Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
O trabalho nas plataformas digitais tem se tornado uma realidade cada vez mais presente no Brasil. Estima-se que existam cerca de 2,1 milhões de trabalhadores(as) que realizavam trabalho por meio de plataformas digitais (aplicativos de serviços) ou obtinham clientes e efetuavam vendas por meio de plataformas de comércio eletrônico no trabalho (dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – PNAD/IBGE -, para o 4º trimestre de 2022).
Esse tema diz respeito a toda a sociedade. A cada um de nós que já incorporamos em nosso cotidiano o imaginário da presença envolvente desses prestadores de serviços, mas que só ativam a nossa opinião quando uma ocorrência espetacular instiga a nossa percepção.
Até mesmo esse imaginário começa a ser galvanizado, não só por imagens, mas por fortes interpelações. Veja-se, ‘GIG – A Uberização do Trabalho’, um documentário impactante que visualiza no mundo, o trabalho mediado por aplicativos e plataformas digitais. Nele se demonstra que o avanço da chamada “gigeconomy”, também conhecido no Brasil por “uberização”, vem convocando um grande debate sobre a precarização e a intensificação do trabalho numa sociedade cada vez mais conectada entretanto, pode-se dizer, inscrita numa perspectiva simbólica pós-humana.
Há pouco participei de um programa – Observatório do TST. Instituto Pérola de Formação para a Advocacia: O tema deste episódio, PLATAFORMIZAÇÃO: “trabalho digno e decente”, tem ocupado a centralidade dos debates acadêmicos e jurídicos e até o Tribunal Superior do Trabalho realizou, recentemente, um Seminário a respeito para tratar do que tem sido chamado, também, de “uberização” do trabalho.
E até no contexto de uma outra linha de conversa, – https://www.youtube.com/shorts/-I9pP67nUxQ – um short, extraído do programa Dando a Real, na TV Brasil, no qual o jornalista Leandro Demori recebe | #DRcomDemori. Somente esse excerto já alcançou mais de 100 mil visualizações.
Daí a relevância da edição do Decreto Nº 11.513, de 1º de maio de 2023, criou o Grupo de Trabalho Tripartite, com 15 representantes de cada bancada, com a finalidade de elaborar propostas de “regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas” no prazo de 150 dias.
A representação laboral foi formada por lideranças dos(as) trabalhadores(as) de aplicativos nos segmentos de transporte de passageiros, entrega rápida e cooperativas, que se dividiram em dois subgrupos: um para transporte de passageiros e outro para entrega.
Como resultado do processo negocial, chegou-se a uma proposta de Projeto de Lei Complementar, que estabelece uma “nova forma de relação de trabalho intermediado por empresas que operam aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos de quatro rodas” e define direitos para esse novo tipo de contrato.
Sobre o acordo, remeto ao trabalho preparado pelo DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos na forma de uma Síntese Especial com Subsídios para Debate, que tomou o número 17, editado em 05 de março, que pode ser lido na web.
Como resultado do processo, foi elaborado um Projeto de Lei Complementar, que avançou em alguns pontos, mas que ficou circunscrito ao segmento de transporte de passageiros, devido ao fato de não ter havido acordo no subgrupo de entrega de mercadorias. O projeto contempla cerca de 704 mil trabalhadores(as), segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD/IBGE), para o 4º trimestre de 2022
Os pontos previstos no PLC são: 1. Relações de trabalho; 2. Princípios que devem reger a relação entre trabalhadores(as) e empresas de aplicativos (trabalho decente); 3. Piso salarial de R$ 8,03/hora; 4. Cobertura dos custos no valor de R$ 24,07/hora; 5. Jornada de trabalho efetivamente trabalhada e tempo de conexão máximo; 6. Direito à previdência social;7. Direitos dos(as) trabalhadores(as) em situações de subcontratação; 8. Regras para a exclusão do(a) trabalhador(a) da plataforma; 9. Representação sindical e negociação coletiva; 10. Penalização pelo descumprimento das regras previstas no Projeto de Lei Complementar.
Atualmente, decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem vínculo empregatício têm recebido decisões contrárias do STF e, de fato a Primeira Turma da Corte entendeu que não há vínculo com as plataformas. O mesmo entendimento já foi tomado pelo plenário em decisões válidas para casos concretos. É um posicionamento conforme as diretrizes da política neoliberal, confirmando, no aspecto econômico a orientação do próprio Supremo, afinada com as sugestões do Banco Mundial quando financia projetos na área do sistema judiciário, subordinando cláusulas contratuais ao entendimento de que a função da justiça é assegurar a estabilidade dos negócios.
Na direção de pensar essa realidade, na qual os negócios prevalecem sobre direitos historicamente conquistados, a possibilidade de restituir ao trabalho a cidadania que suas lutas sociais contribuíram para construir, como direitos de todos, é alvissareiro o primeiro voto do Ministro Flávio Dino, depois de sua posse no STF,que pode ser interpretado como a favor da unificação nacional do entendimento sobre o vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e a plataforma Uber. Com seu voto, o Supremo passa a ter duas manifestaçõesa favor do reconhecimento da chamada repercussão geral, mecanismo que obriga todo o Judiciário a seguir o entendimento do STF após o julgamento de uma causa.
Isso talvez indique porque no dia 20 de setembro de 2023, por ocasião da Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente americano Joe Biden assumiram uma ação conjunta em prol do trabalho digno e decente, o que se tem chamado de “Iniciativa Global Lula-Biden para o Avanço dos Direitos Trabalhistas na Economia do Século XXI”. Dentre os desafios dessa proposta, estão a promoção do trabalho seguro, saudável e decente e o aproveitamento da tecnologia para o benefício de todos. Ou seja, parece que a precarização do trabalho plataformizado está no foco desse Pacto. E para falar do que está, então, no cerne dessa controvérsia, ou seja, a configuração ou não da subordinação jurídica. Não por acaso, após anunciar o acordo, o Presidente Lula indicou que mostrassem ao Biden os seus termos. O certo é que em vários países do mundo, está em discussão a regulação do trabalho nas empresas que operam aplicativos, de modo a reconhecer a responsabilidade destas com os trabalhadores e trabalhadoras.
Como resultado do processo, foi elaborado um Projeto de Lei Complementar, que avançou em alguns pontos, mas que ficou circunscrito ao segmento de transporte de passageiros, devido ao fato de não ter havido acordo no subgrupo de entrega de mercadorias. O projeto contempla cerca de 704 mil trabalhadores(as), segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD/IBGE), para o 4º trimestre de 2022
Os pontos previstos no PLC são: 1. Relações de trabalho; 2. Princípios que devem reger a relação entre trabalhadores(as) e empresas de aplicativos (trabalho decente); 3. Piso salarial de R$ 8,03/hora; 4. Cobertura dos custos no valor de R$ 24,07/hora; 5. Jornada de trabalho efetivamente trabalhada e tempo de conexão máximo; 6. Direito à previdência social;7. Direitos dos(as) trabalhadores(as) em situações de subcontratação; 8. Regras para a exclusão do(a) trabalhador(a) da plataforma; 9. Representação sindical e negociação coletiva; 10. Penalização pelo descumprimento das regras previstas no Projeto de Lei Complementar.
Penso que em seus desdobramentos, tanto em relação aos pontos acordados, quanto no que diz respeito ao alcance dos interesses, sobretudo dos trabalhadores, é muito importante ter em causa o que se designa em pelo menos duas obras que tem mergulhado fundo nesse tema.
A primeira é o livro da professora Daniele Barbosa, A Precariedade Politicamente Induzida e o Empreendedor de Si Mesmo no Caso Uber. Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020.
Radica no trabalho de Daniele a disposição, que não é só acadêmica, mas também política, de resistir à voragem predatória dos rentistas e de seus agentes institucionalizados pela articulação golpista. E fazê-lo armada da inteligência crítica que Roberto Lyra Filho, o formulador dos princípios norteadores do que denominou “O Direito Achado na Rua”, antecipava em discurso de apoio à luta dos trabalhadores por direitos (Direito do Capital e Direito do Trabalho, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1982, pág. 39): “todo o Direito de Vanguarda é Direito do Trabalho, enquanto este delineia a mudança social legítima e exprime o posicionamento jurídico dos trabalhadores, seus direitos individuais e coletivos. É assim que se atualizam as metas e ênfase dos Direitos Humanos, para a civilização do trabalho e contra as apropriações indébitas da propriedade privada dos meios de produção ou do controle gerencial deles por um grupo de burocratas aburguesados”.
Assim, diz a Autora na Introdução do livro: “Está em curso, no Brasil, uma política que induz a maximização da precariedade da vida dos motoristas em plataformas digitais de transporte? O Estado brasileiro tem induzido politicamente a precariedade da vida dessa parcela da população? Esses são os principais questionamentos que conduzirão a nossa investigação nessa pesquisa. A nossa hipótese é a de que está sendo construído, para essa parcela da população, um determinado enquadramento revelador de uma política que distribui, tática e desigualmente, a precariedade, para esse grupo de trabalhadores em plataformas digitais. Às atuais práticas institucionais brasileiras concernentes às empresas de plataformas digitais, em especial a Uber e aos seus motoristas, lançamos um olhar para observar aquilo que acreditamos ser a construção de um enquadramento de empreendedor de si mesmo, cuja pretensão parece concretizar uma moldura de responsabilidade individual para esses trabalhadores”.
Com efeito, professora e pesquisadora de Direito do Trabalho na UERJ e na UFRJ, Daniele Barbosa não se autoconfina no plano intelectual, teórico. Ela se joga na práxis, se arisca, na atitude de “frear a locomotiva da ganância capitalista”. Ela coordenou um participativo projeto de intervenção, no espaço cedido pelo Jornal GGN (Luis Nassif): “Trabalho/Trabalhadores de APPS em cena”. Conforme diz a professora idealizadora do projeto explicando como concebeu, a sua ideia é implicar as instituições “porque o espaço público também é construído, motivação que permeia todo o projeto da coluna. Temos o papel fundamental de colocar em cena e dar visibilidade às condições de trabalho e de vida das trabalhadoras e dos trabalhadores de apps. É preciso que nos engajemos na disseminação dessas vozes com uma ação coordenada. Trata-se de uma ocupação na mídia, que foi, neste momento, albergada generosamente pelo GGN. Terão outras decorrências este projeto”.
Ao estilo de seu livro, em diálogo com pesquisadores de campo e sujeitos do sistema, os trabalhadores, ela demarca temas e estabelece a interlocução provocada por questionamentos de apoiadores do projeto e abre espaço para a locução autêntica dos sujeitos. Fui também convidado por Daniele a propor uma questão, articulada desde os temas que me têm interpelado e foi importante ter a atenção do entrevistado.
Transcrevo aqui a minha pergunta e a resposta do Marcelo Fraccaro, na publicação editada por Daniele Barbosa:
“JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR: Astúcia neoliberal a distribuição do trabalho através de plataformas digitais pretende isolar os trabalhadores, tirando o espaço físico de trabalho que sempre foi o chão para a sua organização corporativa e política. Mas, um pouco por todo lado, local e globalmente, vê-se que esses trabalhadores, formam redes, modos de contato e de encontros, elaborando estratégias de mobilização, planos de lutas, agendas de reivindicações, desenhos de direitos inéditos. O trabalho é a mais universal das formas de interação do social (para a produção e a reprodução da existência). O que pode já ser cartografado a partir desses processos, que direitos (outros direitos que derivem do regime ou dos princípios que afetam o constitucional) e qual a subjetividade ativa e titulável que deles resultam?
MARCELO FRACCARO: Bem complexa, né. Tá. Eu vou procurar responder, né. Eu acho que todo esse contexto que nós vivemos, né, de fato, ele passa por uma transformação do modo de organização e mobilização da classe trabalhadora. Nós passamos aí por vários processos aí, tanto do ponto de vista econômico quanto social, quanto do ponto de vista também das organizações de trabalho, né, dos trabalhadores e das trabalhadoras. Como diz a primeira parte da entrevista, né, o espaço físico era praticamente o chão até aqui de todos esses trabalhadores. Eu, por exemplo, aqui, na Diocese, aqui, em Santo André, na Diocese, que eu sou coordenador da Pastoral Operária, né, então, nós temos uma trajetória de lutas, uma história de mobilização com esses trabalhadores, a partir dos sindicatos, dos movimentos sociais, das associações de trabalho, das cooperativas, da economia solidária. Isso, ao longo dos anos, vem mudando de uma forma muito rápida, uma vez que o desemprego, a terceirização, a informatização do trabalho acaba levando muito desses trabalhadores a terem que se individualizar, como a gente dizia na questão anterior, né. Trabalhar de uma forma individualizada, a não ter mais aquele espaço físico, aquele contato mais pessoal, mais coletivo, né, com a classe. E essa dificuldade realmente impõe à classe trabalhadora que ela encontre formas. Aí, é uma contradição, né, que acaba levando também a encontrar outros caminhos de mobilização e de organização. Por exemplo, a criação das redes atuais, né. Hoje, os espaços, eles acabam sendo espaços, muitas vezes, virtuais. Espaços aí, por exemplo, das redes digitais, sociais, das mídias, ou seja, os trabalhadores, eles vão encontrando outros caminhos pra poder se organizar. Por exemplo, nós tivemos contatos aí, por exemplo, com os Entregadores Antifascistas, né. Em 2020, eu tive a oportunidade de fazer uma live, inclusive, com o Paulo Galo, né, o líder dos Entregadores Antifascistas. Eu era candidato a vereador pelo PT de Santo André em 2020. Então, nós também trabalhávamos essa questão na nossa plataforma, no nosso programa. E esse contato com os Entregadores Antifascistas, com os trabalhadores por aplicativo, de uma forma em geral, além do trabalho que eu pessoalmente, Marcelo, desempenho como motorista de aplicativo, né, me leva a entender que realmente, de fato, existe aí uma nova concepção de organização e de mobilização, que tá surgindo e que tá se fortalecendo, a partir das redes, a partir de outros espaços, que não aqueles espaços antigos, de luta dos trabalhadores. Não que aqueles espaços não sejam mais importantes, né. O sindicato continua sendo importante como espaço de luta, de organização; o movimento social; as cooperativas; a economia solidária. Mas também agora se une também a outras formas, como as redes, como grupos, né, também. Muitas das vezes, grupos que tem aí, por exemplo, identidades muito próprias. Por exemplo, o grupo de trabalhadores e trabalhadoras, por exemplo, LGBT, o movimento negro, dos jovens. Enfim, eu acho que existem outras características na mobilização de hoje que levam esses trabalhadores a encontrar caminhos. Então, eu acho que a gente tem aí uma transição e eu quero ter esperança que sirva para fortalecer a luta da classe trabalhadora daqui pra frente”.
Como podemos ver, teórica e politicamente Daniele se encarna de compromisso. No livro, aliás, ela exibe a sua tomada de posição: “Por meio da articulação das práticas institucionais com a escuta das vozes daqueles que vivenciam, no dia a dia, a experiência de uma nova lógica de acumulação do capital, pretendemos investigar, de uma forma mais complexa, esse sistema de regulação da vida dos trabalhadores em plataformas digitais. Assim, problematizaremos as tensões em torno do direito ao trabalho dos motoristas em plataformas digitais como uma urgência, para refletirmos acerca de quais vidas são passíveis de luto no Brasil de hoje”.
O outro livro é, que segue esse roteiro do busca de inclusão de trabalhadores de plataformas digitais em sindicatos é “O Sindicato e os Desafios da Contemporaneidade”, de autoria da advogada MeillianePinheiroVilar Lima. A obra analisa o fenômeno do trabalho informal abordando o papel do sindicato, os desafios do sindicalismo, a estruturação das plataformas digitais e a organização coletiva dos trabalhadores plataformizados. Apresentando a essência das entidades sindicais, seus desafios contemporâneos, além de refletir sobre a luta por direitos de trabalhadoras e trabalhadores plataformizados.
Sou o estudioso atento às ponderações de Meilliane nessa questão. Por essa razão, pedi-lhe que me tecesse algumas ponderações a partir dos termos divulgados do acordo. Compartilho aqui o que ela me trouxe a título de considerações sobre o PLC nº 12/2024,na forma de sua tramitação já na Câmara dos Deputados, que dispõe sobre a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e estabelece mecanismos de inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições de trabalho:
A apresentação do PLC nº 12/2024 pelo Governo Federal, em caráter de urgência, representa a tentativa de regulamentar o trabalho intermediado por aplicativo no Brasil cuja causa remete à consagração da terceirização sem peias pelo STF como meio “moderno” de extração da força de trabalho.
O Projeto, em linhas gerais, aprofunda a precarização e a exploração dos trabalhadores, ao excluí-los da proteção do art. 3º da CLT que estabelece os requisitos da relação de emprego: serviço prestado por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade, mediante subordinação e onerosidade. Todos esses requisitos estão presentes na relação entre os motoristas e a empresa de plataforma, mas ainda assim, o PLC houve por bem retirá-los do alcance dos trabalhadores ao criar uma categoria de “autônomos com direitos”.
É preciso dizer que ao contrário da festejada autonomia, trata-se na verdade de uma relação de trabalho subordinada, porque a gestão algorítmica contradiz qualquer traço de autonomia. Essa nova forma de gestão impossibilita que o motorista coloque preço no seu próprio trabalho, que gerencie por conta própria sua atividade ou que decidida, por si só, os rumos do seu trabalho. O algoritmo controla os preços, a oferta de passageiros e monitora os telefones dos motoristas para mapear como eles estão usando os pedais de freio e de acelerador para avaliar a velocidade e a qualidade das frenagens (ALOISI, Antonio; DE STEFANO, Valerio. Yourbossisanalgorithm: Artificial Intelligence, Platform WorkandLabour. 1.ed. Oxford: Hart Publishing, p.59). Sem falar que exclui o motorista da plataforma quando bem lhe interessa ou quando o trabalhador “decide” rejeitar uma corrida. Há autonomia na execução do trabalho de motorista de aplicativo ?
A autonomia na lei e na boca dos trabalhadores remete à necessidade de liberdade de ausência de controle de jornada, flexibilidade típica da hipermodernidade em que os sujeitos pedem mais autonomia e liberdade, mas caem no excesso ou no vazio ( VELIQ, F. O Conceito de personalização de Lipovetsky como chave para entender a noção de pós-verdade. SapereAude, v. 10, n. 19, p. 235-249, 14 jul. 2019. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/19987 Acesso em 11 mar. 2024). Essa autonomia não se confunde com a liberdade que o motorista tem de se ativar quando bem quer, pois aquela é muito mais perniciosa, haja vista que mina o reconhecimento da relação de emprego somente pela existência de um aplicativo que intermedeia a relação entre o motorista, o passageiro e a empresa. Ou seja, é considerada uma relação autônoma simplesmente pela existência do aplicativo que exclui os requisitos da relação de emprego, apesar de estarem todos sempre presentes. Teme-se assim que a lógica do PLC se espalhe para outros tipos de trabalhos que já estão realizados por aplicativo.
A liberdade desejada pelos trabalhadores e incensada pelo PLC significa a flexibilidade da jornada que é materializada na possibilidade de ativação do trabalhador a qualquer momento para a realização de múltiplas tarefas segmentadas no tempo. Essa flexibilidade é representada na figura do trabalho intermitente, contida nos arts. 443, §3º, e 452-A ambos da CLT pela Reforma Trabalhista do governo Temer. Trata-sede figura contratual altamente precarizante porque exclui o tempo disponível de trabalho ao remunerar somente os períodos efetivamente trabalhados. Apesar do caráter precarizante ainda é um contato celetista que confere direitos ainda que mínimos. O PLC excluiu até mesmo essa possibilidade empurrando milhares de trabalhadores para fora do sistema protetivo constitucional e celetista reafirmando a meritocracia típica neoliberal. O PLC aprofunda a precarização porque rompe com a lógica de preservação do patamar civilizatório mínimo, estabelecida de Constituição de 1988 e vai na contramão das regulamentações em outros países, como os da União Europeia, cuja regulamentação parte da presunção de que todo o trabalho exercido por meio das plataformas digitais decorre do vínculo empregatício, transferindo-se o ônus da prova da relação autônoma para as empresas.
O Brasil começa muito mal, ao transferir para o empregado o ônus da prova da relação de emprego especialmente num cenário jurídico em que o STF reiteradamente tem julgado reclamações trabalhistas desprezando a realidade fática dos requisitos da relação de emprego. Assim, não há como desconsiderar a gravidade do PLC ao estabelecer a falsa relação de trabalho autônoma como uma inovação necessária para acompanhar as novas tecnologias.
Não há nova tecnologia, há sim uma nova forma de comunicação para o desenvolvimento de um trabalho que é o mesmo, há séculos. Sempre houve transporte de passageiros e de entregas, o que se altera hoje é forma como a comunicação por meio de um aplicativo, o meio de produção da empresa. O trabalhador não é autônomo justamente porque não detém o seu meio de produção.
O PLC aprofunda a ideologia do sujeito de si mesmo, o empresário de si próprio, ao naturaliza uma autonomia inexistente, pois, o trabalhador será vigiado, será penalizado, fiscalizado e deve se submeter a um contrato de adesão oferecido pela empresa de plataforma.
Um ponto que merece destaque no PLC é a possiblidade de organização sindical dos trabalhadores que passam a ser reconhecidos como o trabalhador integrante da categoria profissional “motorista de aplicativo de veículo de quatro rodas”. Assim, poderão criar sindicatos que serão reconhecidos conforme as formalidades do enquadramento sindical brasileiro e poderão realizar acordos e convenções coletivas. Todavia, é sabido que a atuação sindical no Brasil, historicamente não é fácil, especialmente quando a própria Corte Constitucional age com vistas a enfraquecê-la cada vez mais.
Ao fim e ao cabo, é facilmente constatável que esses trabalhadores continuarão autônomos e sem direitos, sem a ajuda do governo e com os aplausos das empresas.
Agradeço as considerações generosas feitas por Meilliane, confiante no que ela, juntamente com seu colega Antonio Fernando Megale Lopes, têm chamado a atenção para a necessidade dos sindicatos e outras formas de organização dos trabalhadores terem quevibrar de novo, fora dos tribunais e das fábricas para confrontar-se com o que vem se constituindo um ‘Direito do Trabalho do Inimigo’ a permear a Justiça do Trabalho com decisões aviltantes contra sindicatos e trabalhadores (https://www.cartacapital.com.br/justica/os-sindicatos-precisam-vibrar-de-novo-fora-dos-tribunais-e-fabricas/).
(*) Por José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).