos”. Com a participação de advogados, professores, magistrados, juristas, sindicalistas, ativistas do mundo do trabalho, a tônica das discussões pode ser designada pelo painel (painel 2) que me coube desenvolver: “Entre a Utopia e o Primitivo: proposições para proteção social”.
Os outros três painéis combinaram os temas: Distopia de um mundo nada admirável: trabalho sem direitos (Painel 1); Trabalho e Emprego: crise de representatividade dentro e fora da Utopia (Painel 3); Nada envelhece mais rápido que o futuro: propostas para um novo Direito do Trabalho (Painel 4).
Na sua configuração laica, os temas do Seminário promovido pela Articulação Lado, não destoam das preocupações do Papa Francisco, em seu arranque pastoral, tantas vezes manifestadas em seus encontros com movimentos sociais e em suas encíclicas e exortações, nos quais o olhar sobre a Justiça e sobre os operadores do Direito tem sido um relevo.
Principalmente quando o Papa relaciona o esvaziamento do humano que se se inscreve nas relações sociais e de produção da existência, marcadas hoje por uma alienação desumanizadora que descarta e vulnerabiliza os sujeitos, exauridos em sua dignidade e negação de direitos.
De fato, há pouco, a Pontifícia Academia de Ciências Sociaispromoveu, no Vaticano, nos últimos dias 30 e 31 de março, uma Conferência sobre o Neocolonialismo, da qual participaram especialistas provenientes de diversas partes do mundo, sobretudo juízes e juízas. Em uma Mensagem, enviada aos participantes, o Papa Francisco condena a exploração e a marginalização dos povos, por motivos econômicos ou ideológicos, e pede desculpas pelos cristãos que, em todos os tempos, contribuíram para a dominação na América e na África. Coincidindo com a súbita enfermidade do Papa, que chegou a ser hospitalizado, a Cúpula foi dirigida pelo Cardeal Peter K. Turkson, prefeito-emérito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano.
Tratei desse evento aqui neste espaço da Coluna O Direito Achado na Rua – https://www.brasilpopular.com/vaticano-conferencia-sobre-colonialismo-descolonizacao-e-neocolonialismo/, para lembrar, que entre os magistrados brasileiros presentes nesse encontro distinguia-se a participação, exatamente do Ministro Lélio Bentes, presidente do Tribunal Superior do Trabalho. E para a minha surpresa, sentada entre os grandes – Boaventura de Sousa Santos e Eugenio Zaffaroni, – a minha ex-aluna Ananda Tostes Isoni, juíza do TRT 10ª região, integrante do Capítulo Brasileiro do Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os direitos sociais e Doutrina Franciscana – Copaju Brasil, ela própria, falando depois deles, com uma belíssima exposição que a coloca, em sua perspectiva franciscana, no chamado então feito pelo Papa Francisco para a atuação judicante: “Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.
Tenho sido muito crítico, mas numa perspectiva que confia no potencial de afirmação de uma consciência social que anima sua função judicante e que interpela a cultura legalista de sua formação, que os operadores do Direito precisam se dar conta de que sem a revisão desses pressupostos, eles acabam fazendo do direito e até da lei em sua expressão mais redutora, uma promessa vazia.
Avancei muito nessa ordem de interpelação, conforme se pode aferir em PINHEIRO, Pe. José Ernanne, SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, DINIS, Melillo, SAMPAIO, Plínio de Arruda. Ética, Justiça e Direito, Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: CNBB/Editora Vozes, 1996. A síntese das reflexões organizadas nessa obra está na seguinte questão: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?
Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”? (cf. entre outros ensaios: http://estadodedireito.com.br/a-reforma-trabalhista-e-a-percepcao-de-lesoes-a-direitos/; também: http://estadodedireito.com.br/trabalho-decente-uma-analise-na-perspectiva-dos-direitos-humanos-trabalhistas-a-partir-do-padrao-decisorio-do-tribunal-superior-do-trabalho/; e ainda: http://estadodedireito.com.br/direito-do-trabalho-uma-introducao-politico-juridica/).
É possível esperar que Juízes se comprometam a realizar as promessas do Direito, dramaticamente conquistados na experiência democrática que humaniza e emancipa? Tem eco institucional o interpelante debate que se trava hoje no mundo do Direito, entre seus operadores, conscientes dos limites de sua formação e das dificuldades de discernir sobre a sua função social – basta ver a discussão em pauta nas sucessivas reuniões do Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia (agora no dia 25 de setembro durante a Semana Universitária da Universidade de Brasília, teremos a sessão: Diálogo para um Novo Sistema de Justiça, com a seguinte descrição: ‘A partir das conclusões do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia – FSMJD, realizado em abril de 2022 em Porto Alegre – RS, sobre uma reforma do sistema de justiça, a atividade aprofundará o debate do tema com movimentos populares e a academia. Busca-se sedimentar a proposta de realização de uma nova rodada do FSMJD e de uma Conferência Nacional sobre o Sistema de Justiça, ambos em 2024. Atividade realizada em conjunto com o coletivo O Direito Achado na Rua. Dia: 25/09/2023. Horário: 14h. Local: Faculdade de Direito)’”?.
E na prática funcional? Como não incidir no desvio que esse debate, até quando se dá por meio de mobilizações progressistas, democráticas, civilizadas, se revista, no Brasil, do enredamento das recalcitrâncias decoloniais, em meio aà injunções racistas, patriarcais e patrimonialistas que afetam a nossa formação econômico-social-política e jurídica (https://www.brasilpopular.com/participacao-popular-consultiva-no-conselho-de-defensoria-publica/)? Como alçar o processo de escolha de magistrados para o patamar de relevância que realmente importe para qualificar esse processo (https://www.brasilpopular.com/artigo-o-debate-que-realmente-importa-para-as-escolhas-ao-supremo/ – Artigo publicado, originalmente, na Folha de São Paulo / Seção Tendências/Debates – 29/03)? Continuarão “as listas” que se formam nos tribunais para a renovação de suas composições, a seguir anacrônico arranjo “para a circulação de elites”, naquele sentido elegante de que fala Vilfredo Pareto, mas que não disfarça a fonte filosófica de seu pensamento? Já não é o tempo de abrir espaço para Juízes que se comprometam a realizar as promessas democráticas do Direito?
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).