por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
O Presidente da Câmara, Arthur Lira determinou abertura de CPI (do MST), a pretexto de “investigar o aumento do número de invasões de terra nos últimos quatro meses”.O pedido de abertura da CPI foi protocolado em 15 de março na Câmara. O requerimento teve 172 nomes — o mínimo era 171. O colegiado contará com 27 membros titulares e igual número de suplentes. Os membros ainda serão designados pelos líderes partidários.Após a indicação dos integrantes, Lira determinará a instalação do colegiado.As comissões parlamentares de inquérito têm poderes de investigação semelhantes aos das autoridades judiciais. Podem convocar pessoas, requisitar documentos e quebrar sigilos pelo voto da maioria dos integrantes.
Em entrevistahttps://mst.org.br/2023/04/27/nao-aceitamos-coleira-ou-focinheira-do-governo-lula-diz-lider-nacional-do-mst/ – João Paulo Rodrigues, liderança do MST afirma a autonomia do Movimento: “Não aceitamos coleira ou focinheira do governo Lula, diz líder nacional do MST”, mas o MST continuará a mobilizar a sua agenda política em defesa da autonomia dos Sem Terra, da realização da Reforma Agrária prometida pela Constituição e da tática de ocupação como um modo de fazer a institucionalidade cumprir a promessa da Constituição.
Para o dirigente que antecipa inclusive um juízo de inconstitucionalidade da CPI, de fato ela representa uma mudança na estratégia ofensiva da articulação neoliberal que investe no agronegócio, ponta de lança da direita no Brasil e que, por meio da Câmara dos Deputados e das Assembleias Legislativas com bancadas de apoio, assenta suas forças para enfrentar o MST: “A direita – ele diz –vai usar o parlamento federal e as Assembleias Legislativas do país inteiro para enfrentar o MST. Junto com isso há os meios de comunicação deles, as fakenews e as milícias armadas dos clubes de tiro e dos CACs [Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores]. É uma mistura demoníaca”. E prossegue: “Essa CPI [na Câmara] é preventiva sobre o futuro. Não é sobre o passado porque não há fato que a justifique. Nossas ações estão dentro do marco na democracia. Se o Congresso reafirmar essa CPI, será uma perseguição política. Nós vamos judicializar junto ao Supremo Tribunal Federal porque ela é inconstitucional”.
De fato, a partir de um requerimento que pede a instalação da CPI, contudo, sem estabelecer fatos determinados e que recebeu, por isso mesmo, despacho da Presidência não para investigar fatos mais sujeitos, a proposição, ao fim e ao cabo se revela como um movimento tático com o objetivo de travar ações de um governo que se instala e para atrasar a retomada de políticas públicas essenciais, como a reforma agrária e seus consectários de valorização de um sistema de produção e de valorização de uma categoria fundamental para a estabilidade das relações de trabalho no País. Uma medida extremamente ideologizada, basta ver concomitante, a publicação de anúncios em jornais com editorias que apoiam a causa do agronegócio, com teor de motivação para posturas criminalizadoras decorrentes de ações de ocupação.
O pano de fundo dessa investida continua a ser a violência. Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgado nesta segunda-feira (17), mostra que o ano de 2022 foi marcado pelo elevado crescimento nos dados sobre violência contra a pessoa em decorrência de conflitos no campo. Ao todo, foram 553 ocorrências, que vitimaram 1.065 pessoas, 50% a mais do que o registrado em 2021 (368, com 819 vítimas). Nesse cenário, que inclui assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças, agressões, tortura e prisões, povos tradicionais despontam como as principais vítimas.
Fiz um registro sobre esse Relatório em minha Coluna Lido para Você, no Jornal Estado de Direito (http://estadodedireito.com.br/comissao-pastoral-da-terra-conflitos-no-campo-brasil-2022/) para sustentar que Conflitos no Campo Brasil 2022 (o Relatório lançado) vem se juntar a outros estudos importantes sobre a violência nessa que é a mais crítica faixa de agressividade da expansão capitalista e da ganância acumuladora no mundo e em nosso país. Há poucos meses, também na UnB, tivemos o lançamento de relatório semelhante, do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, sobre violência contra os povos indígenas. A propósito, meu artigo na coluna O Direito Achado na Rua do Jornal Brasil Popular: https://www.brasilpopular.com/as-chamas-do-odio-e-a-continuidade-da-devastacao-relatorio-do-cimi-sobre-violencia-contra-os-povos-indigenas/. O Relatório pode ser consultado e copiado na página do CIMI (https://cimi.org.br/2022/08/relatorioviolencia2021/).
Todos esses documentos são divulgados num momento de agravamento da violência contra os povos indígenas e seus territórios e sobre os conflitos no campo. Mas também quando uma virada democrática acontece no Brasil, com a volta de uma governança de base popular, participativa e radicalmente democrática que se abre à elaboração de políticas sociais e públicas que podem se valer desses estudos para orientar essas políticas.
Já caminhamos para cinco séculos, mas a obra seminal de Alberto Passos Guimarães “Quatro Séculos de Latifúndio”, publicada em 1963, seguida de “A Crise Agrária” (1978) e “As Classes Perigosas: Banditismo Rural e Urbano” (1982), é ainda fundamental para compreender a tensa realidade do campo brasileiro, a configuração do latifúndio e da concentração de terras no Brasil e a luta e protagonismo do movimento camponês, atualmente com a atuação marcante do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, para se organizar e propor um projeto político e social para o País.
A CPI é uma das faces desse enfrentamento. Uma face mais sofisticada porque disfarça sua contundência sob a aparência de fiscalização legislativa. Com Renata Carolina Corrêa Vieira, mostramos em artigo no Le Monde Diplomatique, publicado em 18/07/2019 – A função social da propriedade: pedra angular da Constituição Cidadã (https://diplomatique.org.br/a-funcao-social-da-propriedade-pedra-angular-da-constituicao-cidada/), a malícia de propostas legislativas que, apesar de sua inviabilidade, tentam reduzir o alcance da realização do princípio da função social da propriedade, com movimentos deliberativos no Parlamento para favorecer a privatização do que já se colocava fora do comércio. Volta-se, com renovados artifícios, em medidas legislativas, a invocar a tese da propriedade privada como um direito absoluto, num contexto de realidade distópica, em que mentes autoritárias afirmam a “sacralidade” para retirar do seio da sociedade direitos conquistados historicamente por lutas sociais.
Ainda nesse artigo, compulsamos algumas agendas que conformam o tema geral do direito à terra e à reforma agrária, notadamente desde a conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático, que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff e, com ela, a disposição para levar à derrocadao projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e, logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território. Vê-se nitidamente que o tema de relativização da função social da propriedade compõe essa agenda. Aliás, o requerimento para instalar a CPI toma esse sentido “sacralizado” da ultrapassada noção de propriedade privada absoluta.
Então dizíamos da dupla face dos ataques aos movimentos sociais. A primeira, bruta e cruenta na linha do coronelismo que baliza o processo oligárquico, que caracteriza a nossa formação econômica, social e política: a criminalização da reivindicação social (com a pretensão de tipificar as formas de luta no elenco do crime de terrorismo) e a volta legal ao armamentismo que equipa as milícias urbanas e rurais a serviço a propriedade e do latifúndio.
A outra face, mais sutil, mas não menos instrumental é a do disfarce legislativo, embutido na estratégia de desconstitucionalização que estava em ritmo avançado no país. Nos referimos à Proposta de Emenda à Constituição, subscrita pelo Senador Flávio Bolsonaro, com assinaturas de apoio de conhecidos membros da bancada ruralista, que tem por objetivo “alterar os artigos 182 e 186 da Magna Carta de 1988 para definir de forma mais precisa a função social da propriedade urbana e rural e os casos de desapropriação pelo seu descumprimento”.
Também em artigo que publiquei em coluna que mantive por anos na Revista Sindjus (Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público em Brasília (Edição do ano XVI, nº 50, ano 2008, pág. 5 – Enxadas ou Flores? A tentação de Criminalizar o MST, aludi a essa ação emoliente que o próprio sistema de justiça promove.
Com esse título referia-me ao dilema posto em artigo de Procurador-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul, publicado em Zero Hora, edição impressa do dia dois de julho daquele ano, no qual procura contemporizar a reação veemente a ações civis desencadeadas pelo Ministério Público contra determinados acampamentos do MST (Serraria e Jandir, entre outros), no RS, e que foram vistas como uma estratégia concertada para postular a extinção ou a ilegalidade do mais importante movimento social do século XX, tal como foi caracterizado por Celso Furtado.
Em seu artigo o Procurador-Geral referiu-se a “ações em rede, típicas da globalização”, com o intuito “urgente de vencer atuação fragmentada (de um promotor de Justiça restrito ao limite territorial de sua comarca) e realizar uma análise global de uma série de atos com aparente coordenação”. Além disso, referia-se a uma decisão do Conselho Superior do Ministério Público, afirmando ter havido correção de extensão de manifestação anterior, para que fique claro não ter o MP em nenhum momento postulado a extinção ou a ilegalidade do MST.
Em suma, embora contraponha enxadas a flores, para extrair dimensão simbólica entre ferramentas que passam a ser vistas como armas e a necessidade de resgatar a dívida social agrária, o autor do artigo procura afastar a percepção logo difundida de ocorrência de uma conspiração ideológica contra os movimentos sociais.
Observe-se, por exemplo, um outro plano, em que mais evidente fica a dificuldade de reconhecimento do alcance emancipatório das reivindicações sociais. Em vários estados, o Ministério Público Federal, numa aparente violação do princípio do promotor natural, insistiu na proposição de ações civis públicas, pelo fato de o INCRA e universidades federais terem firmado termo de cooperação técnica visando a implementar cursos de graduação em Direito destinados a beneficiários da reforma agrária, nos parâmetros do sistema Pronera (Programa Nacional de Educação do Campo).
Nos termos insólitos da argumentação do MP:
“Sabido é que o habitat do profissional do Direito, em qualquer de suas vertentes, é o meio urbano, pois é nesta localidade em que se encontram os demais operadores da ciência jurídica. Ainda que venha ele a patrocinar pretensão titularizada por cidadão que habite a mais distante área rural, endereçará a sua demanda a órgão do Poder Judiciário, não encontradiço em paragens rurícolas”.
O fato é que, embora, sob consideração teórica, se reconheça como legítimas as formas de ação coletiva de natureza contestadora, solidária e propositiva dos movimentos sociais, a dialeticidade de suas múltiplas práticas sociais, não necessariamente é vista, no plano da política, como compromisso com a coletividade para a construção de esfera pública democrática, em cujo âmbito se definem projetos emancipatórios, sensíveis à diversidade cultural e à justiça social. Ao contrário, a expressão conflitiva dessa dialeticidade tem levado, muito em geral, a uma reação despolitizada, da qual não são imunes o Ministério Público e o Judiciário, abrindo-se à tentação de responder de forma pouco solidária e até criminalizadora a essas práticas.
E, enquanto se funcionaliza uma ação, com algum grau de concertação na linha de respostas criminalizadoras, o mesmo não se vê quando se trata de verificar a legalidade e a constitucionalidade dos pleitos possessórios que requeiram a concessão de medidas protetivas em imóveis que descumprem a função social, ou ainda, quando se trata de assistir despejos de famílias sem-terra, para fiscalizar a ação policial, prevenir abusos, fazer cumprir a legislação de proteção a crianças, adolescentes e idosos ou, finalmente, para impedir que qualquer desocupação seja realizada sem a designação de lugar adequado para a remoção dos atingidos.
Contra essas estratégias desconstituintes e desdemocratizantes já há acervo constitutivo para pensar outras possibilidades, em sede constitucional, de conferir “definição jurídica diferente”, descriminalizando e politizando no sentido instituinte, condutas que ampliam acesso a direitos. No volume 3, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília: Editora da UnB/Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002 organizado por mim, Mônica Castagna Molina e Fernando da Costa Tourinho Neto (então Presidente da Associação dos Juízes Federais), anotamos uma dessas clivagens do sistema de justiça à realidade fática sob julgamento.
A referência é ao voto paradigmático, seja em seu refinamento técnico, seja em seu profundo sentido humano, proferido pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, quando do julgamento no STJ, do Habeas Corpus nº 4.399-SP, em que foram pacientes Diolinda Alves de Souza e outras lideranças do MST. O Tribunal, como é sabido, e como se pode ver do acórdão a cargo do relator Ministro William Patterson, concedeu a liberdade aos pacientes.
Em seu voto, que tem tido larga repercussão, inclusive com divulgação próxima a uma dezena de idiomas, o Ministro Cernicchiaro não perde de vista o contexto histórico no qual são designadas as circunstâncias factuais do tema em discussão, põe em relevo, o Ministro, a condicionalidade da atuação das “chamadas instâncias formais de controle da criminalidade”, sujeitas, segundo ele, à “posição política, econômica e social da pessoa”. Finalmente,como membro legítimo da comunidade aberta dos realizadores da Constituição, pondera judiciosamente a condição prejudicial na qual se encontram os pacientes, reconhecendo que “as chamadas classes sociais menos favorecidas não têm acesso político ao governo, a fim de conseguir preferência na implantação de programa posto na Constituição da República”. Sua decisão é descriminalizadora, acentuando novas dimensões da subjetividade jurídica, em cujo âmbito tem sido situada“a titularidade de direitos em perspectiva emancipatória” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos de Direito. Só a luta garante os direitos do povo!.Coleção Direito Vivo vol. 7. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023). Decide, pois, o Tribunal “não poder ser considerado esbulhador aquele que ocupa uma terra para fazer cumprir a promessa constitucional da reforma agrária”.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).