Carta aberta ao presidente Lula: a covardia de seus ministros das áreas afirmativas

Paulo Teixeira e Anielle Franco, por exemplo, possuem em comum a covardia política dos que se rendem aos algozes dos que deveriam defender

 

 

Por João Orozimbo Negrão

 

Meu querido companheiro presidente Lula:

Quem lhe escreve estas mal traçadas linhas é um candango nascido em 24 de junho de 1960, dois meses após a inauguração de Brasília, em um acampamento às margens do lago Paranoá no Parque Dom Bosco, ali ao lado da Ermida, bem de frente para sua casa oficial, o Palácio da Alvorada.

Nasci como você, em um barraco, em uma espécie de favela, aquilo que era o acampamento da Coenge, a empresa que cuidou da terraplanagem e pavimentação das ruas, avenidas, estradas parques e rodovias do Distrito Federal. Meu barraco de apenas três cômodos (sala, quarto e cozinha) era de madeira e telhado de folha de zinco, com pouco menos de 30 metros quadrados.

Eu nasci de mãe de pegação (parteira) e quase morri junto com minha mãe devido às complicações do parto. Como você (me permita chamá-lo assim, companheiro) só fui comer pão depois dos sete anos de idade, quando fomos morar em Araxá (MG), para onde a Coenge transferiu meu pai.

Seu José Orozimbo da Silva, o Negrão, era chefe da “melosa”, um caminhão com vários tambores de graxa e óleos e um grande tanque de combustível, com muitas mangueiras, uma parafernália usada para abastecer, lubrificar e engraxar as máquinas pesadas da terraplanagem e pavimentação.

Nasci e vivi minhas infâncias e minha pré-adolescência na órbita daquele caminhão, onde eu brincava com meus irmãos e amigos e de onde carrego até hoje aquele cheiro de derivados de petróleo que ficaram impregnados para sempre em minha parte do cérebro responsável pelo olfato.

Pois bem, companheiro presidente Lula: eu sou filho de um operário, assim como você foi um operário. José Orozimbo, o Negrão, saiu de Guarulhos (SP) em 1957 para trabalhar na construção de Brasília. Aqui, ele encontrou a garçonete e lavadeira de roupas Clarice Laura Alves, de 19 anos, que lhe servia no refeitório da Coenge e lavava suas roupas grudadas de óleo e graxa.

Se casaram, foram morar no acampamento às margens do lago, na Ermida Dom Bosco, de frente para o Palácio Alvorada, e lá nasceu este cara teimoso aqui que vos fala, que, como você, superou a desnutrição, sobreviveu, comeu pão francês somente aos sete anos de idade e saboreou uma pizza com 14 anos, porque conseguiu comprar com o dinheiro do trabalho de office boy no Banco Itaú, em Goiânia.

Como o próprio apelido induz, meu pai era um negro, um Negrão, daquele retinto. E minha mãe,  uma descendente de kiriri, etnia indígena da Bahia, filha de vó Josefa, casada com vô Pedro, o Pai Véi, homem pardo, médio proprietário de terra em Mundo Novo (BA), que abandonou os conflitos agrários daquele período turbulento quando soube da construção de Brasília. Então veio para cá com 26 filhos: 21 adotivos e cinco biológicos, entre os quais a intrigante Clarice Laura, minha mãe.

Completando a apresentação, companheiro Lula, aqui quem lhe escreve estas mal traçadas linhas é um homem negro com ascendência indígena, militante do Movimento Negro, que militou por quase 40 anos no Partido Comunista do Brasil e que lhe encontrou por diversas vezes na militância e, como jornalista, lhe trocou algumas palavras.

Este homem negro aqui, presidente Lula, está muito desconfortável há pelo menos um ano. Deste então venho questionando a covardia de alguns de seus ministros. É uma covardia política, porque eles não têm a coragem de confrontar os algozes dos fragilizados que deveriam defender. Eles são covardes porque (ao menos publicamente) não têm coragem de se movimentar dentro de seu governo para tentar impor as políticas publicas de fundo que precisamos, nós negros.

Para que estas mal traçadas linhas não fiquem longas, vou me ater apenas em alguns pontos. O Ministério da Igualdade Racial é uma perfumaria. Sua titular tem um significado simbólico imprescindível, mas passa muito pouco disso, companheiro presidente Lula. Ela mal sabe o que é a lei dezmeiatrêsnove. Isto porque não existe iniciativa nenhuma dela na necessária transversalidade de dialogar com o Ministério da Educação (só para ficar em um exemplo)  para tentar fazer com que a lei seja cumprida.

Meu companheiro presidente Lula, seu governo comete um atroz crime de racismo. É um racismo institucional, porque ele não coloca verdadeiramente em prática a Lei dezmeiatrêsnove, que determina (veja bem: obriga) o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas deste país. Seu governo, companheiro, portanto está sendo racista. E é um racismo qualificado, vamos assim dizer, porque é institucional. E devemos lembrar que o racismo institucional é um dos movedores do famigerado racismo estrutural.

Companheiro presidente, sua ministra tem falado com você sobre isso? Não tenho notícia.

Outro ponto: as comunidades quilombolas estão completamente abandonadas pelo estado brasileiro. Lula, os problemas que já existiam antes da Constituição de 88, que reconheceu as comunidades remanescentes, e que seus dois primeiros governos trabalharam bastante para resolvê-los, voltaram ainda piores.

O latifúndio e a grilagem que se fortaleceram no governo fascista de Bolsonaro fustigaram as comunidades quilombolas, que sofrem com invasões de seus territórios, com o avanço sobre eles do fundamentalismo neopencostal que não respeita as religiões de matrizes afro-ameríndias e promove o terrorismo, e com o uso de armas químicas do agronegócio contra essas comunidades.

É aqui que se soma a covardia do seu ministro do Desenvolvimento Agrário e seu Incra, órgão em tese responsável por demarcar também as terras quilombolas e titular esses territórios aferidos pela Fundação Palmares, dirigida por outro covarde. Falaremos sobre a covardia dele em textos posteriores.

Por enquanto, quero aqui enfatizar o tipo de covardia política à qual me refiro. Esses ministros e dirigentes de órgãos ligados às políticas de igualdade racial e agrária (e indígenas também, sobre as quais falaremos em textos posteriores) estão acomodados em suas funções e não movem uma palha dentro do imprescindível debate (e encaminhamentos institucionais) pela solução desses problemas das comunidades negras do Brasil. Um debate que deve começar com você, companheiro Lula. Eles têm a obrigação de levar a você esses problemas gravíssimos!

Voltemos ao caso desse Paulo Teixeira. Tenho visto este sujeito falar de tudo pela mídia em geral. Até de plantação de canabis (pauta justa, diga-se). Mas Paulo Teixeira, que mais se assemelha a um dândi esquerdóide do que a um militante pela causa agrária, é um boçal em termos da questão agrária do ponto de vista dos interesses dos pequenos proprietários e dos sem-terra. Ele nunca menciona a frase reforma agrária e muito menos fala em defesa das comunidades quilombolas. Se acha uma estrela, mas não passa de um meteoro de quinta categoria.

Faz uns quatro ou cinco meses, se não me engano, que Teixeira e Anielle assinaram um documento pela titulação dos territórios quilombolas. Cadê os resultados? Não vi nada. Me informem, por favor! Enquanto isso, as comunidades quilombolas vivem toda sorte de problemas: invasões, garimpos e destruição.

Companheiro presidente, é muito dolorido e perturbador para mim tecer críticas a seu governo. Eu sou daqueles que têm consciência das atrocidades pessoais e de seu governo que o companheiro enfrentou e enfrenta. Por isso sofro ter que escrever estas mal traçadas linhas. Contudo, companheiro Lula, não consigo calar a minha voz diante de tanta covardia que o cerca.

Voltaremos ao tema.

Saudações fraternas.

* João Orozimbo Negrão é jornalista em Brasília, membro da coordenação da Unegro do Distrito Federal, ex-membro dos conselhos da Igualdade Racial de Mato Grosso e do Distrito Federal, e da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Distrito Federal.

 

 

One Reply to “Carta aberta ao presidente Lula: a covardia de seus ministros das áreas afirmativas”

  1. Colega e amigo João Negrão, tenho por justíssima e oportuna essa sua carta. Sei bem, por longa vivência, que muitos dos auxiliares numa equipe de governo atuam como ‘mais realistas que o rei’, o que resulta em prejuízos ao coletivo por conta da vaidade e da má vontade (ou, pare ser realista e coincidente, covardia mesmo) de uns poucos.
    Abraços, meu querido!

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