Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Raquel Pereira Guimarães, Poesia para o tempo do fim. Centelha de fé em meio ao caos. Porto Alegre: Editora Lumina, 2024
É a terceira vez, em meados do ano que recebo de alunos, da minha disciplina de regência na graduação em Direito na UnB (Pesquisa Jurídica), convite para prefaciar ou apresentar suas elaborações literárias.
Com O Frio das Minhas Cinzas de Aracê e Maratus, pseudônimos de Marcos Nasaret (São Paulo: Editora Minimalismos), já me deparei com a revelação na persona circunspecta do pesquisador na Academia, a alma de um artista, no plano teórico, e de um poeta, no sensível.
Logo Eduardo Martínez, com 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho (Porto Alegre: Joanin Editora), já sem surpresa, apesar do título, os 57 contos e crônicas (acho que a orelha que redigi para o livro acabou por servir de sugestão para o título da obra).
Agora me deparo com esse livro de Raquel Pereira Guimarães, ela também minha aluna e monitora na disciplina Pesquisa Jurídica na UnB – Poesia para o tempo do fim. Centelha de fé em meio ao caos, elegante publicação da Editora Lumina, de Porto Alegre, muito valorizada pela belíssima ilustração de Gabriela Carmona, também aluna de arquitetura na UnB e já se revelando uma artista de alto nível. O livro terá um primeiro lançamento no dia 24 de agosto, das 17.00 horas às 20.00hs. no Sebinho Cultura e Gastronomia, na 406 Norte, em Brasília. A Autora me diz que fará também um lançamento na Faculdade de Direito, da UnB.
Poesia para o tempo do fim não é o primeiro livro de Raquel. Conforme ela informa no prefácio ela já havia publicado “Minha vida em uma caderneta”, reunindo poemas que escreveu desde a infância até os seus 24 anos, um exercício sobre a sua própria subjetividade.Em Poesia para o tempo do fim, diz ela, “procurei focar na obra de Deus e na minha vivência enquanto cristã. A obra é composta por 144 poemas de 12 versos voltados para a literatura cristã. Seu título faz referência ao tema-chave, os acontecimentos descritos em Apocalipse. Muitas vezes me inspirei em louvores ou trechos bíblicos, fato que o leitor notará ao longo de todo o livro, mas o foco principal é realmente a exposição dos meus dilemas pessoais à luz do que Deus me ensina a cada dia. A intenção, portanto, é mostrar ao leitor como Deus age em minha vida tanto nos momentos bons, quanto nos dias maus. Necessário se faz também preparar os leitores para os acontecimentos futuros. Enquanto no primeiro livro os poemas versavam sobre os mais diversos temas e apresentavam uma visão meramente pessoal, no segundo livro procurei focar na obra de Deus e na minha vivência enquanto cristã”.
Intuo que esse movimento ensimesmado traduz o entusiasmo no melhor sentido epifânico – (entusiasmo em seu significado helênico “ter deus dentro de si”) – por isso a reminiscência apocalíptica, não apenas um modelo para a estrutura poética mas, conforme ela própria me confidenciou, uma condição angustiante que se abateu sobre todos nós na conjuntura necropolítica, escatológica da pandemia do Covid-19. Isso se expressa no sub-título da obra: centelha de fé em meio ao caos.
Com efeito, o distanciamento social imposto pela pandemia, obrigou um necessário recolhimento, e os que não se rendem ao imobilismo depressivo, mas que sabem exercitar suas angústias, ao invés de a elas sucumbir, acabam construindo no isolamento um campo fecundo para a criatividade e para a reflexão em profundidade.
Diz-se que William Shakespeare escreveu o Rei Lear, Macbeth e Antônio e Cleópatra, em quarentena, ou pelos menos para vencer as dificuldades da ocasião, ao tempo da peste bubônica que se alastrou em Londres, por volta dos 1606 quando, em conformidade com as posturas os teatros foram fechados, incluindo o The King’s Men, do qual era ator e acionista.
Outro dramaturgo, seu contemporâneo, Thomas Nashe, também durante a febre bubônica que atingiu Londres em 1592, retirou-se para o interior da Inglaterra para evitar infecções. Data desse período a peça Summers’ Last Will and Testament, na qual expõe suas experiências durante a pandemia.
Nessa mesma época, um pouco mais à frente, em 1665, Isaac Newton, também em quarentena retirado de Cambridge e confinado na propriedade da família em Woolsthorpe Manor, teria, nessa ocasião, esboçado a Teoria da Gravidade. Nesse período, um quarto da população de Londres morreu por causa da doença.
Antes deles, o escritor e poeta florentino Giovanni Boccaccio foi pessoalmente afetado pela peste bubônica. Quando atingiu Florença em 1348, seu pai e madrasta sucumbiram à doença. Boccacio sobreviveu ao surto fugindo da cidade e se refugiando na zona rural da Toscana. O Decamerão conta as estórias de amigos que vivenciaram a quarentena durante a peste.
Outro artista, Edvard Munch, pintor do célebre quadro O Grito, não só testemunhou, mas sofreu a pandemia da gripe espanhola, ao contrair a doença no início de 1919, na Noruega. O seu autorretrato figura-o com as feições ainda abatidas, à frente do leito de doente.
Ninguém atravessa uma condição tão avassaladora e permanece insensível ao que ela interpela, no que somos e no que vivenciamos, mesmo após o amainar da condição tormentosa. Não será extravagante supor que a voz de Próspero, em A Tempestade, (Ato IV), de Shakspeare, não carregue esse sentido de uma reflexão sobre a vida humana, tanto quanto sobre os escombros de um mundo em necessária transformação. Algo que não escapou à observação de Marx e sua aplicação depois, no manifesto para um mundo futuro.
Aqui está a fala de Próspero, na tradução de Bárbara Heliodora (Nova Aguilar, 2006), com grifos meus, em negrito e em itálico:
“Próspero [dirigindo-se a Ferdinando] – Você parece, meu filho, consternado, como se estivesse preso de algum temor. Anime-se, senhor. Nossa diversão chegou ao fim. Esses nossos atores, como lhe antecipei, eram todos espíritos e dissolveram-se no ar, em pleno ar, e, tal qual a construção infundada dessa visão, as torres, cujos topos deixam-se cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes, e o próprio Globo, grandioso, e também todos os que nele aqui estão e todos os que o receberem por herança se esvanecerão, nada deixará para trás um sinal, um vestígio.”.
Ainda que, à força de chamados de solidariedade, de fraternidade, de sororidade, seja possível tecer coletivos de comunhão. Com o semestre letivo suspenso em minha universidade preocupo-me deixar à deriva, no limbo angustiante que fragiliza estudantes novatos, meus alunos de primeiro ano da turma de Pesquisa Jurídica. Propus então converter o espaço pedagógico formal num espaço virtual crítico solidário, mantendo um ambiente voluntário de impressões e diálogo sobre a agenda desse tempo. Entre as atividades, inspirado na criatividade dos personagens que lembrei acima, sugeri que escrevessem “Cartas da Quarentena”. Não foi surpresa para mim que esses jovens logo preenchessem esse enjoo de existência com suas cogitações num exercício de enfrentamento às incertezas. Selecionei algumas dessas cartas que estão sendo publicadas no Blog do Coletivo O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com).
Há aí, registros sensíveis, percucientes, confiantes na reconstrução de novos possíveis futuros. Um excerto, de uma dessas cartas, dirigida à “prezada comunidade”: Carta de Daniela Rocha. Brasília, 30 de março de 2020. Prezada comunidade,… É sabido por todos que o momento atual não é nada reconfortante. Correm soltas notícias de pandemia, crises econômicas, transmissões em massa, e tantos outros infortúnios por aí. Apesar de ser um direito, nem todos podem ficar reclusos na segurança de seu lar e acabam tendo que sair às ruas diariamente, sem saber ao certo se voltarão plenamente saudáveis ao fim do dia. E é a partir dessa perspectiva que desejo iniciar minha carta aos senhores e senhoras. A partir da perspectiva daqueles que não tem garantidos os Direitos que são seus por definição. A partir da triste realidade da desigualdade presente não só no contexto brasileiro, mas também no contexto internacional. É o momento ideal para pensar numa reestruturação ética e social da realidade que nos cerca….”. Futuros são ainda possíveis.
A organizadora de Fazia Calor e Usávamos Máscaras, reunião de depoimentos de dezoito mulheres, do Brasil e do México, que decidiram tornar públicos seus escritos pessoais, esclarece o quanto a casa ganhou um enorme protagonismo durante a pandemia da Covid-19. Assim que, partindo desse mote, tentam compreender as mudanças que a quarentena imprimiu aos dias, à vida e ao cotidiano. Com estilos diversos e perfis variados, as escritoras compartilham delírios, perdas e incertezas em seus textos. Chamei a atenção para esse livro (Fazia Calor e Usávamos Máscaras. Volume II. Lara Ovídio (Organização), Marília Panitz (Prefácio). Bragança Paulista: Hecatombe, 202), conforme minha Coluna Lido para Você: https://estadodedireito.com.br/farol-ancoradouro-oasis-e-sal-vozes-femininas-na-literatura/.
O livro de Raquel Pereira Guimarães se insere nessa bibliografia que ensaia horizontes de saída para tempos de incertezas, com a distinção de que ela confronta seus “dilemas pessoais à luz do que Deus ensina a cada dia”. Sua “intenção, portanto, é mostrar ao leitor como Deus age em minha vida tanto nos momentos bons, quanto nos dias maus”.
Dor e solidão tomam conta do coração.
A vida perdeu seu sentido.
Sinto-me tão vazio e perdido.
Tudo desapareceu na escuridão.
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(O vazio da vida e a esperança)
Não ignoro a condição epistemológica da jurista que compartilha com a poeta, a leitura sensível do mundo, mediada por uma fé ativa. É essa partilha radical em Raquel que deduzo da exortação do Papa Francisco aos juízes – https://www.brasilpopular.com/vaticano-conferencia-sobre-colonialismo-descolonizacao-e-neocolonialismo/ – para animar a sua atuação judicante: “Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.
Na quadra dramática em que vivemos e que convocou a exaltação de Raquel, o que está em causa é a de interpelação a um paradigma civilizatório, alcançado por uma tempestade que desaba sobre o mundo, e que requer, conforme exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, pelo distanciamento ditado pela quarentena, em 27 de março de 2020, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”.
É o que diz Raquel:
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Coloco em papel o que não posso dizer.
Sem palavras, uso versos para entender.
Poetizo nas estrofes minha oração.
Na poesia, encontro redenção.
Devemos adorar de várias formas.
Adorar é também escrever.
O amor não segue normas.
É todo livre o seu viver
(Escrita pesada para tempos pesados)
Com a jurista Raquel, me pergunto, será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações jurídicas para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade?
O tempo responderá. Tudo vai dar certo. Responde Raquel:
Tempo, o tempo, meu tempo.
Cada coisa a seu tempo.
Tudo vai dar certo
Mesmo sendo o futuro incerto.
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(Tudo a seu tempo)
Como entender a situação presente?
Como caminhar sem nada ver à frente?
Somente a fé possibilita tal feito.
O de seguir mesmo com esse aperto no peito.
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(Prova do que não se vê)
Uma possível resposta pode ser encontrada, eu pelo menos assim a encontrei, em Joseph Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano). Trata-se, eu o disse examinando estudos sobre sua obra – https://estadodedireito.com.br/jose-comblin-100-anos-de-vida/ – de surpreender a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco (“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol. Fé ativa.
Leio essa disposição em Raquel:
O fim
É chegado o tempo do fim.
Marco inicial de um novo começo.
Toda nova era nasce assim.
Uma explosão que nos vira do avesso.
O artista não precisa justificar-se.
Talvez esse livro seja apenas um devaneio tolo.
Para que, então, desesperado questionar-se?
Que os versos lhe sirvam ao menos de consolo.
Lançadas palavras, flechas ardentes.
Que às mentes atravessem e causem temor.
Que o mundo se prostre aos pés do Senhor.
Clemência peço aos arrependidos dissidentes.
Eis que Raquel faz um mergulho radical. Filosofa (Direito) e Poeta, seu livro funde como propunha Roberto Lyra Filho/Noel Delamare (Jurista – O Que é Direito; e Poeta Da Cama ao Comício), “a realidade que há que ser exposta, mesmo enfrentado a dificuldade de dizer um mistério: o agnosticismo apaga a luz, para justificar os próprios olhos fechados; mas é fatal andar, mesmo no escuro (ação e fundamento da ação), o que deixa um rastro implícito de implicações subliminares. O racionalismo acende a luz que não sabe o que seja; mas ela não ilumina o universo e, sim, o terreno de sua limitada incidência; sobretudo, não ilumina a si mesma, enquanto poder clarificante. O misticismo se embebeda de uma luz mais forte, porém, ao cabo, implica a fundamentação racional que não validaria sua experiência de transrazão” (Roberto Lyra Filho. Filosofia, Teologia e Experiência Mística. Kriterion: revista da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. XXII, n. 69, jan.-dez. 1976, p. 136-145).
Resta o diálogo, o que transparece do livro de Raquel, em que amigavelmente conversam a teóloga, a filosofa e a mística, sustentando-se reciprocamente, sem frustrar, ao limite radical, a busca a que se entrega.
Foto Valter Campanato | José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
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