Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Andréa Souza Bomfim. “O MAR NÃO TEM PATRÃO”: DINÂMICAS DE DISPUTA E CRIMINALIZAÇÃO NA COMUNIDADE PESQUEIRA E QUILOMBOLA DE GRACIOSA, TAPEROÁ (BA). Dissertação de mestrado submetida e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Direitos Humanos. Brasília – DF, 2025, 117 fls.
A defesa foi feita perante a Banca Examinadora formada pelas professoras Vanessa Maria de Castro, Orientadora – CEAM/PPGDH/UnB, que a presidiu, Rayane Cristina de Andrade Gomes, membro externo – UFERSA/CEAM//UnB, por mim, membro externo e ainda contando com a suplência do professor Wanderson Flor do Nascimento, FUP/CEAM/UnB.
Conforme o resumo, a “dissertação propõe analisar as dinâmicas de disputa e processos de criminalização em contexto de conflito territorial envolvendo agentes do hidronegócio, Estado e a Comunidade Quilombola e Pesqueira de Graciosa (Taperoá/BA), localizada na região do Baixo Sul. Desse modo, objetiva-se apontar como a expropriação do território pesqueiro-quilombola é garantida por um conjunto de criminalizações motivadas por empreendimentos do hidronegócio, impedindo o direito de autodeterminação do quilombo pesqueiro e o uso material e imaterial do território, impactando na efetivação de conquistas de direitos. A pesquisa também evidencia o papel central das pescadoras quilombolas na resistência e defesa do território, destacando suas estratégias de luta, a transmissão intergeracional de saberes e o enfrentamento diário às múltiplas formas de opressão. Por fim, investiga os mecanismos de controle social utilizados pelo hidronegócio, que acarretam tanto a morte material—manifestada na restrição ao trabalho, subsistência, moradia e expropriação do território—como também a morte imaterial, expressa na destruição da memória, dos saberes, da cultura, da religião e do lazer”.
Indo logo à Introdução, na forma como a expressa a Autora – “Eu, quilombola das águas do Baixo Sul da Bahia: Memorial e caminhos da pesquisa” – cuida ela de “honrar os povos das águas, a natureza e o território ancestral está intrinsecamente ligado a honrar a nossa própria família e existência. É reconhecer a importância de minha mãe, Veranice Jesus Souza Bomfim, uma mulher das águas cuja presença é essencial para a realização desta escrita. Mãe Bernadete Pacífico, que faleceu em defesa do território ancestral, deixou seu legado imortal. Assim como o mestre Nêgo Bispo (2023, p. 102) nos ensina: “Somos povos de trajetórias, não somos povos de teoria. Somos da circularidade: começo, meio e começo. As nossas vidas não têm fim. A geração avó é o começo, a geração mãe é o meio, e a geração neta é o começo de novo”. E também todas as gerações que vieram antes de nós, que trabalharam incansavelmente, e aquelas que ainda estão por vir, que seguem essa luta com o mesmo vigor e dedicação”.
Andréa se mostra, pois, veemente e afirmativa na subjetivação de seu trabalho e na defesa oral insistiu na condição de poder falar em primeira pessoa, com a autenticidade que imprime a esse capítulo introdutório, estabelecendo desde logo o seu “lugar de fala”, como se diz contemporaneamente.
Com efeito, Frantz Fanon, embora não tenha utilizado o termo “lugar de fala” como é empregado contemporaneamente, abordou questões profundamente relacionadas a essa ideia em suas obras, especialmente em relação à legitimidade de falar a partir de experiências específicas, como a colonial e a racial.
Fanon, em livros como “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952) e “Os Condenados da Terra” (1961), discute como a opressão colonial e racial molda a subjetividade e a capacidade de expressão dos indivíduos colonizados. Ele argumenta que a experiência do colonizado é única e que essa vivência confere uma perspectiva crítica sobre o sistema colonial e suas estruturas de poder. Para Fanon, o colonizado tem uma visão privilegiada para denunciar a violência e a desumanização do colonialismo, pois vivencia diretamente suas consequências.
Contemporaneamente e entre nós, Djamila Ribeiro, em sua abordagem sobre o “lugar de fala”, enfatiza que indivíduos de grupos marginalizados têm uma autoridade epistêmica única para falar sobre suas próprias experiências de opressão. Essa ideia ressoa com o pensamento de Fanon, que já destacava a importância de ouvir as vozes dos oprimidos como forma de desconstruir as narrativas dominantes e construir um conhecimento mais justo e emancipatório.
Não é demais lembrar que Djamila Ribeiro desenvolve e populariza o conceito de “lugar de fala” principalmente em seu livro “O que é lugar de fala?”, publicado em 2017 como parte da coleção “Feminismos Plurais”, coordenada por ela. Nessa obra, Ribeiro explora a ideia de que a posição social de um indivíduo — marcada por fatores como raça, gênero, classe e outras interseccionalidades — influencia diretamente sua perspectiva e sua capacidade de falar sobre determinadas experiências.
Ela argumenta que pessoas pertencentes a grupos marginalizados têm uma autoridade epistêmica única para discutir suas próprias vivências, uma vez que estão diretamente envolvidas nas estruturas de opressão. O conceito de “lugar de fala” ganhou grande relevância no debate público brasileiro, especialmente no contexto dos movimentos feministas e antirracistas, ao questionar quem tem o direito de falar sobre determinados temas e como as narrativas dominantes podem silenciar vozes marginalizadas.
Mas, vale ressaltar que, embora Ribeiro tenha sido fundamental para popularizar o termo no Brasil, as bases teóricas que sustentam a discussão sobre a relação entre posição social e produção de conhecimento já estavam presentes em autores como Frantz Fanon, bell hooks, Patricia Hill Collins e Gayatri Spivak, entre outros. Ribeiro, no entanto, adapta e contextualiza essas ideias para a realidade brasileira, destacando a importância de ouvir as vozes das mulheres negras e outros grupos historicamente silenciados.
Em resumo, com Fanon e Djamila, Andréa Bomfim também compõe uma obra que leva a estabelecer bases – “lugar de fala” – na medida que se possa entender como a posição social e a experiência vivida conferem legitimidade e autoridade para falar sobre determinadas questões, especialmente aquelas relacionadas à opressão racial e colonial.
Andréa não é extravagante ao assumir a primeira pessoa para desenvolver o seu texto. Boaventura de Sousa Santos inclusive chegou a elaborar um texto – “Sociologia na Primeira Pessoa” (SANTOS, Boaventura de Sousa. Sociologia na Primeira Pessoa. In: A Gramática do Tempo: Para uma Nova Cultura Política. São Paulo: Cortez Editora, 2006), no qual aborda a importância de reconhecer a subjetividade e a posicionalidade do pesquisador, defendendo uma sociologia engajada e crítica que dialogue com as realidades sociais e os movimentos de transformação. Ele enfatiza a necessidade de superar a dicotomia entre objetividade científica e envolvimento pessoal, propondo uma abordagem que integre a vivência do sociólogo como parte do processo de conhecimento.
Além disso, metodologicamente, o trabalho de Andréa, na sua modalidade de pesquisa qualitativa, ganha a exemplaridade de um estudo de caso, porque se concentra na análise detalhada e contextualizada de um fenômeno específico, uma comunidade e a situação que a caracteriza, permitindo uma investigação profunda e única, utilizando múltiplas fontes de evidências, entrevistas, observação participante, para compreender a complexidade e as nuances do objeto de estudo, tal como indica o próprio título da dissertação.
Segue o Sumário:
2. INTRODUÇÃO
3. “Nas águas que correm, vejo o reflexo dos nossos ancestrais”: A história do Baixo Sul da Bahia
1.1. Diáspora africana e a continuidade histórica: raízes e estabelecimento do Quilombo Pesqueiro Graciosa (1840):
1.2. A pesca artesanal e a relação com as águas: lutas, resistências e transformações sociais.
1.3. Tradições, práticas culturais, costumes, crenças e patrimônio material e imaterial.
2. Medo, Intimidação e Dinâmicas de Poder: Estratégias de criminalização e desafios à autonomia do Quilombo Pesqueiro Graciosa:
2.1. O Conflito Territorial.
2.2. Forjando inimigos: Mecanismos de controle social e impactos da criminalização no Quilombo Pesqueiro.
3. Marés de Retomada: recuperação territorial na comunidade pesqueira e quilombola de Graciosa (2015-2024):
3.1. Reivindicação e luta pelo território: os quilombos como sujeitos coletivos de direito.
3.2. Pescadoras quilombolas em defesa do território.
3.3 Graciosa: Estratégias de recuperação e autonomia.
Conclusão
Referências
APÊNDICE A
APÊNDICE B
Para além dos elementos formais desenvolvidos na redação da dissertação, vale por em relevo, como parte do desempenho aferido para a aprovação e outorga do título, o excelente esquema de apresentação do trabalho e nele o modo articulado como a Autora construiu a estrutura argumentativa de sua exposição. No link a seguir, que remete ao Canal Youtube do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (Banca de Defesa Final de Mestrado: Andréa Souza Bomfim do PPGDH – https://www.youtube.com/watch?v=xsH_mjmAl_g&t=8176s), pode-se confirmar e até aproveitar, para fins didáticos, o relevante material que fica à disposição como modo de conhecer uma realidade pouco difundida – a Comunidade Pesqueira e Quilombola de Graciosa – na boa descrição e na forma explicativa que a Autora oferece.
Detenho-me em dois capítulos da Dissertação – 2. Medo, Intimidação e Dinâmicas de Poder: Estratégias de criminalização e desafios à autonomia do Quilombo Pesqueiro Graciosa: 2.1. O Conflito Territorial. 2.2. Forjando inimigos: Mecanismos de controle social e impactos da criminalização no Quilombo Pesqueiro e 3.1. Reivindicação e luta pelo território: os quilombos como sujeitos coletivos de direito.
Em dinâmicas de poder e estratégias de criminalização, a Autora descreve e revela o modo expropriante do capital para subordinar e exercitar controle social sobre as formas tradicionais de produção e reprodução da existência social. Não é uma novidade. Há muito os Movimentos Sociais denunciam essa estratégia penal seletiva, uma forma bem caracterizada pela Autora como base em seus autores de referência – Ana Luiza Pinheiro Flauzina (Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília), de cuja banca participei, e Eugênio Zaffaroni (Suponho que a referência – não aparece na bibliografia mas nas citações indica o ano 2021 – seja a Colonização punitiva e totalitarismo financeiro: a criminologia do ser-aqui. Tradução de Juarez Tavares. Rio de Janeiro: Da Vinci Livros, 2021), inteiramente pertinentes à caracterização que ela faz no trabalho.
São inúmeras as produções os próprios Movimentos – Cartilha ‘A luta social e a tentativa de criminalização dos movimentos populares no Brasil’. Coletivo de Direitos Humanos da Via Campesina Brasil. São Paulo, 2016 – ou estudos de mais indagação, alguns dos quais já tema de minha atenção. Conforme https://estadodedireito.com.br/caderno-de-estudos-praticos-direitos-humanos-e-acesso-a-terra-caderno-1-sistema-de-justica-e-movimentos-sociais-do-campo/ – Caderno de estudos práticos: Direitos Humanos e Acesso à Terra. Caderno 1: Sistema de justiça e movimentos sociais do campo [livro eletrônico] : um guia prático contra a criminalização de defensores e defensoras do direito humano à terra / Oona de Oliveira Caju…[et al.]. – – 1 . ed. – – Mossoró, RN/CRDH-Centro de Referência em Direitos Humanos Semiárido : Queima-Bucha, 2022. PDF. Outros autores: Vagner de Brito Torres, Antônio de Freitas Freire Júnior , João Paulo Holanda Costa, a universidade da professora Rayane Gomes, examinadora da dissertação.
Nesse estudo, os pesquisadores e pesquisadoras que o conduziram aludem ao fato de que “a transformação do Brasil num país melhor depende do avanço das lutas dos movimentos sociais populares. A conquista de direitos na lei também faz parte da tática dessa luta. A criminalização dos movimentos sociais é uma forma de fragilizar a luta pelos direitos humanos e a mudança do sistema para algo melhor. Muitas vezes, o Estado pune, de várias formas diferentes, quem está manifestando opiniões contra ele, apontando erros e falhas em seu sistema, e reivindicando direitos desprezados”. E, em consequência, “o sistema penal esconde a real face causadora da violência, da repressão, e não se pode admitir a perda da liberdade, do livre exercício de direito, da manifestação e, principalmente, da democracia. São os protestos populares e as ações dos movimentos sociais que mantém a democracia viva. A criminalização dos movimentos sociais fragiliza os nossos direitos fundamentais”.
Eu próprio vivenciei a tensão desse processo ao participar de CPI na Câmara dos Deputados, instalada com o objetivo não disfarçado de criminalização do MST. Felizmente esse intento fracassou e a força argumentativa do próprio Movimento e de testemunhos independentes acabou por desnudar esse intento em tudo semelhante ao descrito por Andréa Bomfim relativamente aos conflitos por território em Graciosa. Sobre a CPI do MST divulguei minhas impressões: https://brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/; e https://brasilpopular.com/nova-estrategia-do-latifundio-agronegocio-uma-cpi-para-confrontar-o-mst/.
Em relação ao segundo ponto que me chamou a atenção – os quilombos como sujeitos coletivos de direito – confesso que deriva da circunstância de que, nesse passo, a Autora se vale de uma categoria de análise que me toca de perto, porque central à concepção e à prática de O Direito Achado na Rua, campo teórico-político que me engaja.
A própria Autora o confirma (p. 84/85):
De acordo com a perspectiva de O Direito Achado na Rua, o sujeito coletivo de direito é o principal agente a reivindicar direitos, surgindo do espaço público onde se concentram as lutas por emancipação e onde o direito é efetivamente constituído. Para compreender esse processo, é necessário, primeiramente, definir o espaço político em que se realizam as práticas sociais que fundamentam ou efetivam os direitos. Em seguida, é essencial analisar a natureza jurídica do sujeito coletivo, considerando seu papel na formulação de um projeto político de transformação social. Por fim, é preciso, a partir das práticas sociais, reunir elementos que permitam a criação de novas categorias jurídicas capazes de enfrentar as opressões vividas, promovendo organização social e liberdade como pilares fundamentais.
Nesse diapasão teria valido bem à Autora, identificar no interesse da base teórica da dissertação, contribuições precedentes desenvolvidas na própria UnB, incluindo o Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, no qual ancora o seu trabalho.
Menciono, defendida em 30-Ago-2019, de MEDEIROS, Áurea Bezerra de. Entre a ocupação, a certificação e a titulação da terra: a luta pelo direito à terra da comunidade quilombola de Macambira – RN. 2019. 81 f. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania)—Universidade de Brasília, Brasília, 2019.
Este trabalho, conforme anotado no Repositório de Teses e Dissertações da UnB, tem por objeto um estudo de caso na Comunidade quilombola de Macambira, localizada no Município de Lagoa Nova no Rio Grande do Norte/RN. A proposta de pesquisa consiste em analisar os processos judiciais estadual, federal e o processo administrativo no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, para compreender a demora e os entraves em reconhecer e conceder a titulação definitiva das terras à comunidade quilombola.
Também, defendida em 22/03/2019, dissertação da qual fui o Orientador, de OLIVEIRA, Emília Joana Viana de. Racismo, sexismo e territorialidade quilombola: a práxis das mulheres quilombolas de Rio dos Macacos – BA na disputa pelo direito à água. 2019. 153 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito) — Universidade de Brasília, Brasília, 2019.
Vale extrair do Repositório, o resumo da Dissertação:
A pesquisa a seguir foi realizada a partir das lentes sobre um conflito territorial entre a Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos e a Marinha. Como estudo de caso, objetiva compreender como a territorialidade da comunidade se expressa a partir da negação do acesso à água por meio da Marinha. A pesquisa busca analisar, também, a atuação política das mulheres lideranças da comunidade, que pode ser compreendida como exemplo de Práxis Negra em meio às disputas para regularização fundiária quilombola. O trabalho apresenta a necessária leitura historiográfica sobre os quilombos no Brasil, no passado e no presente, especialmente para os estudos do campo de Direito e Relações Raciais, dando centralidade ao racismo. Com isso, o trabalho também analisa como a atuação política das lideranças, compreendidas enquanto Sujeitas Coletivas de Direitos, é permeada pelo racismo e sexismo institucionais. Conclui-se que a gestão territorial realizada pela Marinha apresenta dinâmicas de violações e violências, às quais a comunidade responde com ações de resistência. Semelhantes ações de resistência são tomadas, pela Marinha, como justificativa para a expulsão da comunidade de seu território, sob o argumento da suposta ameaça representada pela comunidade à Segurança Nacional. O Estado, através da Portaria interministerial nº 264/2017 publicada no Diário Oficial da União, delimitou uma terra de 104 hectares, descontínua e sem acesso a fontes de água para a comunidade. A compreensão de que as fontes de água são uma parte importante do território e da inseparabilidade entre terra e água é destacada pelas mulheres negras que são lideranças políticas. A inseparabilidade entre terra e água se relaciona, ainda, com os modos de vida da comunidade pesqueira e agricultora. Nesse sentido, a negativa de acesso à água, empreendida pela marinha, pode ser compreendida como como parte do projeto genocida colocado desde a colonização por meio do Estado nas disputas pela terra empreendidas pela população negra.
Outra Dissertação, já transformada em livro, sobre o qual aliás, dediquei uma recensão em minha Coluna Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/direito-achado-na-rua-e-o-movimento-quilombola-na-aroeira-em-pedro-avelino-rn/, de Emmanoel Antas Filho. Direito Achado na Rua e o Movimento Quilombola na Aroeira em Pedro Avelino/RN. Natal: OWL Editora Jurídica, 2024, Eu já conhecia o trabalho acadêmico de Emmanoel – dissertação de mestrado – que deu origem ao livro, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em 2020, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Serviço Social e Direitos Sociais. Nele, Andréa teria encontrado correspondência de fundamentos, na medida em que Emmanoel tendo como tema O Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na Rua: uma análise da organização e lutas do Quilombo da Aroeira no Município de Pedro Avelino-RN, busca respostas para o problema que deu impulso inicial à pesquisa, que é saber se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua. Nessa linha, tem-se como objetivo geral analisar se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua, ponto este que terá cada elemento dissecado nos capítulos do trabalho, ficando à cargo da última parte, fazer a articulação entre o que se apreendeu da pesquisa documental, os referenciais teóricos abordados e o quilombo objeto do estudo. Insere-se na motivação do Autor “pesquisar sobre O Direito Achado na Rua, trabalhando-o não como ordem, mas como “legítima expressão da liberdade” (LYRA FILHO, 1982), analisando seus elementos e a relação com as lutas dos movimentos sociais, valendo-se de posicionamentos doutrinários que tratam das formas de efetivas conquistas de Direitos Humanos, com significativa importância dada às contribuições dos Movimentos Sociais e do Direito Achado na Rua como um instrumento de lutas e vitórias”.
O que o Autor compreender é sujeito coletivo de direito, categoria fundante do campo teórico-epistemológico de O Direito Achado na Rua e analisar a sua formação e o seu papel dentro do contexto histórico, de constituição da comunidade quilombola, espaço no qual se forma a subjetividade ativa e instituinte de direitos.
Baiano como Andréa, outra referência de diálogo é DIAMANTINO, Pedro Teixeira. “Desde o raiar da aurora o sertão tonteia”: caminhos e descaminhos da trajetória sócio-jurídica das comunidades de fundos de pasto pelo reconhecimento de seus direitos territoriais. 2007. 143 f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Universidade de Brasília, Brasília, 2007. Aqui por conta da veia literária presente no modo de conferir poesia aos títulos dos respectivos trabalho. Mas em Diamantino, dissertação que também orientei, paira sobre as pretensões jurídicas de reconhecimento das Comunidades de Fundos de Pasto, especialmente direitos territoriais sobre as terras que tradicionalmente ocupam, uma atmosfera descredibilizadora que subtrai da experiência do mundo tanto as inovações condizentes com projetos de vida que concebem formas, talvez mais democráticas, de acesso e uso de bens sociais, culturais e ambientais que ali se desenvolvem comunitariamente, quanto seus direitos.
Mas dele, diretamente próxima a temática de Andréa é a manifestação do professor (UEFS) Pedro Diamantino perante a Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, em 13/08/2024 na audiência sobre Comunidades Tradicionais Pesqueiras (PL 131/20). Esse depoimento circula no Instagram (https://www.instagram.com/mppbrasil/reel/C-p522RtsS_/) e dele transcrevo o trecho em que ele caracteriza a comunidade tradicional pesqueiera como um sujeito coletivo de direito:
A comunidade tradicional pesqueira é um sujeito coletivo de direito que deve ser reconhecido e protegido pela lei. Pedro Diamantino, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, falou durante a audiência pública da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais na Câmara dos Deputados. O professor destacou a conformidade do PL 131/2020 com a Constituição Federal, enfatizando sua importância na criação e reconhecimento desse sujeito coletivo de direito que é a comunidade tradicional pesqueira.
Diamantino ressaltou que foi em grandes desastres, como os ocorridos em Mariana, Brumadinho e no crime do petróleo de 2019, que o reconhecimento da existência das comunidades pesqueiras no Brasil foi evidenciado. No entanto, ele alertou que, além das belezas poéticas do modo de ser da pesca artesanal, há também muitas ameaças, violências e conflitos que essas comunidades enfrentam diariamente. Esses desafios precisam estar no centro do debate da sociedade para que os territórios dessas comunidades sejam protegidos e conservados.
O professor também destacou as características únicas dos territórios tradicionais das comunidades pesqueiras, que são compostos tanto por terra quanto por água. Essa dualidade é de uma grandiosidade inestimável para o Brasil e para a sociedade, representando não apenas um modo de vida, mas uma relação harmoniosa e sustentável com o meio ambiente.
A fala de Pedro Diamantino reforça a urgência da aprovação do PL 131/2020, que não só protege esses territórios, mas também garante o reconhecimento e a dignidade das comunidades pesqueiras. Vamos juntos lutar para que essa lei seja aprovada e para que as comunidades tradicionais pesqueiras sejam finalmente reconhecidas como sujeitos coletivos de direito, com direitos garantidos e protegidos.
De todo modo, vale registrar as conclusões da Dissertação, no sentido de que “a trajetória da comunidade reflete um ciclo contínuo de resistência e disputa territorial, no qual as marcas do passado colonial permanecem vivas na memória coletiva da comunidade. A história oral, transmitida pelos mais velhos por meio de relatos, cantigas e artefatos, reafirma a identidade quilombola e denuncia as violências históricas e contemporâneas que afetam o território. Essa resistência cultural se entrelaça com a luta material por terra e águas, elementos indissociáveis da vida e do modo de ser quilombola”.
Para ela, também nas conclusões, “a resistência se manifesta na própria continuidade da vida no território, na manutenção das práticas ancestrais e na reafirmação de uma cosmopercepção que desafia as lógicas coloniais e capitalistas. Como aponta Beatriz Nascimento (2021), os quilombos desenvolveram uma dinâmica que combina recuo e reprodução, estabelecendo o que a autora chama de “paz quilombola”. Essa noção evidencia que o modo de vida quilombola não é apenas um ato de resistência, mas também um projeto político, cultural e ecológico, fundamentado no pertencimento ao território e na coletividade”.
Para a Autora, “a luta quilombola vai além da resistência política e territorial; ela se fortalece também pelo afeto e pelo compromisso coletivo, especialmente das pescadoras. Para essas mulheres, a defesa do território não é apenas uma necessidade de sobrevivência, mas um ato de cuidado com o presente e com as gerações futuras. Afinal, a resistência quilombola não se mede apenas pelos embates jurídicos e territoriais, mas também pela persistência cotidiana em manter viva a identidade, a cultura e os saberes ancestrais”.
Para mim, o relevo para o protagonismo como ação de resistência – núcleo da dissertação – remete ao que Andréa caracteriza como compromisso coletivo, matéria de que se alimenta o agir dos sujeitos coletivos de direito. Ela tem convicção e confiança nessa disposição subjetiva ativa e coletiva. É um tema que ela já ensaiara antes mesmo de finalizar a dissertação. De um modo teórico e ao mesmo tempo empírico que dá lastro a sua argumentação na Dissertação. Pena que, modestamente, tenha deixado de fazer referência desse ensaio na bibliografia da dissertação ainda que os enunciados estejam claramente referidos no trabalho.
Reporto-me ao seu ensaio O Direito Achado no Território Negro das Águas: o Caso da Comunidade Pesqueira e Quilombola de Graciosa (BA). Ele está publicado em O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023. Sobre a obra, ver minha notícia na Coluna Lido para Você https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/.
Ao me referir a Andréa Souza Bomfim saliento o seu objetivo apresentar os quilombos como Sujeitos Coletivos de Direito, destacando esse fenômeno como experiência de resistência histórica e política. Também, evidencia-se o processo de constitucionalização ao destacar a importância da Constituição Federal de 1988 e do art. 68 da ADCT na definição dos direitos territoriais quilombolas. E, por fim, reflete sobre como os processos de controle social, em contexto de conflito territorial envolvendo agentes do hidronegócio e a comunidade quilombola e pesqueira de Graciosa (Taperoá/BA), obstam a efetivação de direitos territoriais.
A Dissertação comprova os enunciados trazidos por Andréa Bomfim no ensaio e expande de modo brilhante e afetuoso – sentipensante, ao modo de Falls Borda – um estudo que é também uma ação de resistência e uma demonstração plena do que a própria Autora caracteriza como compromisso coletivo.