Desde que iniciadas em 2021, as mobilizações para a realização de um Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia, o conjunto de entidades que o propôs, organizou e realizou agora ao final de abril – mais de uma centena de organizações e movimentos – mantiveram a motivação de sua convocação (http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao…/), conforme os termos propostos pelas seis entidades que subscreveram o texto original: os coletivos Transforma MP, Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, Associação Juízes para a Democracia, Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia e Movimento Policiais Antifascismo.
Buscando ampliar contatos e agregar novos movimentos e organizações durante mais de um ano, até a instalação presencial do Fórum, cuidou-se de “promover um espaço de encontros e de compartilhamentos de percepções e informações e, num segundo momento, buscar construir condições para ações concretas e coletivas frente a desafiadora conjuntura atual”, ao acicate de motivos e urgências bem descritos no documento convocatório.
Entre esses motivos e urgências, tratou-se de não se acomodar “ante as milhares de situações de violações de direitos humanos, com destaque especial ao escancarado racismo estrutural que nos assola e à manipulação da democracia através de técnicas cada vez mais sofisticadas de disseminação de notícias falsas”, culminando numa estratégia em que o assim denominado lawfare sequestrou o espaço democrático do sistema de justiça para fazê-lo cúmplice de um processo desconstituinte de assalto ao projeto de sociedade que se organizava em base de uma amplo programa de mais equitativa distribuição da riqueza socialmente realizada e num experimento sem precedente de compartilhamento de poder político, numa modelagem criativa de participação popular democrática.
Cumprindo um rico e denso programa, os dias do Fórum permitiram uma completa interpretação da conjuntura global e local, econômica, política, ética, jurídica e funcional, de nossa realidade.
O Fórum Social Mundial Justiça e Democracia – movimento de arregimentação das forças sociais para permanente de avaliação, de denúncia e de transformação dos sistemas de justiça para a garantia da democracia – identifica, conforme a Carta, “a ação dos sistemas de justiça fragilizados na sua independência, que se prestam a aprofundar o fosso entre a institucionalidade e a cidadania. Denuncia, então, tais sistemas instruídos pelo neoliberalismo, conformados à burocracia e pouco entusiastas da democracia, que se mostram antes propensos a abrir do que fechar as portas para o fascismo”. Mas com a clareza de que “tal propensão, além de gerar críticas, impõe a autocrítica como necessidade inescapável de quem atua no interior desses sistemas. Ela demanda um agir concentrado para extrair o racismo, o poder patriarcal cis-heteronormativo e o elitismo que contaminam os sistemas de justiça instituídos nos territórios dos países colonizados e que contribuem para sequestrar a democracia”.
Mas o Fórum não foi só diagnóstico, na forma de um seminário que permita a discursividade elegante da crítica acadêmica. Ele se constituiu de urgência, para ser também “uma autocrítica disposta a mirar essas marcas históricas e a comprometer-se com a superação delas”.
Pessoalmente, também participante das mobilizações e da construção do evento, eu já carregava a convicção sobre ser possível estabelecer diálogos com os movimentos sociais e suas assessorias jurídicas para extrair dessa interlocução, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.
E, em contrapartida, desafiar os sistemas à luz das agendas assim construídas, para traduzir como reivindicação, uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais” (cf. http://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/).
A Carta é, pois, forte na afirmação de que o Fórum “oferece e ressalta a importância de ‘vencermos o obstáculo epistemológico dos paradigmas que isolam o jurídico na forma e na lei’, distanciando o Direito da vida concreta. Ele nos lembra que ‘a função do Direito é contribuir para a obra da humanização’ e que ‘a humanidade é uma experiência histórica e social’. E mais, que “ao desvelar as falhas dos sistemas de justiça por meio de depoimentos de pessoas que foram afetadas por eles ou por meio de estudos bem sistematizados, este Fórum presencial contribui para mensurar a extensão dos danos para a democracia que um sistema de justiça corroído acarreta. Também permite dimensionar os desafios com os quais nos deparamos para reafirmar a opção por um modelo de sociedade que seja alicerçado no princípio da igualdade, organizado em torno da ideia de emancipação política dos seus membros e, ainda, combativo quanto ao avanço do neoliberalismo econômico que leva ao exaurimento dos recursos naturais e objetifica as pessoas, automatizando-as. Isso sem contar que o neoliberalismo tenta apagar os saberes de povos originários (ainda resistentes) e solapa qualquer ideia de implantação do bem-viver para a maioria da população, consagrando o poder absoluto de alguns indivíduos ou corporações, pretensamente onipresentes por meio de plataformas digitais”.
A Carta termina com uma constatação: “Com nossas atividades, alcançamos o discernimento de que Democracia e Justiça não são resultado de lei ou regimento, mas estão inscritas no seio da sociedade e são impulsionadas pela avaliação e pela injunção crítica e contínua dos sujeitos coletivos que fazem a mediação entre sociedade e direito. São eles que constroem coletivamente a sua independência social com base nas interações permanentes no sentido de fazer a temática do nosso fórum: democracia e justiça, a nossa vida”.
Mas termina também com uma disposição sensível não fosse Porto Alegre a terra de Mário Quintana, prorrogada pela voz do artista gaúcho, teórica, política e culturalmente atuante no FSMTJD, Mauro Moura: “Hoje se renova, no nosso coração de estudante, “a aurora de cada dia”: a esperança de uma utopia que “pode estar aqui do lado, bem mais perto que pensamos”. “Se o poeta é o que o sonha o que vai ser real, sejamos poetas”! Tenhamos em mente “a presença distante das estrelas”! Encorajando a revoada do eu passarinho, sejamos nós passarada! “Sob o sol da justiça social, nossa voz a resistir / ocupa-se de marginal, o bloco que ousa colorir / Lutando por direitos na rua, atravessando a alma minha e tua / São as procissões que se encrustam na via, multidões, utopia / Tivera a coragem das flores, que no temporal embelezam o dia / Tendo a sorte breve como os amores, mesmo despetaladas são valentia / Se eu cair, vou cair lutando / Se o fim chegar, não há de me encontrar chorando / Mas isso é coisa de quem não negocia a humanidade, a democracia”.
Assim é que, diz a Carta de Porto Alegre: “Os dias de trabalho intensos que tivemos significaram, portanto, um momento de denúncia das falhas dos sistemas para efetivar a justiça e também um espaço de fortalecimento da nossa resistência para avançar no sentido de construir uma democracia de fato inclusiva e garantidora do respeito aos sujeitos. Mais do que isso, serviram para demonstrar que “Democracia, Justiça e Participação são convocações do real”.