Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Teve início nesta semana (5/11) audiência pública, promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o fim da isenção fiscal para os agrotóxicos no Brasil. Esse procedimento é resultado de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 5553, promovida pelo PSOL, que questiona esse benefício para o uso de veneno.
Na perspectiva do proponente da ação, mas também de amplos segmentos da sociedade, os agrotóxicos têm um impacto direto sobre a biodiversidade, poluindo águas, ameaçando e prejudicando a vida silvestre, as comunidades e, em escala todos que consomem ou se acham no raio de aplicação e uso dessas substâncias nocivas, ao meio ambiente, à saúde pública e à economia.
A isenção fiscal representa uma sinalização de descaso a esses valores e uma rendição às injunções empresariais, na indústria e no agronegócio. Um benefício que já vem de quase 30 anos, conhecido como “bolsa-agrotóxicos”.
Na sua extensão, ou seja, no que concerne às aplicações orçamentárias para financiar políticas públicas e sociais de interesse popular, com a isenção, a União deixa de arrecadar quase R$ 13 bilhões, considerando a comercialização de agrotóxicos no ano de 2021.
A ação direta de inconstitucionalidade visa a estancar um privilégio que não se justifica, dos pontos de vista econômico e ético, considerando que a resultante acumuladora desse negócio, acaba afetando a saúde da população e sabotando formas mais saudáveis, solidárias e inclusivas de produção, sobretudo a produção alimentar que, além de uma agregação de valor mais solidária (agricultura familiar, cooperativada, por exemplo), realiza o fundamento da segurança alimentar e o direito humano fundamental à alimentação.
Essa é uma trincheira difícil de ser tomada. Fora os aspectos não necessariamente aceitáveis do ponto de vista ético, o interesse dos negócios tem sabido esgrimir fundamentos ponderáveis, nos centros globais de controle político e financeiro, mas também em países dependentes das diretrizes desses centos cada vez mais intensamente na linha negacionista e por meio de um lobby legislativo e acadêmico
Em matéria assinada por Hélen Freitas, publicada https://reporterbrasil.org.br/2024/02/ibama-reavalia-agrotoxico-mortal-abelhas-tiametoxam/, com o título – Agro x ciência: indústria faz lobby por agrotóxico letal a abelhas, essa estratégia é descrita para mostrar como fabricantes procuram incidir no sistema legislativo, no judiciário e de controle administrativo, coletando e documentando evidências científicas, a seu jeito enviesado, para garantir vendas e distribuição no Brasil, de agrotóxicos, afetando o controle de pragas em diversas lavouras, adiando o quanto possa os processos de avaliação e calçando a tramitação de leis e regulamentos.
Com o apoio de associações do agronegócio, de frentes parlamentares agropecuárias ou ruralistas, no caso reportado, a matéria identifica, com esses vieses, mais de 30 estudos ao processo de reavaliação, na tentativa de comprovar a segurança do produto, a inexistência de riscos, com as orientações desses estudos e de adequada cpacitação.
Numa outra matéria, publicada na respeitada página do Instituto Humanitas, da Unisinos, em São Leopoldo – https://www.ihu.unisinos.br/645575-petroleiras-promovem-negacionismo-soft-patrocinando-influencers-de-ciencia -, a partir de uma entrevista especial com Caetano Kayuna Sordi, esse professor de antropologia traz conceitos e pautas que colocam animais e sociedade em foco, seja em embate, seja em acordo (Animais e sociedade: domesticação, conflito de cosmologias e direitos), com base em levantamento que identifica a divulgação por petrolíferas, no Brasil, com a manifestação de influencers de ciência, propagando “conteúdos que variam desde um minidocumentário sobre como funciona a extração de combustíveis fósseis na floresta amazônica, com “explicações” sobre como isso pode acontecer de forma “sustentável”, até materiais que destacam a “segurança e confiabilidade” da indústria de combustíveis fósseis no Brasil”. Para o professor, “o envolvimento de influencers de ciência faz parte da estratégia publicitária das empresas de energia fóssil para validar sua “licença social” em tempos de questionamentos crescentes sobre seu papel inequívoco na crise climática atual. A negação pura e simples, como era comum no passado, ficou inviável agora por conta da intensificação de eventos climáticos extremos. Assim, o negacionismo avança em uma abordagem mais insidiosa – e as vozes científicas têm um peso importante nessa validação”.
E a estratégia visa a um fim, estabelecer credibilidade, conforme, na matéria explica Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE): “A credibilidade dos divulgadores [científicos] junto aos setores mais progressistas da sociedade e ao segmento que ouve mais a ciência é muito grande. Capturar esse segmento, neutralizá-lo e cooptá-lo, seja qual for o grau, é de interesse para essas empresas. Esse é o novo jogo, é o negacionismo soft. Esse negacionismo soft pode ser mais perigoso do que a versão histérica do passado, já que este só mobiliza a bolha extremista, enquanto aquele pode seduzir e neutralizar uma parcela mais ampla da sociedade – ‘justamente a parcela que poderia mobilizar pela causa climática’”.
Agora, a situação mais impactante. Matéria do Reporter Brasil –https://reporterbrasil.org.br/2024/10/agronegocio-lobby-livros-didaticos/#:~:text=Agroneg%C3%B3cio%20financia%20lobby,Leia%20tamb%C3%A9m – Agronegócio financia lobby para patrulhar livros didáticos.
Segundo a matéria de Hélen Freitas | Edição Paula Bianchi e Diego Junqueira, organizações fundadas ou aliadas da indústria de agrotóxicos ou do agronegócio “têm fechado parceria com a Universidade de São Paulo (USP), tem portas abertas nas secretarias de Educação e de Agricultura do estado e mantém diálogos com a cúpula do Congresso, em Brasília, na tentativa de influenciar o novo Plano Nacional de Educação (PNE) – que vai estabelecer as diretrizes da educação na próxima década”. E também com governos estaduais, como o do Estado de São Paulo, com aproximações que passam por Secretarias de Educação e Secretarias de Agricultura, a pretexto de buscar “a atualização do material escolar com base em conteúdo científico, equilibrado e que gere perspectivas positivas para os estudantes”.
Em conjunto com a USP, por exemplo, foi criada a “Agroteca”, uma biblioteca virtual com publicações sobre o agronegócio. Nela, é possível encontrar conteúdos que negam que o Brasil seja o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.
O governo paulista foi o “primeiro governo de estado que passou a adaptar os seus materiais próprios”, acessível, por parcerias, a “uma estratégia ideológica de disputa de espaço ao criar campanhas afirmando que os livros didáticos e a escola estão de costas para o agronegócio”. Um horizonte que permite divisar uma disputa sobre o plano nacional de educação.
De fato, ampliando influência ideológica sobre o sistema privado de educação, representantes desses segmentos, confluem para os interesses do agronegócio e da indústria dos agrotóxicos, intensificando uma agenda federal, a partir do Congresso, principalmente na Câmara dos Deputados:
Além dos encontros com Pacheco e Lira, reuniu-se com o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), presidente da Comissão de Educação da Câmara. Em março, o deputado apresentou os resultados de um estudo da Donme, que avaliou as menções ao agro no material escolar, durante uma reunião da Frente Parlamentar Agropecuária.
O deputado corroborou a visão da associação de que os livros didáticos supostamente trazem uma visão distorcida do agro, e prometeu pautar a Comissão de Educação. “Afinal de contas, o agro é que sustenta, e é locomotiva deste país”, justificou.
Já em abril, quando o Senado realizou uma sessão temática para debater o PNE, a Donme indicou vários nomes para discursar. A sessão foi solicitada pela senadora Damares Alvares (Republicanos-DF) a pedido da associação, segundo apurou a Repórter Brasil.
O PNE, porém, só deve avançar quando for analisado o requerimento do deputado federal Rafael Brito (MDB-AL) e de outros 13 parlamentares, para que seja criada uma comissão mista de análise do plano, composta por deputados e senadores. Desde julho o pedido está parado na Câmara.
Em encontros com os presidentes da Câmara Arthur Lira e do Senado Rodrigo Pacheco, a De Olho no Material Escolar apresenta suas propostas para o Plano Nacional da Educação.
Tudo isso caracteriza o que o MST, que pratica em seus assentamentos e pelas cooperativas que organizam o seu sistema de produção, denuncia tal como tem denominado, um lobby mortal da indústria dos agrotóxicos (https://mst.org.br/2024/08/05/o-lobby-mortal-da-industria-dos-agrotoxicos/). A advertência do MST, como se pode ver pela matéria, está em abrir a atenção para estudos mostrando que a quantidade de pesticidas utilizada nas fazendas (isso nos Estados Unidos) estava fortemente associada à incidência de muitos tipos de cânceres — não apenas para os agricultores e suas famílias, mas para comunidades inteiras, uma constatação que se opõe ao lobby significativo da indústria de pesticidas com a intenção de limitar sua responsabilidade por processos judiciais relacionados aos impactos na saúde provocados por seus produtos.
Vale aferir a cuidadosa matéria que o Instituto Humanitas divulgou: https://www.ihu.unisinos.br/645646-como-a-industria-usa-a-ciencia-para-defender-uso-de-agrotoxicos.
Bem fundamentada e apoiada em fontes convincentes, a autora da matéria Julia Dolce, Repóter Brasil, 04-11-2024, identifica uma organização que se caracteriza como científica no interesse do sistema agro sustentável, constituída por “pesquisadores ligados a universidades públicas e privadas e se apresenta como voz da ciência pregando a sustentabilidade na agricultura. Na prática, o grupo defende argumentos comuns de lideranças do agro”. E, “apesar de diversos estudos e reportagens apontarem os riscos à saúde e ao meio ambiente em razão do alto consumo de pesticidas, um grupo de professores de universidades públicas e privadas de São Paulo lidera uma instituição que, com apoio de fabricantes de agrotóxicos, atua para promover uma imagem positiva do setor. Por meio da publicação de artigos, promoção de palestras e participação em audiências no Congresso Nacional e em assembleias legislativas, se apresenta como uma voz da ciência que prega a sustentabilidade na agricultura”.
Num período em que o Brasil bateu recordes de consumo de pesticidas, enquanto outros países tentam reduzir o uso; atingiu patamares insuportáveis de devastação e agressão a eco-sistemas e a comunidades que não se movimentam pela lógica da apropriação capitalista, esse é um disfarce que pode encobrir uma política nefasta para o social.
Uma situação-limite que afeta a qualificação hoje do debate sobre o papel das universidades, especialmente as universidades públicas, no sentido constitucional de que se investem enquanto bem social fora de mercado -https://estadodedireito.com.br/descolonizar-la-universidad/.
Mas que, em um contexto neoliberal ativa grupos e compreensões internas seduzidas pelo empreendedorismo provocado por um capitalismo interno, mas cujo caráter inteiramente rendido à lógica privatizante e mercadorizadora do projeto econômico-político que está por trás, leva a delirar do ethos público universitário que marca o sentido social e político da universidade como condição estratégica para o desenvolvimento soberano do país (https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/590985-future-se-valoriza-o-privado-e-nao-acena-para-o-ethos-academico-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior).
Uma advertência, pois, que precisa ser levada à consideração, no Brasil, do Supremo Tribunal Federal, em face da audiência que instalou para debater essa grave questão. Mas um STF que não se deixe enredar pela agenda neoliberal (https://estadodedireito.com.br/supremo-tribunal-federal-e-neoliberalismo/).
E que, a partir dessa agenda, se deixe encantar com a sua pretensa racionalidade, incidindo no que minha colega professora Talita Rampin, identifica como uma “outra agenda objeto de diversas influências internacionais”, muitas conferidas nos protocolos de financiamento dos Sistemas de Justiça pelo Banco Mundial, não apenas para os interesses de “estabilização dos negócios no período neodesenvolvimentista” mas para exercitar pressões sobre os tribunais brasileiros (cf. RAMPIN, Talita Tatiana Dias. Estudo sobre a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina. Tese de Doutorado em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2018). Mais que nunca é preciso procurar o gato escondido que deixou de fora o rabo. O rótulo de cientificidade não pode ser um diversionismo para ocultar a gravidade letal que muitos estudos, em boa ou má consciência, acabam por disfarçar
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
As opiniões dos autores de artigos não refletem, necessariamente, o pensamento do Jornal Brasil Popular, sendo de total responsabilidade do próprio autor as informações, os juízos de valor e os conceitos descritos no texto.