Lido para Você: Conscientizar para libertar ou a potencialidade da práxis da libertação em Paulo Freire e Enrique Dussel

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal estado de Direito

Maria Inês Adjuto Ulhôa. Conscientizar para libertar ou a potencialidade da práxis da libertação em Paulo Freire e Enrique Dussel. Tese apresentada e defendida no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília como requisito final à obtenção do grau de doutora em Direitos Humanos. Brasília: Universidade de Brasília, 2024, 318 fls.

A tese foi submetida à Banca examinadora, formada pela Professora Vanessa Maria de Castro, Orientadora, também Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB), pelo Professor Pedro Demo, membro interno, pelas Professoras Adelaide Alves Dias, membro externo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Maria Cecília Barreto Amorim Pilla, membro externo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e por mim. A tese foi aprovada sem ressalvas, apenas com indicações, assinaladas na interlocução estabelecida no processo de arguição, por isso acolhidas pela Autora.

Do que trata a Tese, indica o seu resumo:

A presente tese procura contribuir teoricamente para a compreensão da potencialidade da práxis da libertação de que nos fala Paulo Freire, quando aponta que mulheres e homens podem mudar o mundo para melhor, para fazê-lo menos injusto, e Enrique Dussel, que nomeia uma práxis política de libertação a partir dos excluídos para uma nova forma de conceber a vida no respeito e na justiça à alteridade do outro. Trata-se de uma investigação de caráter reflexivo especulativo, na qual pretendi analisar os pressupostos teóricos-conceituais de uma pedagógica da libertação em Paulo Freire e em Enrique Dussel, compreendida como atividade intersubjetiva e dialógica. Parto do olhar desses dois autores, que se mostraram essenciais para o conhecimento mais aprofundado da contradição antagônica opressor/oprimido – colonizador/colonizado para a reflexão de um processo de transformação construído no diálogo entre sujeitos históricos, que constituem “a comunidade das vítimas”, dos “oprimidos”. Constata-se uma relação entre esses dois pensadores pela forma radical com que buscaram tematizar a realidade latino-americana, a partir de conceitos que questionam a condição subalterna imposta aos povos latino-americanos pelo projeto capitalista dirigido pelo pensamento eurocêntrico colonizador. Esta pesquisa tem o desafio de avançar e de aprofundar o conhecimento sobre tal tema e dos conceitos que lhes são pertinentes, com o intuito de contribuir para o alcance da atualidade e da relevância do processo de construção do sujeito histórico, que, como advogam Freire e Dussel, exige o processo de conscientização que contribua para uma práxis política de libertação.

Minha leitura do trabalho se fixou no enorme empenho teórico que a Tese exibe, que a meu ver, está em marcar no social e no político o apreender do protagonismo autoconstruído do sujeito histórico (identificado com sujeito sociopolítico de libertação (p. 228 e passim) e o processo com que se conscientiza para libertar ou a potencialidade da práxis da libertação (emancipação), conforme o compreendem Paulo Freire e Enrique Dussel.

Enquanto perspectiva metodológica, para além das opções assumidas pela Autora que a inscrevem na disposição marxista ou materialista histórica e dialética, me chamou a atenção a escolha de dois teóricos da práxis de libertação – Freire e Dussel – que em seu percurso, a Autora toma como interlocutores de um diálogo político-epistemológico que lhe permite fundamentar uma práxis política de libertação, orientada pelo avanço humanista dos direitos humanos (p. 230).

Esse diálogo é pertinente? A Banca entendeu que sim. De minha parte, concluo que não se trata de um diálogo no sentido plástico do termo, com os interlocutores vis-a-vis, seguindo um protocolo convencionado para a discussão de temas e questões selecionados para a agenda de debate.

Sequer se trata de uma polêmica adrede engendrada entre pensadores que se armaram para divergir, assim como a polêmica entre Habermas e Luhmann, sobre sistemas, racionalidades, comunicação organizacional, legitimação, democracia e direito, cujos desdobramentos nutriram discursos e ensaios de seguidores, divergindo entre si, a partir de embates jamais pensados ou realizados por seus autores de inspiração (cf. para exemplificar, https://arquivo.anpad.org.br/abrir_pdf.php?e=OTA2Mw==, Comunicação Organizacional – Confronto entre Luhmann e Habermas – Conjecturas Necessárias, XXXII Encontro da ANPAD, 2008, Onésimo de Oliveira Cardoso, Maria Ivete Trevisan Fossá; Direito e Política: Polêmica entre Habermas e Luhmann na Defesa das Correntes Procedimentalista e Sistêmica, Luiz Henrique Urquhart Cademartori e Marcos Leite Garcia. CONPEDI LAW REVIEW | OÑATI, ESPANHA | v. 2 | n. 3 | p. 457-474 | JAN/JUN. 2016, 457; Comunicação e ação política no contínuo mediático. Luhmann contra Habermas. E nós contra todos. Ciro Marcondes Filho. Revista Galaxia, São Paulo, n. 15, p. 39-58, jun. 2008. https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1494/966).

Ainda a chamada “polêmica Thibaut x Savigny” polarizou a discussão, na Alemanha do século XIX, sobre a necessidade e conveniência da formação de um código que sistematizasse, em um diploma legal, um direito civil unificado para todos os Estados Alemães, recém estabelecidos (por todos conferir Thibaut y Savigny La Codificacion. Una controvérsia programática basada em sus obras “Sobre la Necesidad de um Derecho Civil General para Alemania y De La Vocacion de Nuestra Epoca para la Legislacion y la Ciencia del Derecho. Com adiciones de los autores y juicios de sus contemporâneos. Introducción y selección de textos de Jacques Stern. Madrid: Aguilar, 1970).

Não se trata também daquele modo de divergir, ainda que no mesmo campo, em face de concepções de mundo, de sociedade e de alternativas políticas ao limite do antagonismo feroz que chega ao extremo polarizante, por exemplo de querer inserir a miséria na filosofia (Filosofia da Miséria, Pierre-Joseph Proudhon), ou de desconstruir, política e epistemologicamente essa pretensão – “o Senhor Proudhon, querendo fazer síntese (dialética) produziu um erro composto” – (A Miséria da Filosofia, Karl Marx).

Ou quando os campos começam a se demarcar, depois de separar o trigo do joio, começar a separar o trigo do trigo e o joio do joio, assentando cada sagrada família, em sua própria trincheira, embaladas para assestar, críticas, às críticas críticas (A Sagrada Família ou A crítica da Crítica crítica. Contra Bruno Bauer e consortes, de Karl Marx e Friedrich Engels. O livro é uma crítica aos jovens hegelianos e à sua linha de pensamento, muito popular nos círculos acadêmicos da época. O título foi uma sugestão do editor, como uma referência sarcástica aos irmãos Bauer (Bruno, Edgar e Egbert Bauer) e àqueles que os apoiavam).

Eu próprio, em coluna que assinava, aliás, pondo em diálogo Darcy Ribeiro e Paulo Freire – Paulo Freire e Darcy Ribeiro: o reencontro possível (Revista do Sindjus • Ano XVIII, nº 76: Set-Out/2011, p. 4: https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/wordpress-direta/wp-content/uploads/sites/108/2018/11/12084717/revista76.pdf), com a nuance de dupla realidade, a de que realmente o encontro ou reencontro que resgato aconteceu (Niterói, Rio de Janeiro, junho de 1991 – Seminário CIEP – Crítica e Autocrítica), e isso pela primeira vez após o retorno do educador do exílio; e que a afinidade entre ambos datava de longe e entre seus espaços de estreitamento a UnB foi um território de afetos e compromissos – Darcy criou a universidade e Paulo foi membro do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília.

No meu texto registro as expressões diretas da interlocução de ambos durante o seminário de Niterói, mais reservo uma, locução, de Paulo Freire, fortemente afeiçoada ao que se acentua na Tese, a propósito de causa e de compromisso teórico, social, político e históricos: “nossa história de educadores, de intelectuais deste país, por isso mesmo de políticos deste país”.

O diálogo proposto por Inês é de compartilhamento, de pretensão amplificadora e de aproximação entre os dois autores que percebe como convergentes em seu pensamento emancipador e humanista, ainda que eles próprios não se tivessem acertado em suas recíprocas e simpáticas disposições. Ela justifica (p. 19-21):

Para o alcance desse objetivo, busquei verificar uma aproximação entre o pensamento de Paulo Freire e de Enrique Dussel e identificar, em suas obras, concepções que conduzam a uma pedagógica da libertação como atividade intersubjetiva e dialógica, pensada desde o lugar específico do outro, para atender aos seguintes objetivos específicos:

– investigar os fundamentos epistemológicos e pedagógicos presentes nas obras de Paulo Freire e Enrique Dussel, com ênfase na relação entre opressor e oprimido e no papel da conscientização crítica;

– analisar o conceito de práxis libertadora em Freire e Dussel, explorando sua abordagem para a construção do sujeito histórico;

– realizar uma leitura crítica e intersubjetiva da pedagogia da libertação, verificando como o diálogo e a responsabilidade com o outro podem contribuir para a construção de um conhecimento libertador.

É justamente nesse aspecto que este estudo se direciona para a constatação de Enrique Dussel e de Paulo Freire de que as razões, significados e sentidos políticos que levam o ser social a conhecer e construir uma práxis da libertação em diversos contextos históricos, é o desejo contra qualquer forma de opressão moral ou institucional. A compreensão epistêmica tanto em Freire como em Dussel não deixaram dúvidas quanto ao reconhecimento de suas reflexões sobre o ponto de partida e o ponto de chegada sobre o que eles pretenderam ao problematizar o processo histórico em que o ser humano se reconhece – dos marginalizados, à exterioridade negada, à afirmação da positividade, ao conhecimento, à transformação, à libertação.

É a partir do questionamento sobre o fundamento tanto da libertação como uma possibilidade que depende da ação das pessoas para tornar-se realidade, quanto dos contextos históricos sociais e culturais em que os seres humanos se afirmam em sua dignidade e liberdade para fugir da opressão, que o diálogo proposto nesta pesquisa entre estes dois pensadores se sustenta e interage na importância do compromisso de conscientização do oprimido/vítima no processo histórico da libertação dos seres humanos no seu mundo e com o mundo. É assim que vemos se afirmar uma maneira de levar em consideração que os escritos de Paulo Freire e de Enrique Dussel podem ser apropriados, como instrumentalização subjetiva, por movimentos sociais populares de diversos tipos (sindicatos, associações, movimentos por moradia, cooperativas, grupos de bairro, entre outros), para combater os interesses do sistema do capital e lutar movidos pelo conhecimento científico da realidade, não se subordinando à ideologia da classe dominante.

Na ênfase de edificar uma compreensão da universalidade da pedagógica da libertação, é que aqui se busca a interface da epistemologia freireana, referente à educação do oprimido, com a dusseliana, sobretudo na denúncia acerca das condições em que vivem milhões de seres humanos, que, localizados nas periferias, clamam por uma vida digna. É ainda neste sentido que a presente pesquisa se situa como um “processo de descoberta” e não apenas como ato descritivo-analítico referenciado nos estudos bibliográficos que me permitiram a esperança de poder ajudar a recuperar a teorização pedagógica libertadora que ainda parece oferecer a possibilidade de esclarecimento das perspectivas de justiça econômica, cultural e política aos povos oprimidos na atualidade e, assim, iluminar a significação histórica desse movimento libertador que se encontra na generosidade intelectual de Paulo Freire e de Enrique Dussel.

E, e modo inteligente, não artificializando as proximidades e convergências e, quando localizadas as singularidades, próprias do percurso político (exílio) existencial ou intelectual (luta por libertação/emancipação), no plano das significações (de(s)colonização/conscientização), mas nas aproximações das grandes categorias que organizam a práxis de seus autores de referência.

Veja como a Autora estrutura, nesse aspecto, isto é, à luz de categorias, o seu procedimento de investigação (p. 27):

Esse procedimento de investigação permitiu identificar no pensamento freireano e dusseliano as categorias“libertação”, “conscientização”, “práxis”, “educação”, “descolonial”, contextualizando-as aos “direitos humanos”, e interligadas a outras, como “história”, “política”, “economia”, “classe”, “gênero”, “etnia”, “pobres” e “não-pobres”, e distinguindo concepções em comum entre ambos os autores sobre visão de mundo e suas contribuições para a construção de uma nova práxis da libertação para enfrentar os padrões hierárquicos, violentos e opressores que atuam a serviço da desumanização da vida, conforme ficou demonstrado nos capítulos que conformam esta tese, além das considerações finais. Não se trata, portanto, de uma visão comparativa entre os dois autores, mas um diálogo, um encontro entre eles, para compreender no pensamento de ambos a teoria-prática de um processo libertador.

No desenvolvimento da tese, busquei estruturá-la de maneira a uma melhor interpretação e compreensão dos postulados que nortearam a obra de Paulo Freire e de Enrique Dussel no que diz respeito à práxis libertadora, na qual, procurei alcançar objetivamente a riqueza e a intencionalidade de ambos os autores estabelecendo uma leitura que distingue e ao mesmo tempo entrelaça o tema principal em temáticas reflexivas e críticas acerca de seu sentido.

Disso cuida a Tese. Em seu desenvolvimento a Autora procurou intricar os postulados trazidos das obras de Paulo Freire e de Enrique Dussel – considerando a relevante bibliografia não direta mas que se complementa em seus seguidores – tendo como fio condutor a categoria práxis libertadora, com a qual, ao modo de chave de leitura, distingue e ao mesmo tempo entrelaça o tema principal em temáticas reflexivas e críticas acerca de seu sentido:

No capítulo inicial, Essencialmente humano: a existência que aponta caminhos a percorrer, a tese investiga a trajetória intelectual, sem, no entanto, seguir uma ordem cronológica, de Paulo Freire e de Enrique Dussel. Procuro demonstrar que, em grande parte, contextos vividos em experiências pessoais determinaram a construção e a evolução do pensamento desses autores. O capítulo sintetiza e explicita a leitura e a reflexão de ambos sobre um esperançar histórico-concreto, segundo a compreensão da pedagogia dos sonhos possíveis, do acordar da consciência, em Paulo Freire, e de uma filosofia da libertação, articulando uma práxis que possibilite a utopia de uma nova ordem, em Enrique Dussel, como base para o processo libertador, lembrando que Dussel pensou uma ética da libertação a partir da realidade filosófica da América Latina, em um cenário de dependência tanto de saberes quanto de poderes. Este capítulo foi destinado ainda à exposição de histórias vividas e de uma práxis que convidam à reflexão sobre caminhos a se realizar no esperançar de uma vida em dignidade, esquadrinhando a contribuição de ambos os autores em seus conceitos centrais e fundantes desde uma pedagógica que liberta às denúncias de um vergonhoso abismo entre pobres e ricos, entre incluídos e excluídos e à convocação de uma práxis crítica e libertadora.

A seguir, em O pensamento descolonial e a busca por novos paradigmas de libertação, a pesquisa se desenvolveu em face da crítica à colonialidade e ao colonialismo, procurando contextualizar o tema com o pensamento elaborado por Paulo Freire e por Enrique Dussel no tocante às possibilidades de uma reflexão descolonial acerca dos direitos dos povos e às suas críticas ao sistema do capital, muito bem pontuadas em suas obras. Este capítulo se dedica também a analisar e a contextualizar o pensamento descolonial, com vistas à superação do sistema de dominação e de opressão, amparado em outros autores que se dedicaram ao tema. A intenção é a de iluminar o debate e a reflexão que molduram essa linha de pensamento e de crítica, bem como a de apresentar um ferramental teórico capaz de compreender as relações e conceitos nas críticas existentes ao conhecimento dominador eurocêntrico, que se reivindica universal, como estratégia para a superação da dependência política e de pensamento que dificulta o exercício da liberdade em vários âmbitos.

No terceiro capítulo, Ética e dignidade: um olhar à luz dos direitos humanos, trago as inquietações que permeiam o debate sobre os direitos humanos desde suas origens com a perspectiva do reconhecimento, do respeito e da garantia das autonomias, as identidades e as dignidades dos seres humanos. Nesta parte da pesquisa, procurei problematizar o horizonte da libertação dos seres humanos com o desafio de situar os direitos humanos sobretudo no campo político em seu propósito transformador e libertador. Busquei evidenciar as indagações e reflexões que emergiram da tessitura teórico-conceitual da pedagógica da libertação em Paulo Freire e em Enrique Dussel associada à teoria crítica dos direitos humanos, com a intenção de melhor posicionar o tema da luta por direitos humanos dentro da teoria da práxis libertadora e concreta dos movimentos sociais populares.

A partir desse terceiro capítulo, sobretudo, até porque é nele que a Autora, juntamente com outras referências com as quais tenho compartilhado e estabelecido um carrefour de temas e questões para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos (indicado na bibliografia ESCRIVÃO FILHO, Antonio e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2019), é que me sinto convocado para discutir a sua tese.

Com efeito, a Autora me inclui no conjunto de formuladores que ela considera contribuírem para “o avanço da percepção humanista dos direitos humanos” (p. 230). Ela me localiza no mesmo arco de incidência de um pensamento crítico que afere os direitos humanos em seu momento instituinte, resultado de lutas por reconhecimento da dignidade material do humano que se realiza como experiência de emancipação. Me coloca em boa companhia: o próprio Escrivão Filho, Sanchez Rubio e, principalmente Herrera Flores, firmes na disposição de reconhecer teoricamente as invenções e re-invenções dos achados emancipatórios do humano que se realizam na rua.

Por isso a atenção, com Maria da Glória Gohn, Marilena Chauí, Roberto Lyra Filho, da emergência dos sujeitos que se instalam nos movimentos sociais populares que lutam por democracia, justiça, direitos e dignidade. Com eles, no que coincide com a minha própria consideração, Inês constata a instalação, nos movimentos sociais e populares propriamente ditos e não em qualquer mobilização hoje também ativada pelas posições anti-povo, de sujeitos coletivos (p. 15; 234).

Na leitura de Inês Ulhôa, essa subjetividade ativa se delinea em várias manifestações que, aponta caminhos a percorrer – que esperança, mas numa espera ativa, tal o Jasão de Gota d’Água (para dar sentido à epígrafe que lançou na p. 29), e os designa – sujeitos subalternativados e oprimidos, sujeito consciente, sujeito social, sujeito político, sujeito povo, sujeitos populares, sujeito livre, sujeito revolucionário capaz de operar transformações, sujeitos históricos em Paulo Freire e em Enrique Dussel, atores intersubjetivos, até se substantivarem em seu processo de emancipação, como povo: sujeito sociopolítico de libertação (p. 15, 16, 18, 20, 29, 56, 208, 213, 214, 221, 222, 226, 230, 228, 239 e passim).

Nesse processo, inconcluso e não finalístico, se engendram os direitos humanos e sua dinâmica emergente e libertadora (p. 247). Direitos Humanos como resultantes do impulso instituinte, histórico, de humanização, que se realizam como disputa de um futuro [que] não está definido, está aberto e, portanto, em disputa, cabendo a esse processo de emancipação e de humanização se colocar nessa disputa. Ele observa que são as lutas sociais que produzem isso (p. 230). Conferir sobre o conceito: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023 – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/).

Processo que se realiza de modo instituinte na rua e no emaranhado do complexo de intersubjetividades a que remete a metáfora espacial, tal como posta em O Direito Achado na Rua (para todas as incidências em O Direito Achado na Rua – volume 10. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Antonio Sergio Escrivão Filho, Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Clarissa Machado de Azevedo Vaz, Eduardo Xavier Lemos, Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas, Renata Carolina Corrêa Vieira, Vanessa Negrini. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021, 728 p. Link para Acesso Livre na Plataforma de Livros Digitais da Editora da UnB: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/116/106/467-1. Para mais: https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/).

Em todo caso, para seguir o percurso da Tese, na espacialidade que se constitui como lugares de cidadania, à “maneira de pensar de Milton Santos [que] vai ao encontro das ideias de Paulo Freire. Ambos pensam o mundo levando em consideração a historicidade, o espaço, o tempo em relação às práticas sociais. Para eles, a realidade é consequência direta das ações dos seres humanos durante o processo histórico, por isso a importância da consciência dos sujeitos, que se tornam sujeitos históricos a partir da práxis libertadora. Para tanto, o conhecimento, o saber construído pelo envolvimento e descoberta, é fundamental para se articular práticas contra-hegemônicas e criar possibilidades de participar da história como sujeito, com responsabilidade e senso de cidadania” (p. 237).

Assim, a rua, na configuração sensível da poesia, como em Cassiano Ricardo (A Rua. Em Um dia depois do outro, 1944/1946 (1947). In: RICARDO, Cassiano. Poesias completas. Pref. Tristão de Athayde. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. p.26):

A Rua

Bem sei que, muitas vezes,

o único remédio

é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,

a dívida, o divertimento,

o pedido de emprego, ou a própria alegria.

A esperança é também uma forma

de contínuo adiamento.

Sei que é preciso prestigiar a esperança,

numa sala de espera.

Mas sei também que espera significa luta e não,

[apenas,

esperança sentada.

Não abdicação diante da vida.

A esperança

nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da

[espera.

Nunca é a figura de mulher

do quadro antigo.

Sentada, dando milho aos pombos.

Estou atento à advertência feita na arguição pelo Professor Pedro Demo sobre o significado às vezes não edificante do humano como paradigma em face do que representa a vida bem vivida e plena, na qual se constitui o propriamente humano. Mas, há modos de considerar o humano. Com Ailton Krenak, penso que a sua ideia de resgatar a casa comum, recuperar a corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres. É para essa vida que Krenak nos convida a exercitar a condição para adiar o fim do mundo.

Um outro modo de pensar o humano, como busca de alternativa para o reencontro das humanidades. Assim, diz ele, “quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia” (p. 51-52) – https://estadodedireito.com.br/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/.

Inês remete a Paulo Freire, algo nessa mesma forma, dando-se conta de que tanto a humanização quanto a desumanização, dentro da história, em um contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens, como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão, confiante que, diante dessas “possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores” (p. 231).

Para meu próprio discernimento, com Paulo Freire, é o que retiro como testamento do grande educador em sua presença no mundo. De certo modo, tendo contribuído a convite de Nita Freire para a obra de testemunho que ela organizou (Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos. Ana Maria Araújo Freire (org). Vários Autores. São Paulo: 1ª Ed. Editora Paz & Terra, 2021), acabei por antecipar um juízo que retomo para aplicar em minha leitura da Tese de Maria Inês Adjuto Ulhôa.

Com efeito, não só em meu texto – Direitos Humanos e Educação Libertadora em Paulo Freire – mas na recensão que publiquei sobre a obra, entendo que a chave de leitura que Paulo Freire indica para extrair significado da obra está, em texto que ele justifica o seu título: “Direitos Humanos e Educação Libertadora”, na extensão de uma concepção muitas vezes lançada em seus trabalhos, segundo a qual a educação não transforma o mundo, transforma as pessoas que transformam o mundo. Por isso, em sua justificativa, ele recupera essa chave: “A educação não é a chave, a alavanca, o instrumento para a transformação social. Ela não o é, precisamente porque poderia ser”. Explicitando: “É exatamente porque a educação se submete a limites que ela é eficaz…Se a educação pudesse tudo, não haveria por que falar nos limites dela. Mas constata-se, historicamente, que a educação não pode tudo. E é exatamente não podendo tudo que pode algumas coisa, e nesse poder alguma coisa se encontra a eficácia da educação. A questão que se coloca ao educador é saber qual é esse poder ser da educação, que é histórico, social e político”.

Por isso que na Apresentação, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire) situa a proposta filosófica de Paulo Freire na sua perspectiva de autonomia no sentido utópico de “um inédito viável de humanização”, que pôde ser orientado por uma gestão apta a traduzir a compreensão “ético-político-antropológica de uma epistemologia crítico-educativo-conscientizadora, que, em última instância, tem como ponto central a humanização de todos e todas”, portanto, um programa para “dignificar as gentes, as pessoas”, sendo assim, substantivamente, uma política de educação em e para os direitos humanos.

Isso o confirma Paulo Freire. A Educação em Direitos Humanos pressupõe “compreensão política, ideológica do professor” para se constituir em “educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, (que) é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder”. Em suma, “Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, (que) tem que ser abrangente, totalizante, (que) tem a ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver” (https://estadodedireito.com.br/testamento-da-presenca-de-paulo-freire-o-educador-do-brasil-depoimentos-e-testemunhos/).

Trata-se, assim, de uma apreensão que pode se encontrar em Paulo Freire, vale dizer, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.

Anoto que essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).

Além de tudo, a partir da consideração de Nita Freire, me deparar, com a surpresa, rica e inesperada, de constatar o modo como ela estabelece a relação entre Roberto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso em 03.02.2015): “Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia talvez fosse mais correto dizer … e fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo”.

Em arremate, tal como está nas Considerações finais da tese, Maria Inês Ulhôa traz a convicção, que ela partilha no trabalho, de ter podido ampliar o entendimento conduzido pelos dois pensadores em suas obras (Paulo Freire e Enrique Dussel), permitindo que pudesse ter pensado a práxis da libertação como projeto utópico de superação e, assim, apontar para a atualidade dessa pedagógica da libertação e conclamar o seu lugar e sua necessidade premente entre os povos oprimidos.

Com Dussel, na perspectiva de(s)colonial, mas, com Paulo Freire principalmente, pode-se ainda e mais que nunca, por em relevo a atualidade dessa pedagogia de libertação, para prevenir e orientar a ação política como práxis consciente e emancipatória.

De certo modo, eu divisava esse caminho a partir de leituras freireanas que inscrevem os direitos humanos como a materialidade pedagógica de uma educação libertadora. Em resenha que elaborei sobre Direitos Humanos e Educação Libertadora: Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire. Organização e Notas de Ana Maria Araújo Freire e Erasto Fortes Mendonça. 1ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019 – https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/, anoto essa possibilidade:

Num registro, que bem pode ser considerado uma avaliação inspirada no presente para aplicar-se ao futuro, esse nosso atual que abriu o obscurantismo político e pedagógico amordaçador, acovardado, militarizado, censurado, sem ideologia ou partido (quer dizer, com a pretensão ideológica exclusivista e partidariamente subjugadora), sobressai a autoreflexidade dos co-gestores da experiência democrática e emancipadora, num texto a seis maõs assinado por Luiza Erundina de Sousa, Paulo Reglus Neves Freire e Mario Sergio Cortella. Eles dão conta de que “Nesse processo, a autonomia da escola tem se construído, as unidades de ensino deixam de ser meros desaguadouros das políticas centrais, o orçamento e o planejamento deixam de ser assuntos apenas de técnicos e especialistas e se explicitam, progressivamente, as prioridades, as necessidades de recursos, as dificuldades, os interesses de vários grupos sociais e as limitações do município enquanto esfera de poder, sendo, por isso, um excelente instrumento de construção e de afirmação da cidadania” (p. 347).

É esse processo, diz Nair Heloisa Bicalho de Sousa, motivada pela leitura de Nita Freire em aludir à “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017, p. 69-77), uma base consistente, apta a constituir um programa de educação em e para os direitos humanos e a orientar a “construção de saberes, práticas pedagógicas e metodologias participativas da educação em direitos humanos” (cf. Retrospectiva Histórica e Concepções da Educação em e para os Direitos Humanos. In PULINO, Lúcia Helena Zabotto et al. (Orgs). Educação em e para os Direitos Humanos. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos volume II. Brasília: Paralelo 15, 2016, p. 73-124)

A Tese de Maria Inês Adjuto Ulhôa traz conteúdo e abre opções teórico-políticas para nutrir esse programa e enriquece o repositório crítico de contribuições para a educação em e para os direitos humanos que distinguem o Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília.

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