No centenário da autora de “A Hora da Estrela”, as professoras da USP Nádia Batella Gotlib e Yudith Rosembaum comentam a obra da escritora
Por Leila Kiyomura, do Jornal da USP
Assim Carlos Drummond de Andrade definiu Clarice Lispector (1920-1977). E tantos outros escritores e pesquisadores vêm tentando compreender o seu mistério. No seu centenário, completado nesta quinta-feira, dia 10, a escritora continua indefinível. Quem começa a ler Clarice Lispector vai passar a vida com seus livros nas mãos. “Será fisgado”, como define a professora Nádia Battella Gotlib, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, pioneira nas pesquisas sobre a vida e obra da escritora. “Comecei a ler Clarice quando era estudante de Letras na Universidade de Brasília (UnB), nos anos 1960. Ganhei de presente o livro Laços de Família de um professor e esse livro me intrigou. Fui fisgada.”
A leitora Nádia passou a pesquisar, estudar e escrever. Publicou Clarice, Uma Vida Que se Conta, da Editora Ática, em 1995. E a sua sexta edição foi revisada e aumentada pela Editora da USP (Edusp) em 2009. Um ano antes, também pela Editora da USP, lançou Clarice Fotobiografia.
A professora Nádia vai com Clarice Lispector mundo afora através de artigos, seminários e, desde março, sob a forma de lives e webnários, apresentados em instituições no Brasil e no exterior, da Inglaterra à Ucrânia. “O centenário acontece, infelizmente, em meio à pandemia. E, de fato, num momento de descaso pelo setor cultural. Por outro lado, existe o meio digital, que viabiliza a comunicação. Já participei, até o momento, em eventos de dez países.”
Clarice ou Chaya Pinkhasovna Lispector, que nasceu em uma aldeia na atual Ucrânia, é uma das escritoras brasileiras mais lidas no exterior. Tem cerca de 200 traduções em dez idiomas. Há dois anos A Hora da Estrela foi traduzido em árabe pelo pesquisador egípcio Maged ElGebaly.
As razões de a obra de Clarice ganhar o mundo são muitas, entre elas a capacidade de despertar o leitor para si e para o outro. “Ler Clarice é sempre bom, em tempo de confinamento ou não. No entanto, nos dias de hoje, sua literatura assume ainda maior importância, na medida em que ela se exercita – e nos leva junto, através da sua linguagem – a construir e aperfeiçoar o respeito pelo outro, incluindo aí as minorias, os marginalizados, os ‘humilhados e ofendidos’, título aliás do romance de Dostoiévski mencionado em A Hora da Estrela”, comenta a professora Nádia. “Denuncia tanto a violência policial, como na crônica Mineirinho, quanto a fome, em As Crianças Chatas. E valoriza os seres vivos, homens, plantas e bichos. Afinal, não seria essa espécie de comunhão com a natureza o que a personagem Ana, no conto Amor, experimenta quando se encontra no Jardim Botânico do Rio de Janeiro? Esse repertório assume importância vital no momento em que florestas estão sendo queimadas, animais estão sendo mortos pela ação do fogo e milhões de brasileiros passam pelo tormento do desemprego.”
“O repertório de Clarice assume ‘vital’ importância no momento em que florestas estão sendo queimadas, animais estão sendo mortos pela ação do fogo e milhões de brasileiros passam pelo tormento do desemprego…”
Na pesquisa para escrever Clarice, Uma Vida Que se Conta, Nádia examinou textos de gêneros narrativos diversos. “Ela escreveu crônicas, contos, romances, literatura infantil, páginas femininas, cerca de 450. E também cartas, além de um livro de lendas brasileiras, uma conferência, uma peça de teatro, um artigo sobre tradução e entrevistas, enquanto entrevistadora, para periódicos cariocas.”
Nesse universo, no entanto, há temas recorrentes. “Um deles é a própria Clarice, que menciona ‘a procura da coisa’. De fato, personagens, sobretudo mulheres, em certos momentos são levadas pela linguagem a um território outro, que não é o da lógica, mas o que ela chama de ‘atrás do pensamento’, em que experiências singulares e complexas afloram, de encantamento e nojo, paradoxalmente envolvidas num mesmo halo de vida e morte, como se aí se concentrasse o sentido da condição humana, um paraíso infernal ou um inferno paradisíaco, o ‘âmago da coisa’, matéria viva pulsando.”
A professora destaca A Hora da Estrela. “O romance foi publicado antes de sua morte e contou com a colaboração de Olga Borelli, que foi sua secretária nos últimos sete anos de vida de Clarice. Olga assumiu essa função porque Clarice passou a ter dificuldades de escrever por causa da mão deformada devido a um incêndio ocorrido em seu apartamento, em 1966. Essa coincidência entre o período da escrita – antes de ficar doente – e a data de sua morte cria mesmo uma impressão de que se trata de uma ‘obra de agonia’”, analisa. “Ao longo daquele ano ainda escreveu fragmentos que seriam postumamente reunidos por Olga Borelli e publicados em 1978, com o título de Um Sopro de Vida. “Quanto à relação de semelhança entre a personagem Macabéa e Clarice, poderia afirmar que há coincidências: são duas nordestinas que passaram fome e enfrentaram dificuldades na vida. As duas vieram do Nordeste para o Rio de Janeiro e trazem características que sugerem associações com os judeus: uma, pelo nome, Macabéa, que remete aos macabeus; outra, pela sua própria ascendência judaica e o exílio da família, que veio da Ucrânia para o Brasil para escapar dos pogroms e assim garantir a sobrevivência.”
“A literatura de Clarice provoca, instiga, desmonta o que tende a se cristalizar. Ela pede um leitor aberto às inovações da linguagem e às rupturas com a lógica.”
Ler Clarice na adolescência e se dedicar a decifrar sua vida e obra é igualmente a história da professora Yudith Rosembaum, também da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Eu queria investigar a escritora que me arrebatou aos 16 anos com o conto Amor, do qual nunca me distanciei. É um texto matricial da visão de Clarice sobre o modo como somos enlaçados pelas redes de afetos e papéis”, explica. “Desde então, são quase 30 anos de convívio com a autora e ainda há muito a descobrir.”
A professora, que escreveu Metamorfoses do Mal: Uma Leitura de Clarice Lispector, publicado em 1999 e relançado pela Edusp em 2006, e Clarice Lispector, em 2002, pela Publifolha, já está se preparando para lançar o terceiro livro.
O trabalho de Nádia e Yudith é referência para pesquisadores da obra clariciana do País e do exterior. “Não tenho dúvida de que os textos de Clarice, como os de grandes autores como Machado de Assis, Guimarães Rosa, entre outros, deslocam seus leitores de lugares conhecidos e habituais, problematizam o que o sujeito sabe de si e do mundo. E despertam, sim, reflexões novas”, destaca Yudith. “A literatura de Clarice provoca, instiga, desmonta o que tende a se cristalizar. Ela pede um leitor aberto às inovações da linguagem e às rupturas com a lógica, com as crenças e os valores estabelecidos como ‘naturais’.”
Apesar de fisgar o leitor, a professora avisa: “Nem sempre é fácil ler Clarice pelo espanto que temos com a sua liberdade de criação e de pensamento. Para seus leitores, sugiro que topem a atitude desarmada que a autora propõe, como mostrou José Miguel Wisnik em seu ensaio Diagramas para uma Trilogia de Clarice, na Revista Letras, da Universidade Federal do Paraná. Ou seja, uma entrega em que o contato leitor-obra não dependa de inserir Clarice em grandes sistemas literários, mas de ouvir as palavras em suas ressonâncias imprevisíveis e desconcertantes.”
Para quem deseja se iniciar como leitor, a professora sugere: “Os contos de Laços de Família, 1960, podem ser uma boa entrada, já que mantêm, de certa forma, a estrutura mais conhecida do gênero conto.”
Quanto à temática dos contos, Yudith orienta: “Eles condensam a realidade da mulher em meio às contradições do matrimônio, da maternidade e da família, sob o patriarcado dos anos 40 e 50 no Brasil, mas já apontam em sua latência a força desagregadora dos laços, o encontro com algo da ordem do inominável, e que explodirá no livro seguinte, A Legião Estrangeira, de 1964, e sobretudo no romance A Paixão Segundo G.H., do mesmo ano, segundo Wisnik no ensaio citado.”
“O processo de alienação social e pessoal de Macabéa ressoa o de muitos. Ela é um nós, um coletivo nacional.”
Yudith Rosenbaum destaca os múltiplos e densos temas de Clarice
Foto: Acervo Pessoal
Yudith também destaca os múltiplos e densos temas da obra de Clarice que, segundo ela, parecem girar em torno de um mesmo núcleo recorrente. “É como um ímã que atrai para si tudo ao redor. Penso em duas preocupações centrais: os dilemas da própria escrita certamente seriam uma face desse núcleo, fazendo a obra se dobrar sobre si mesma em funda reflexão sobre o ato de escrever, que seria uma ‘maldição’ e uma ‘salvação’, nas palavras da autora. A procura da ‘Coisa’ é outro polo de reiteração, que atravessa a obra do início ao fim e talvez seja seu ponto mais complexo. Implica dar forma ao informe, empreender uma busca de algo que não se deixa capturar pela linguagem, mas impele narradores e personagens a decifrar o que pulsa na tal ‘Coisa’.
Filosofia, psicanálise, antropologia, sociologia e outros saberes podem ser chamados e lançar luz sobre o que seria a Coisa clariciana, mas suponho que ainda assim ela se rebelará e se manterá intacta em sua incognoscibilidade…”
A professora aponta outros temas atraídos pela dupla face do ímã resistentes às explicações. “São poderosos motores dos enredos de Clarice: dialética entre civilização e barbárie, colocando em jogo a domesticação do selvagem interno e externo ao eu; o feminino, importante lembrar que poucos autores souberam se aproximar de forma tão sensível da mulher e seu enigma; a alteridade como interdependente da constituição do eu; o desamparo inerente ao processo de subjetivação e o consequente desejo de pertencimento; o sujeito cindido e conflituoso que se desconhece, como quer a psicanálise; o encontro estranhado com o estrangeiro de si e do outro, seja ele bicho, gente ou objeto, ressaltando que este aspecto da obra ganha espaço com personagens alheios à hegemonia dominante, excluídos do convívio social e por isso geradores de incômodo e mal-estar: loucos, desarrazoados, empregadas domésticas, mendigos, marginais à lei etc.; as formas de violência intrassubjetiva e também das relações interpessoais.”
A lista de Yudith é resultado do apuro de sua observação em detalhes. Continua: “Há o foco nas insignificâncias, nos detalhes miúdos da existência, na matéria orgânica insossa e neutra, para aí surpreender uma força imprevista. Concluo a lista, por falta de espaço, com o tema dos rituais de passagem e iniciação da infância à puberdade e desta à vida adulta, em que crianças e adolescentes enfrentam as intensidades do crescimento. Certamente ainda lembrarei de outros temas”.
Quanto às personagens, a pesquisadora destaca G.H. e Macabéa. “Talvez sejam as mais marcantes, embora cada leitor eleja a sua. Cito G.H. pela vertiginosa experiência de encontro com a sua outra de classe social, Janair, e a partir dela com seu ‘outro’ de espécie, a barata e suas entranhas. Creio ser A Paixão Segundo G.H. um dos livros mais radicais da literatura brasileira.”
Em A Hora da Estrela, Macabéa atrai o leitor pela sua delicadeza e fragilidade. “É uma mulher na outra ponta social da pobreza, estampa a precariedade nacional e mostra, paradoxalmente, no verso da face massificada e oprimida, uma personalidade sensível, aderida ao mundo, sem as cascas defensivas de G.H”, compara Yudith. “O processo de alienação social e pessoal de Macabéa ressoa o de muitos. Ela é um nós, um coletivo nacional. O seu inatingível ‘delicado essencial’, impenetrável pelo narrador Rodrigo S.M., tem um alcance humano maior, que escapa ao drama do retirante. Ela parece ser alguém que preserva um estado anterior à queda bíblica, desconhecendo os males do mundo.”
Segundo explica a professora, todos nós, com mais ou menos recursos vivemos esse mesmo exílio “na própria terra” e também fantasiamos um lugar sem carências. “Mas, lembremos que Macabéa, no seu vazio e na sua inocência, faz perguntas sobre o ser e a vida que o ‘namorado’ Olímpico, tão seguro e tão ambicioso, não consegue responder. Quem saberia?”
O desejo de ser livre foi sempre lembrado por Clarice Lispector. Será que ela realmente viveu a liberdade além dos livros? Yudith responde: “Difícil dizer… Ela ansiava algo sem nome e talvez nem a liberdade a satisfizesse. Aliás, ser livre não dispensa a angústia. Ao contrário. Segundo os existencialistas, por exemplo, e há muito dessa visão na obra de Clarice, a angústia é inerente à liberdade humana. Para Clarice, como ela diz na crônica O artista perfeito, arte não é liberdade, é libertação, assim como não é inocência e sim ‘tornar-se inocente’. Portanto, é um processo sem fim, uma aprendizagem que nunca se fixa, sendo fluxo contínuo de recuos e avanços, incorporação das experiências sem promessa de progressão. Ainda assim, acho que a personalidade intensa e inquieta de Clarice deveria se sentir livre em alguns momentos e aprisionada em outros, alternando estados sem repouso”. Uma especulação que só quem conviveu com ela pode atestar. “Quanto à obra, acredito na escritora se debatendo para ser livre das molduras de gêneros, das regras da gramática, dos enquadres da linguagem e das ideologias limitadoras. Sua obra atesta o êxito desse movimento, ainda que, imagino eu, possa ter sido um tormento experimentar a liberdade. Se a autora expõe em sua obra o êxtase e o inferno das personagens ao se verem livres das capas da ilusão, o mesmo poderia ocorrer com a pessoa Clarice. Talvez a grande revelação da obra clariciana esteja na frase de sua primeira protagonista, Joana, de Perto do Coração Selvagem, livro de estreia de 1943: ‘Tudo é um’. A percepção do amálgama de que todos somos feitos e o fio que nos une com o mundo deve ser uma experiência extasiante, mas difícil de sustentar na nossa ‘alma diária’, nos termos claricianos.”
Quando Clarice Lispector vestiu Maria. E Maria Bonomi vestiu Clarice. Uma amizade que nasceu de um vestido de festa. Um vestido cor de água…
O jeito foi pedir ajuda para a Embaixada Brasileira. Alzira Vargas, esposa do embaixador Amaral Peixoto, entendeu o problema. “Ela me olhou, examinou e disse que a mulher do secretário batia comigo em tamanho e porte”, lembra Maria Bonomi. “Deu um telefonema e lá fui eu com o endereço na mão… Pouco depois, uma moça bonita me atendeu: Clarice Lispector na elegância dos seus 38 anos. Ela me convidou para entrar. Pouco depois, estávamos juntas escolhendo roupas em seu armário. Separamos três vestidos para a ocasião. Todos lindos. A embaixatriz tinha razão. Ficaram perfeitos em mim. Escolhi um com a cor da água…”
Mas e os sapatos, as luvas, a bolsa? Clarice já tinha providenciado também. Maria foi embora feliz. E desde aquela noite de 1958, na Casa Branca, ela se vestiu de Clarice Lispector.
Clarice Lispector na exposição de Maria Bonomi,Xilografias Transamazônica, na galeria Bonito, 1975 – Acervo Maria Bonomi
“Clarice ficava em silêncio me vendo gravar a matriz. Transformava em palavras os detalhes que me passavam despercebidos em cada xilogravura…”
Dias depois, Maria pegou o vestido na tinturaria e foi devolver. “Clarice me atendeu, pediu para que eu entrasse para um café. Quis saber de cada detalhe do jantar. ”
A estudante logo sentiu, apesar da diferença de idade, que elas compartilhavam mais do que o mesmo tamanho de manequim. Uma descoberta que foi se renovando nas histórias de cada livro e de cada gravura. “Dali nunca mais nos afastamos. Clarice ficava em silêncio me vendo gravar a matriz. Transformava em palavras os detalhes que me passavam despercebidos nos gestos de cada xilogravura. Eu também ouvia suas histórias e o seu silêncio que transformava em paisagens.”
Bonomi me conta essa história, lembrando dos cem anos que a escritora e amiga Clarice Lispector completa neste próximo dia 10. E mostra um artigo publicado no Jornal do Brasil em 2 de dezembro de 1971 com o título Carta sobre Maria Bonomi.
Clarice Lispector escreve: “Há entre Maria Bonomi e eu um tipo de relação extremamente confortável e bem lubrificado. Ela é eu e eu ela e de novo ela é eu. Como se fôssemos gêmeas de vida”. Maria reafirma essa afinidade que se espraiou no Rio de Janeiro, quando caminhavam para falar de coisas da vida e procurar o apartamento onde Clarice queria morar. “Minha mãe morava em Copacabana e eu conhecia bem a cidade.”
A artista e matriz – Foto: Lena Peres
“Maria escreve meus livros e eu canhestramente talho a madeira. E também ela é capaz de cair em tumulto criador – abismo do bem e do mal de onde saem formas, cores e palavras.”
Neste artigo, a escritora conta que a amizade entre as duas ficou lacrada, quando se tornou madrinha de batismo de Cássio Luís, filho da pintora e do diretor de teatro Antunes Filho. “Maria escreve meus livros e eu canhestramente talho a madeira. E também ela é capaz de cair em tumulto criador – abismo do bem e do mal de onde saem formas, cores e palavras.”
Certa vez, Maria ofereceu uma gravura de presente para Clarice. Pediu que ela escolhesse. Essa história é registrada nesta carta. A escritora explica: “E eu ingenuizada por um instante pedi logo o máximo. Não a gravura, a própria matriz. E escolhi a Águia. Foi depois que me dei conta do que havia pedido e assustou-me a própria audácia: como é que eu havia ousado querer esta enorme e pesada joia de madeira de lei?”.
Certo é que Maria não pensou duas vezes. Logo enviou a matriz da Águia (veja a reprodução da gravura). Uma imagem que ficou nos sonhos de Clarice, que admitiu: “A ideia de águia de Maria Bonomi me persegue”.
O voo de Clarice sugerido pela águia de Maria pousou em suas páginas. E a escritora passou a pintar. “A águia de grandes asas abertas e de longo bico adunco de marfim – pois é o que vejo na sua abstração – por um instante imobilizada”, comentou.
A professora Nádia Battella Gotlib, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisadora pioneira da vida e obra de Clarice Lispector, fala sobre sua série de pinturas na década de 1970. “Admirava a arte não figurativa, abstrata. Sua obra plástica, composta de 22 peças, pode ser considerada como um exercício de diálogo entre as duas artes: a literatura e a pintura. São estratégias de ação artística – a procura da ‘coisa’ a partir da desconstrução de formas rígidas e fixas – que repercutem mutuamente. Há texto registrado em tela sua. E a própria composição à base de linhas, cores, e textura de pinceladas livres, apontam para semelhanças com os recursos de ordem pictórica registrados através da palavra na prática da sua arte literária.”
Através da pintura, Clarice Lispector foi se vestindo de Maria Bonomi. “Imagino Maria no seu ateliê usando as mãos, instrumento mais primitivo do homem. Com suas belas mãos…”, escreveu.
Quando vai ao Rio de Janeiro, Maria visita o Leme onde a escritora morou por 12 anos. Lá, desde maio de 2015, há uma escultura de Clarice criada por Edgar Duvivier. Clarice está com um livro na mão, muito elegante, ao lado do seu cachorro Ulisses. Maria Bonomi se senta no mesmo banco, junto da praia onde caminhavam e dividiam segredos. Hoje, Maria compartilha a infinitude.
Clarice Lispetor ganha site bilíngue com fotos, manuscritos e vídeos
Clarice Lispector é homenageada em seu centenário com um site que reúne fotos, manuscritos, áudios, vídeos, cartas, aulas e textos críticos, em grande parte provenientes do acervo de Clarice, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2004. O destaque é a aula em vídeo de Yudith Rosenbaum, professora de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo. Especialista na vida e obra da escritora, ela analisa o conto Felicidade clandestina, publicado no volume homônimo de 1971.
“O site é dividido em dois grandes modos de navegação: um ambiente de livre fruição, que apresenta a vida e obra de Clarice em forma narrativa, e outro voltado para estudo e pesquisa”, comenta Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS. No primeiro ambiente, destaca-se o belo e arrojado design gráfico e a navegação atraente.
O público pode mergulhar na obra e na vida de Clarice a partir de um percurso poético e afetivo. Fotos, frases, cartões-postais, manuscritos e entrevistas, entre outros materiais, surgem de diferentes modos na tela, numa experiência rica, cheia de surpresas. Textos e imagens são relacionados livremente, de forma a explorar memórias, reflexões, espantos e perplexidades da autora.
Como num fluxo narrativo contínuo, surgem, por exemplo, um vídeo do filho da escritora, Paulo Gurgel Valente, comentando a relação com a mãe; o áudio de uma entrevista que a autora concedeu ao Museu da Imagem e do Som, em 1976, na qual ela comenta sua formação como advogada; um vídeo de Maria Bethânia interpretando um fragmento do livro Água Viva; páginas da revista Senhor; a crítica feita por Antonio Candido para Perto do Coração Selvagem, primeiro livro de Clarice; o retrato da autora realizado pelo célebre pintor Giorgio de Chirico, em 1945; tudo repetido numa espécie de loop. Já o campo de estudo do site é voltado tanto para alunos escolares quanto para pesquisadores acadêmicos. Apresenta uma cronologia ilustrada da autora; a seção Livro a Livro, que traz todos os livros de Clarice, acompanhados de textos que apresentam as obras, escritos por especialistas para o site.
Há ainda aulas em vídeo, ministradas por estudiosos como o escritor Evando Nascimento e os professores Nádia Battella Gotlib e José Miguel Wisnik, de Literatura Brasileira da USP, além de uma ampla bibliografia sobre a obra de Clarice, que o visitante pode acessar por meio de filtros, procurando os temas e as abordagens que mais o interessem.
Entre os itens de acervo, digitalizados e transcritos, estão cadernos da escritora, pouco conhecidos ou inéditos, que acabam de chegar à coleção do IMS, e dezenas de cartas enviadas por Clarice ao longo de sua vida para suas irmãs, para personalidades como os escritores Erico Verissimo e Mário de Andrade e o ex-presidente Getúlio Vargas. Estão disponíveis também uma série de manuscritos, de obras como A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida.
A seção Postagens é atualizada permanentemente, oferecendo textos breves sobre aspectos da obra clariciana, mas também registrando o que se passa no mundo editorial, artístico e acadêmico em torno da escritora.
O link do site dedicado à escritora é:
www.claricelispector.ims.com.br.