AUTOANISTIA: uma violência inconstitucional e inconvencionaldo delinquente a fim gerar sua impunidade

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

O tema se faz urgente porque foi publicado para consulta pública, nos termos regimentais, o PROJETO DE LEI nº 5064 de 2023 (PL 5064/2023), que concede anistia aos acusados e condenados pelos crimes definidos nos arts. 359-L e 359-M do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, em razão das manifestações ocorridas em Brasília, na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023.

A autoria da proposição é do General-Senador Hamilton Mourão (REPUBLICANOS/RS), sabidamente, basta conferir seus atos e pronunciamentos, um possível beneficiário futuro a depender do curso das investigações e dos indiciamentos, assim como de seu anterior superior no governo, a quem serviu e escudou com fidelidade.

Curiosamente o projeto exclui da anistia os executores dos delitos e serve de escapismo complacente, aos que dele se beneficiam ou se beneficiarão. É a lição de Maquiavel: “para os amigos tudo; para os inimigos a lei”. Diz o projeto: “Esta Lei não alcança as acusações e as condenações pelos crimes de dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado e associação criminosa, porventura ocorridas em razão das manifestações indicadas no caput deste artigo”.

A justificativa do projeto é um acinte à dignidade da política e uma afronta à Justiça: “As manifestações ocorridas no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, constituem conduta deplorável, que merece nossa reprovação, pelo nítido caráter antidemocrático do movimento. Todavia, não se pode apenar indistintamente aqueles manifestantes, pois a maioria não agiu em comunhão de desígnios. Ocorre que os órgãos de persecução penal não têm conseguido individualizar as condutas praticadas por cada um dos manifestantes. Diante dessa realidade, é inconcebível que sejam acusados e condenados indistintamente por crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito”.

Simultaneamente, uma confissão e uma mobilização, sem justa causa e sem base constitucional ou convencional ((sistema internacional de direitos, especialmente Corte Interamericana de Direitos Humanos), para impor silêncio perpétuo à delinquência que tolerou.

Retiro a expressão silêncio perpétuo, de tese que estou lendo para defesa ainda neste mês de setembro (Mauro Almeida Noleto. Silêncio Perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas).Faculdade de Direito da UnB. Há um recorte temporal na tese, para cumprir cronograma de apresentação do trabalho. Mas a consideração do autor, na tese, é atemporal: “ao comandar reiterada e sucessivamente o esquecimento de um passado de conflitos políticos e de repressão violenta (os ‘crimes conexos’, as anistias editadas em momentos de transição de regimes no Brasil acabaram por acomodar e camuflar a presença (ou a ameaça) da exceção e do arbítrio na ordem constitucional”.

Já tive ensejo, aqui neste espaço de opinião (Jornal Brasil Popular – Coluna O Direito Achado na Rua), de abordar esse tema: https://brasilpopular.com/artigo-repudio-culpabilidade-justica-e-responsabilizacao/. Lembrei estarem certos aqueles que sustentam que é hora de falar em punição e não em pacificação, como o faz Milly Lacombe, colunista do UOL (https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/11/05/e-hora-de-falar-em-punicao-e-nao-em-pacificacao.htm).

Pois, na linha da melhor orientação da chamada justiça de transição, acentua que repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização, são marcas de memória para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesam a humanidade, o país e o povo (cf. livro que co-organizei: Série O Direito Achado na Rua, vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf).

Vou ao texto de Lacombe: “Uma das mais eficazes ferramentas do capitalismo, especialmente em sua versão neoliberal, é a capacidade de inverter todas as pautas. Antes mesmo de Lula sair vencedor da eleição já escutávamos intelectuais liberais falando em anistia e em pacificação. As mesmas pessoas que passaram quatro anos numa boa vendo Bolsonaro afundar o Brasil em violências de todos os tipos, da lentidão para comprar vacinas até a congratulação a policiais que se comportavam como milicianos passando pelos inúmeros sigilos de 100 anos em qualquer suspeita de malfeito ou corrupção, agora pedem que Lula e sua turma sejam os pacificadores. Querem que aqueles que passaram quatro anos sendo abusados sejam os pacificadores. Não haverá pacificação sem punição. Não haverá pacificação sem a construção de um espaço de memória, de investigações e confrontos a respeito de um passado nem tão distante como o da ditadura. Agora é a hora de colocar todo esse horror na mesa e fazer uma autópsia do que passamos. Investigar, processar, punir”.

O que se pode dizer do projeto é que o gato pode se esconder, mas seu rabo comprido sempre ficará de fora. Pois, apesar da astúcia, é inconstitucional e inconvencional (sistema internacional de direitos), medidas de autoanistia para infrações que são imprescritíveis por sua ofensividade, tortura entre elas, também será inconstitucional e inconvencional qualquer medida que tenha por fim gerar impunidade, tal qual a espúria iniciativa dessa proposta.

O sistema internacional de proteção aos direitos humanos já consagrou com fundamento no conceito de jus cogens, a aplicação do princípio da jurisdição universal para responsabilizar a prática de crimes contra a humanidade. Foi assim que o ditador chileno Augusto Pinochet, estando em território inglês, foi submetido a julgamento a partir de jurisdição nacional (Espanha), e nesses termos sentenciado, e já reverteu, por violarem as convenções internacionais sobre o tema, essa afronta ao direito internacional dos povos.

Também como já afirmei neste espaço – https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/ – estou seguro de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional. E isso significa estar atento às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis.

Especificamente sobre o monitoramento que exercita em relação ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu último relatório (2021), ofereceu recomendações sobre ações que tendem a fragilizar e até extinguir esse sistema, como o enfraquecimento dos espaços de participação democrática, indicando, entre as recomendações, a necessidade de “investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os autores de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes inaplicáveis a crimes contra a humanidade”.

Aguarda-se a nomeação de um novo ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, em face da exoneração do atual titular. Será uma ministra, possivelmente negra (são as especulações em curso), uma boa categorização, pois sabemos que há perfis assim qualificados, nos espaços políticos e acadêmicos, como sabemos os que exerceram o reitorado em nossas universidades federais.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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