Intervenções nas Universidades: Autonomia e Nomeação de Reitores

Ganhou forte repercussão, em seguida à posse do novo Ministro da Educação, a exoneração pelo ministro do Reitor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), nomeado no governo Bolsonaro. O Reitor exonerado havia assumido o cargo mesmo não tendo participado de nenhuma das fases de consulta pública e nem tendo seu nome na lista tríplice indicada pela comunidade acadêmica. O ato de exoneração saiu no Diário Oficial da União, de 16/01. O Ministro da Educação nomeou também professor da Univasf para o exercício reitoralpro-tempore da universidade.

Esse é um caso extremo – a nomeação em desacordo com a formação de lista conforme a disciplina da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, seguindo procedimento formal no âmbito das instâncias comunitárias e institucionais das IES.

Em livro organizado por Marcel Fernando da Costa Parentoni e outros, formando um Coletivo de Reitores e Reitoras – Intervenções nas Instituições Federais de Ensino: reitoras e reitores eleitos e não empossados. Nossa luta, nossa história (1ª edição. Campos dos Goytacazes, RJ: Encontrografia Editora, 2022. download gratuito da versão digital em: https://encontrografia.com/wp-content/uploads/2022/12/ebook_Intervencoes-nas-instituicoes-federais.pdf) – pelo menos 26 casos relativos a universidades e institutos federais são registrados, com o recolhimento de“relatos de pessoas que presenciaram de perto o estrago que o vento oportunista e autoritário pode fazer em organizações estratégicas para o desenvolvimento regional, nacional e internacional”e que implicou na mais afrontosa violação do princípio constitucional e histórico da autonomia universitária expresso no fundamento da gestão democrática que se manifesta entre outros enunciados, no mecanismo de escolha de seus dirigentes.

Desde o início do governo autoritário, instalado por um mecanismo golpista que interrompeu a continuidade de uma governança de alta intensidade democrática, o programa neoliberal a que ele serviu, no aspecto econômico e também no aspecto ideológico, identificou a cultura e a educação e, neste caso, o segmento universitário que anima o ensino, a pesquisa e a inovação tecnológica, como um alvo preferencial de toda a sua hostilidade e com estratégia de captura de sua infraestrutura e sua autonomia de produção crítica de conhecimento.

Mostrei isso em meu texto Fature-se”: Ataque Privatizante à Universidade Pública, publicado em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/591360-fature-se-ataque-privatizante-a-universidade-publica e também em Future-se valoriza o privado e não acena para o ethosacadêmico, integrante do número especial IHU On-Line – Revista do Instituto HumanitasUnisinos, nº 539 – I Ano XIX, 2019 (https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/539), reunindo importantes depoimentos.

Na esfera ideológica o que se vê é o intuito de vencer o pensamento crítico, desmistificador da astúcia predadora da governança miliciana e entreguista, que se manifestou seguidamente em ações diretas agressivas (há professoras e professores em programas de proteção no Brasil e no exterior) e em subterfúgios administrativos com o objetivo de criminalizar a liberdade de cátedra e a própria autonomia.

Anota o filósofo católico tomista Jacques Maritain, tão influente na elaboração dos artigos da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, para cujo texto conduziu algumas de suas ideias de seu livro Os direitos do homem (1943), que aquele processo obscurantista do nazi-fascismo, no pensamento e na ação (causou-lhe muita impressão o ensaio genocida da guerra civil espanhola), empurrava as opções para as posições cada vez mais à direita dos conservadores autoritários, extremados no reacionarismo e à esquerda, dos liberais e socialistas, ao extremo da revolução.

Em Lettresurl’independence, mostra o notável crítico literário e também filosofo da política Álvaro Lins (Cristianismo Político e a Questão-Maritain ante o Fascismo Espanhol, in A Glória de César e o Punhal de Brutus. Ensaios e Estudos. 2ª edição: Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963), o perigo que a inteligência e a educação afrontam, uma vez que o intelectual, o pensador, o universitário (aqui Lins associa Maritain a outro pensador católico e humanista Bernanos, e poderíamos associar também a Unamuno), longe de delirar na contemplação, devem passar à ação, porque “a vida cotidiana deve estar a seu serviço”, do modo que só possam “ser acusados de traição aqueles que têm capacidade para a ação, numa causa justa, e se afastam dela por medo ou conveniência”.

É para preservar esse espaço de serviço e de compromisso da universidade com causas justas, que se construiu civilizatoriamente, referindo-me somente ao Ocidente, os princípios da autonomia (auto-governo) e de liberdade de ensino, que legaram à modernidade esse espaço irredutível de intangibilidade da instituição universitária.

No Brasil, ainda que a instituição seja retardatária (Século XX) quando já se instalara na América espanhola desde o século XVI, nem por isso foi menos radical a assimilação desses princípios, alcançando com a concepção de universidade necessária, leal à sociedade mais que ao estado, aquele ethosque Darcy Ribeiro canalizou para o projeto da UnB.

Em Universidade de Brasília: projeto de organização, pronunciamento de educadores e cientistas e Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961 / Darcy Ribeiro (org), – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011, o nosso primeiro Reitor, em seguida à edição da Lei n. 3998, de 15 de dezembro de 1961, que autorizou o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade de Brasília, fez publicar em 1962 o seu texto, numa edição especial patrocinada pelo Ministério da Educação e Cultura, contendo pronunciamentos de educadores e cientistas sobre o texto da lei e o projeto de organização da nova universidade.

Para Darcy, não tinha o Brasil uma verdadeira tradição universitária a defender e preservar, porque a universidade brasileira, a rigor, diferentemente do que ocorrera em outros países das Américas nos quais elas foram criadas desde o século XVI, somente em 1920, já no século XX, será instituída.

Com a UnB, segundo ele, é que se dará mais propriamente, a instauração do que se poderia designar de universitário para conferir tal estatuto ao nosso ensino superior. Criar, pois, uma universidade em Brasília, constituiu-se numa dupla oportunidade. Primeiro, por reconhecer que, sendo Brasília um cidade criada no centro do país e nela instalado o governo da República, se tornaria inevitável nela instituir um núcleo cultural a que não poderia faltar uma universidade. Depois, para atender à urgência de dotar o país, na etapa de desenvolvimento em que se lançava, de uma universidade que tivesse “o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema”.

Tratava-se de projetar, para atender a essas condições, a universidade necessária e esta era, dizia ele, a tarefa da Universidade de Brasília e para isso ela havia sido concebida e fora criada.

No prefácio que fiz à reedição comemorativa (jubileu da UnB), afirmei que, certamente, muito terá se perdido a partir das sucessivas interrupções e retomadas desse belo e generoso projeto, que nunca se deixou descolar de seu impulso utópico originário. Quando se examina o texto da lei que autoriza a instituição da fundação, incumbida de criar e de manter a Universidade de Brasília, melhor se afere esse movimento. Criado para ser autônomo, sustentável, público mas não estatal, o novo ente recebe a atribuição de inovar, no mais profundo sentido experencial, a ponto de poder organizar seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos sem restar adstrito às exigências da legislação geral do ensino superior (art. 14).

Não vi, nos elementos normativos de vinculação da Portaria assinada pelo Ministro da Educação para exonerar o Reitor da Unifasv, qual a base de legitimação do ato. Por mais reparador que ele seja, me acode uma preocupação. Constitucional e legalmente (LDB), a nomeação e a destituição de um Reitor não pode dar-se ao arrepio da manifestação das instâncias institucionais da universidade como ente autônomo.

Na redemocratização, em 1985, nos estertores da intervenção que impôs a UnB um agente militar do sistema de segurança nacional como Reitor, presente na Instituição por mais de 20 anos, o governo militar ainda insinuou na transição um reitor civil e acadêmico. A comunidade que sempre resistira em atos pelo fim da intervenção, rebelou-se, mas não aceitou a alternativa do ministério da Nova República, de responder à greve provocada pela recusa de nomeação de um Reitor eleito pela Comunidade (Cristovam Buarque), com a exoneração do nomeado. Não aceitou o risco de boa-fé de afastar uma nomeação ilegítima, para abrir um precedente de afastamentos de má-fé que pudesse ser produzido para afastar uma nomeação legítima. Conduziu a greve até a renúncia do nomeado, além de tudo um professor respeitado e digno.

Fiquei satisfeito com uma postagem em grupo de reitores e ex-reitores de colega que menciona situação atual em sua universidade, vivenciando condição equivalente, e ele diz: “aqui, na (…), estamos pensando em uma alternativa interna para reparar o golpe na nossa democracia de forma legal e moral, o que exigirá a concordância da comunidade acadêmica e, consequentemente, a aprovação no Conselho Universitário”. 

Esse me parece um caminho coerente e firme. Num novo governo, o novo deve ser o que o caracterize e distinga. Como fez em seu último mandato o Presidente Lula que se reunia quase mensalmente com os Reitores para construir políticas universitárias (assim foi o REUNI), e que já está convidando –Reitores e Reitoras – para uma reunião mediada pela Andifes.

Esse tema precisa entrar na agenda. Há propostas hibernando nos escaninhos do processo legislativo. Consulte-se o Projeto de Lei nº 3.674, de 2004, que “Modifica a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, dispondo sobre eleições diretas para reitor e vice-reitor das instituições federais de ensino superior” de autoria da Deputada Alice Portugal.

A justificativa é precisa: “O presente Projeto de Lei tem o propósito de modificar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação dando conseqüência ao princípio da gestão democrática previsto no texto da lei. Ao estabelecer autonomia para que estas instituições decidam os critérios e o processo de escolha de seus dirigentes e a composição de seus órgãos colegiados, o projeto em apreço avança no sentido de assegurar às instituições públicas de ensino superior poder de decisão sobre sua organização. E, ao definir que a escolha do reitor, do vice-reitor e dos diretores de cada instituição deverá ser feita por meio de eleições diretas e secretas, com a participação de professores, alunos e técnico-administrativos, o presente Projeto de Lei, além de atender a uma aspiração da comunidade universitária de nosso país, é um passo decisivo para efetivar no âmbito da universidade pública brasileira a gestão verdadeiramente democrática”.

O projeto recebeu parecer da RelatoraDeputada Fátima Bezerra, atualmente Governadora re-eleita do meu querido Rio Grande do Norte.

Assenta Fátima:

“A gestão democrática é o processo que possibilita a participação e a responsabilização de todos os envolvidos em uma determinada atividade. Possibilita a intervenção direta ou por meio de representação nos processos de tomada de decisão e de avaliação e fiscalização das atividades desenvolvidas.

Isto ocorre na sociedade e pode ocorrer também na gestão da educação. Em especial na educação superior, onde os alunos já estão mais amadurecidos e podem se envolver diretamente no funcionamento da instituição educacional.

O Projeto de Lei n.º 3.674, de 2004, apresentado pela ilustre deputada Alice Portugal, assegura o respeito ao princípio da gestão democrática na educação pública, previsto no artigo 56 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, e o aperfeiçoa, mediante o acréscimo de dois parágrafos: o primeiro que estabelece a autonomia da instituição para a definição dos critérios e processos para escolha de dirigentes e composição dos órgãos colegiados; o segundo parágrafo propõe que a eleição seja direta, com a participação dos segmentos da comunidade acadêmica, e se encerre no âmbito da instituição.

É nossa convicção que a explicitação de procedimentos e a garantia da participação da comunidade acadêmica na gestão das instituições de educação superior virá a contribuir, efetivamente, para o seu melhor funcionamento, para uma gestão mais eficiente e para a concretização de seus compromissos com a melhoria da qualidade e o cumprimento de sua função social”.

Por último, o tema é muito sensível e já ativou a atuação preocupada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (confira em https://www.brasilpopular.com/principios-interamericanos-sobre-a-liberdade-academica/), que aprovou Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica, para prevenir “a constatação da ameaça crescente, no continente, de agressões, mobilizações e atitudes contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, sobre a desinstitucionalização e a desconstitucionalização desses fundamentos, caros aos enunciados dos direitos convencionais internacionais, assim como da própria ONU”(https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios_Libertad_Academica.pdf).

De resto, essas diretrizes estão afinadas com o Comentário Geral 13 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), que deixou bem assentado o reconhecimento da liberdade acadêmica, cuja satisfação, assegurada em geral pelas constituições dos países: “é imprescindível à autonomia das instituições de ensino superior. A autonomia é o grau de auto governo necessário para que sejam eficazes as decisões adotadas pelas instituições de ensino superior no que respeita o seu trabalho acadêmico, normas, gestão e atividades relacionadas”.

Salvaguardar o espaço crítico autônomo da Universidade é dar concretude a umacategoria constitutiva dos direitos fundamentais, a liberdade de consciência e de expressão, de comunicação, sem falar daquelas ligadas ao sistema de proteção à educação, que estão tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Convenção Interamericana de Direitos, quanto nos protocolos derivados dela, como de São Salvador. E se não se fizer nada, daqui a pouco estaremos de novo com o censor dentro da sala, com o comissário verificando os títulos dos livros que são adquiridos para as bibliotecas, com as caracterizações das teses e dissertações que são defendidas, e da criminalização do pensamento e da crítica. Com algum energúmeno erigido a distinção de notável saber.

Esses princípios asseguram o fundamento convencional e a diretriz constitucional de autonomia universitária e de liberdade de ensino e não podem servir ao escrutínio censor, mesmo do Presidente da República, para acobertar numa elasticidade imprópria de que lhe cabe a direção geral da administração (ar. 84 da CF), para assim, transformar supervisão em subordinação, desconstitucionalizando o princípio da autonomia universitária, e na voragem autoritária, sufocar a crítica acadêmica e até, no limite, a dignidade e a vida, como agora vai se revelando no evento policial-judicial que sacrificou o Reitor Cancellier (MARKUN, Paulo. Recurso Final. A Investigação da Polícia Federal que Levou ao Suicídio um Reitor em Santa Catarina. São Paulo: Cia das Letras, 2021) e tem forçado já verdadeiros exílios de professores em nossas universidades e o próprio atual Presidente, num desvio de lawfareimpedido – o que o social mobilizado não permitiu – de retornar à Presidência da República, como agora, para um raro e inédito terceiro mandato.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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