por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Passe pela Asa Norte aos sábados pela manhã, na área verde da comercial da 216 Norte, vai logo se deparar com Feira Agroecológica da Ponta Norte, um colorido e buliçoso espaço de comercialização de produtores rurais ligados ao MST e à Agricultura Familiar que oferecem seus produtos orgânicos, livres de agrotóxicos, a preços de fornecedor direto cooperativado. No conjunto de barracas e também tendas de artesanato e de alimentação, tudo é muito vivo, entrecortado por apresentações culturais, e naturalmente, manifestações políticas, todas progressistas, num colorido de ideias, predominando o matiz encarnado. Ideias como as que professa o Papa Francisco, que lembrei na CPI agradece a solidariedade das famílias sem-terra com os que têm fome e que recebe dos adeptos de uma teologia rendida, a crítica de ser “demasiado encarnado e da rua”.
Numa recanto, em formato de roda, em cadeiras e bancos, como um acampamento, cercado por tapeçarias e peças bordadas, estão as bordadeiras (e também bordadeiros) que formam o Coletivo Linhas de Resistência. Não Penélopes que fazem e desfazem seus trabalhos, enquanto sofrem a espera de um Odisseu que se demora. São, dizem, “um coletivo que borda pautas democráticas por um futuro melhor”.
Têm inspirações: @linhasdohorizonte; @linhasdesampa; @linhasdesantos; @coletivoflorespelademocracia. São alianças que por ali se encontram: o Coletivo Flores pela Democracia DF, desdobrado do original que se instalou na vigília em Curitiba em todo o tempo dos 580 dias de prisão do Presidente Lula, aqui em Brasília, faz em crepom flores que levam o lema “Margaridas em Marcha pela Reconstrução do Brasil e Pelo Bem Viver”.
Também as Linhas de Resistência, entre muitos temas, expostos nos varais que demarcam o seu espaço na Feira, bordam atualmente temas da agenda da Marcha das Margaridas formada por trabalhadoras rurais do campo e da floresta e que tomarão Brasília nos dias 15 e 16 de agosto, para a sétima edição da Marcha que homenageia a líder camponesa assassinada Margarida Maria Alves.
Eu queria ter o talento de um Severino Francisco e ou de uma Conceição Freitas para fazer em palavras, a representação do que foi meu encontro sentipensante com esse coletivo, por coincidência, no primeiro sábado em seguida a minha participação na CPI do MST, na Câmara dos Deputados. Sobre o que foi esse depoimento ver aqui na Coluna O Direito Achado na Rua no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/). Espero que esses dois importantes cronistas brasilienses passem um dia pela Feira e se inspirem para bordar as palavras certas.
O fato é que minha participação na Câmara abriu uma grande brecha na gaiola de ferro em que se transformou a CPI no seu intuito claro de criminalizar o MST e de afrontar os movimentos sociais no Brasil, aos quais devemos em boa medida a ação de resistência para inibir o fascismo que buscava (ainda busca) tomar de assalto o nosso país. Por isso, uma repercussão inusitada que alcançou ali na Feira, um momento celebratório, de confraternização e de reconhecimento.
Quero agradecer as minhas colegas Marisa Isar e Letícia (não sei o sobrenome da Letícia), o terem me abraçado e me levado para o aconchego da roda e de tão bem terem traduzido, o que logo chamaram de reflexão-ação traduzidas em afeto e reconhecimento político. Ela assina: @lets_do.i.t
Me aproprio a seguir da nota postada no Instagram do Coletivo, assinada por Letícia, em seu perfil de mulher bordadeira, escritora amadora e advogada. Diz ela:
Paulo Freire escreveu: “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”.
Uma de nós disse dias desses que “coletivo” é constituído para ser mais potente e mais forte do que as individualidades. Se assim não se configura, limita-se a ser uma mera agremiação.
Bordar parece um gesto singelo. Mais do que uma ação-reflexão, é sentir. Pulsar. Quando a linha abraça a agulha, uma dança inesperada tem início. Na medida em que linha e agulha atravessam o algodão cru, é como se os pés saíssem do chão e tecessem no céu sonhos e coragens. Um gesto de amor que, de tão grande, é indizível.
Bordar apequena as inseguranças. Faz brotar um jardim de flores na secura da terra que já não mais se reconhece como nascente de sonhos e criações e, mesmo assim, acolhe e nutre o que é vida. Bordar é alento para o futuro.
Nosso coletivo borda sonhos, uma de nós assim reconheceu essa potência criativa que nos habita. Pelo bordado, despertamos sorrisos onde há desamparo. Enfeitamos o olhar com a delicadeza de uma criança que descobre algo inusitado e fica estonteada com uma nova descoberta.
Bordar coletivamente é um ato emancipatório. É que nenhum indivíduo é capaz de emancipar-se em solidão. A emancipação acontece no compasso da dança da linha com a agulha, da boca que se dispõe a falar com ouvido atento a escutar. Bordar é partilha.
Nosso coletivo teve a honra e a alegria de receber no primeiro sábado solar de julho o professor José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da UnB (Universidade de Brasília) e que dedica-se ao movimento em curso nomeado “O Direito Achado na Rua”, consistente em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito”.
É possível dizer que, a partir das reflexões e compreensões sobre a realidade diante dos nosso olhos, o Direito Achado na Rua é vocacionado à construção emancipatória do direito. Nosso coletivo borda, mesmo que em rotas paralelas com o professor José Geraldo Sousa Junior, o sonho da emancipação-afeto nesses pontos comuns”
Vê-se que tomei o título da crônica do texto de Letícia. Feliz por constatar que ela captou o que mais fortemente propõe O Direito Achado na Rua em sua perspectiva de que quando falamos em Direito falamos em emancipação, processo que só o social no seu agir coletivo pode legitimamente realizar. Como mostram os movimentos sociais. Como o confirma o MST, o que espero eu o tenha demonstrado em meu depoimento na CPI. Com toda a convicção concordamos que ninguém se emancipa sozinho, somente em conjunto, num processo de construção solidária, radicalmente democrático.
O Coletivo Linhas da Resistência, tece o amanhã. Como outros coletivos – estou pensando o Projeto Mulheres Coralinas, aqui pertinho na Cidade de Goiás (a nossa “Goiás Velho”) que apoia mulheres nas áreas da Gastronomia, Artesanato (cerâmica, bonecas, fibras naturais e bordado) e Educação, com participação de mulheres garis. Como dizem Ebe Maria de Lima Siqueira e Goiandira Ortiz de Camargo (organizadoras) de Mulheres Coralinas. Goiânia: Cânone Editorial, 2016, “é o resultado de esforço de pessoas, instituições e poder público de trabalhar a favor da cidadania, da igualdade de gêneros e da autonomia financeira das mulheres”.
Ebe Siqueira, em co-autoria com Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Adriana Andrade Miranda, explicam, a partir desse coletivo, o significado do conviver para viver, tal como está no texto Conviver para viver: formação e atuação das Mulheres Coralinas no enfrentamento aos efeitos perversos da pandemia do coronavírus(que está em livro que organizei com Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Direitos Humanos e Covid-19. Volume 2. Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022). Um belo registro que Adriana Andrade Miranda está transformando em tese de doutorado na UnB (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania – CEAM): Literatura e Direitos Humanos: o projeto de formação das Mulheres Coralinas na cidade de Goiás, de 2014 a 2023.
São formas de resistência mas também protagonismo emancipatório para bordar e tecer o amanhã.
Mas é também, como diz Letícia, a melhor expressão dessa intersubjetividade emancipatória que designa o sentido pulsante do sentipensar (uso o conceito emprestado do sociólogo colombiano Fals Borda) do Coletivo Linhas da Resistência: “Todo sábado a gente cuida do jardim-composição Linhas da Resistência. É o tempo comum que criamos, pro riso, pro afago, pras fagulhas. Cada uma de nós tem afeto à sua maneira. A intensidade? É forte….Bordamos sonhos. É aos sábados que também estendemos nossos sonhos no varal. Oferecemos esses sonhos ao vento, deixamos o sonhar quarar no sol. Sonho também pede afago e delicadeza…. No cotidiano, a gente veste cada sonho. Além da pele que se vê. Pro sonhar crescer e brotar”.
Mas são bordadeiras e tecelãs da manhã, como no poema Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo Neto (A educação pela pedra) de 1966:
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
seentretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
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para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).