Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Ciência & Cultura (ISSN: 2317-6660), periódico da Sociedade Brasileira para O Progresso da Ciência (SBPC) – http://portal.sbpcnet.org.br/publicacoes/ciencia-e-cultura/, edição digital.
Capa. Universidade é local para se discutir direitos humanos e diversidade assim como problemas atuais da sociedade (Antonio Scarpinetti/ Ascom Unicamp. Reprodução)
A revista Ciência & Cultura (ISSN: 2317-6660) é um periódico da Sociedade Brasileira para O Progresso da Ciência (SBPC), de acesso aberto (open access), de caráter multidisciplinar, com o objetivo de atuar na difusão e divulgação científica e também no cenário das grandes questões culturais de nossa época, identificando tendências e abordando temas próprios do conhecimento e da dinâmica de suas transformações culturais, científicas e tecnológicas. Suas edições temáticas combinam ciências, cultura, tecnologia, inovação, arte e filosofia em histórias contadas por cientistas, jornalistas e pensadores, informando e encantando seus leitores
Logo na abertura da Revista, nesse primeiro número de 2023, trago a imagem de capa que ilustra meu texto na publicação, mas que evoca o tema geral da edição: A Universidade é decisiva para o futuro da nação, a ex-Reitora Soraya S. Smaili (Unifesp), editora desta edição da Ciência & Cultura (agradeço a Soraya a indicação feita a Chris Bueno, editora-executiva do periódico para que eu participasse do número) e o ex-Reitor Naomar de Almeida Filho, também editor desta edição da Ciência & Cultura (UFBA e UFSB), assinam o texto Universidade do futuro no Brasil, com a característica de Editorial.
Com efeito, para eles a universidade é central na definição de novos rumos para a sociedade contemporânea:
Há séculos, em todo o mundo, a Universidade tem sido reconhecida como a fonte das ciências, a casa das palavras, o espaço das culturas e o lugar do pensamento. O pensamento define a Universidade. Pensar, repensar, pensar-se. Pensar a Universidade, por dentro de si e para si mesma, é fundamental, porém pensar a universidade para e no contexto planetário é urgente. Ao fazê-lo, temos uma oportunidade de dialogar com os governantes e com a Sociedade. Nada mais apropriado do que apresentar ideias, propostas, soluções e caminhos para as universidades brasileiras neste momento de nosso País. Ao pensar suas raízes históricas, ao pensar mais amplamente, ao pensar à frente do tempo, a Universidade se faz decisiva para o futuro da nação.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) propõe, para o primeiro número da revista Ciência & Cultura de 2023, uma edição temática sobre a Universidade do Futuro. Esta edição está composta por uma série de artigos que abordarão diversos aspectos do tema em profundidade; além de vídeos e podcasts com foco em questões atuais sobre o tema central; entrevistas com cientistas e pesquisadores, testemunhas e protagonistas desse momento; bem como reportagens e textos de opinião, elaborados por especialistas a partir de textos escritos por jornalistas.
E prosseguem:
Nos últimos anos, a educação pública, a ciência e a pesquisa brasileiras sofreram agressões intensas e contínuas, patrocinadas principalmente pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Muitas formas de ataque foram utilizadas, desde campanhas difamatórias, ingerência na escolha de dirigentes, perseguição de docentes, além da profunda e arrasadora asfixia financeira. Difícil imaginarmos como, diante desse cenário, foi possível sobreviver, resistir e ainda realizar grandes feitos durante essa pandemia que foi a maior crise sanitária de nossas gerações. Apesar da pandemia da covid-19 parecer distante agora, seus efeitos se encontram mais próximos do que imaginamos, com as ameaças advindas das mudanças climáticas. Nesse contexto, as universidades, especialmente aquelas do setor público, trouxeram contribuições centrais para a resolução de problemas e para a proteção da população. Enfim, é preciso jogar luz nos legados da pandemia, a partir do esforço das universidades que, inovadoras nas respostas e emancipatórias nas conquistas sociais, certamente continuarão com a produção de conhecimento científico e tecnológico crucial para o enfrentamento de novos desafios de saúde da população.
E finalizam seu texto-editorial de modo assertivo:
Vivemos na universidade uma pandemia, ao mesmo tempo em que sofremos uma enorme restrição de recursos. A Sociedade Brasileira respondeu com uma inédita “onda pró-ciência”, com o reconhecimento de boa parte da população da importância da Ciência que salvou vidas. Além disso, assistimos à afirmação do conhecimento baseado em evidências históricas e científicas, posto que parcela significativa da população brasileira se recusou a aderir às fake news e ao negacionismo científico. Nesse momento, as universidades ganharam grande destaque e popularidade. Porém, a partir da ampla vacinação e do arrefecimento da pandemia, além de superadas as questões eleitorais de 2022, vemos agora que movimentos obscurantistas anti-ciência parecem ganhar novos contornos, espaços e adeptos, com investidas cada vez mais sofisticadas e elaboradas, aumentando muito o desafio das universidades e aos formuladores de políticas públicas em relação ao futuro.
O ano de 2023 surge com a esperança de reconstrução nacional, a partir da união de esforços e da condução política para o retorno dos processos democráticos. O momento agora é de redesenhar os sistemas de educação e de pesquisa & desenvolvimento, retomar sua expansão e colaborar decisivamente no sentido de reconstruir e também de reinventar o Brasil, depois dos trágicos anos que vivemos. Sabemos que, para isso, precisaremos garantir processos políticos estruturais, além de retomar políticas públicas que contemplem a Educação e a Ciência como áreas estratégicas para o Estado. Neste momento crucial, entra em cena a Universidade, instância formuladora de princípios, defensora de valores e pensadora de futuros e, por tudo isso, central na definição de novos rumos para a sociedade contemporânea. Ao pensar no futuro, pensamos no aqui-agora, no que temos efetivamente na Universidade brasileira, uma capacidade instalada que está latente e que é capaz de gerar o novo e dialogar com saberes transformadores do mundo.
A partir deste 2023, ano de reconquista e reconstrução, poderemos resgatar e retomar o trabalho valioso de Darcy Ribeiro e de Anísio Teixeira, que continuam atuais e, em muitos sentidos, orientadores e inspiradores. Para Darcy Ribeiro, o papel social da universidade se cumpriria quando ela saísse de dentro dos seus muros, amplificasse a conexão com a sociedade e contasse com instrumentos de comunicação de massa: rádio, TV, setor editorial, imprensa e cinema (e hoje, certamente ele incluiria as diversas modalidades digitais). Será que esse momento é agora? Ou teremos que persistir lutando para construir um novo momento no futuro?
Por tudo isso, ao pensarmos o tema dessa primeira Ciência & Cultura de 2023 e também a Universidade do Futuro no Brasil, precisamos falar mais da “universidade necessária”, em diálogo permanente com a sociedade, com os movimentos que dela provém, bem como com os desafios do “tempo presente”. A Universidade será estratégica para a composição de uma sociedade mais justa, solidária e sustentável, que terá como base o conhecimento científico e que enfrentará os desafios para a reconstrução de nossa Nação.
Na linha dessa convocação editorial, para marcar o primeiro número de Ciência & Cultura de 2023, respondem os temas e autores e autoras dessa edição:
De Joaze Bernardino-Costa, meu colega na UnB, o artigo Política afirmativa, democratização do acesso à universidade e propostas de avaliação. O artigo, conforme o resumo: demonstra a centralidade da lei de cotas no processo de democratização do acesso ao ensino superior, sinalizando sua importância para a entrada de estudantes oriundos de escolas públicas, negros e indígenas nas universidades públicas. Ao mesmo tempo em que reconhece que algumas Instituições Federais de Ensino Superior e coletivos de pesquisadores envidaram esforços para avaliar a política de cotas, o artigo chama a atenção para a ausência de avaliações sistemáticas e abrangentes da lei de cotas na sua primeira década de existência, que deveriam ter sido capitaneadas pelo Ministério da Educação. Por fim, propõe 10 pontos para discussão no processo de monitoramento, avaliação, aperfeiçoamento e revisão da lei 12.711/2012.
Bernardete A. Gatti, membro da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudo Avançados (IEA) da USP e da Academia Paulista de Educação, traz o artigo Inovações curriculares na interface entre educação básica e universidade. O artigo, diz o resumo, procura abordar a questão da inovação curricular como algo que se mostra relevante ante o contexto social-histórico na nossa contemporaneidade. Aspectos da relação educação básica e universidade são destacados e características relativas a processos de mudança são abordados. Parte-se da ideia que o trabalho universitário tem base no trabalho da educação básica e ambos compõem o contínuo processo formativo das novas gerações, e que, tratar de currículo escolar, em qualquer dos níveis educacionais, é tratar de conhecimentos e perspectivas sócio-históricas sobre conhecimento.
Sergio Haddad, doutor em educação e coordenador de projetos especiais da Ação Educativa, comparece com o artigo Diálogo permanente com a sociedade numa Universidade Freireana. Vou ao resumo: O artigo trata das diversas manifestações de Paulo Freire ao longo da sua vida sobre a universidade e o seu papel a partir dos seus escritos. Descreve sobre os diversos períodos de trabalho do educador em universidades antes, durante e posterior ao seu exílio. Apesar do foco central das suas preocupações como educador ser a alfabetização de adultos e o papel da educação no contexto de uma pedagogia crítica, Paulo Freire não deixou de refletir sobre como a universidade poderia desempenhar a sua missão a serviço dos oprimidos em um contexto de injustiça social. O diálogo com a sociedade, em particular com os setores populares dentro e fora das universidades, fortalece o seu papel político e pedagógico, ser perder a rigorosidade necessária do trabalho acadêmico. Para Freire, entre os desafios, são fundamentais o diálogo entre o saber popular e o saber científico e a contribuição que as universidades teriam para qualificar a educação básica de maneira a facilitar a entrada, a participação e o diálogo com os mais pobres.
A edição apresenta três interessantes reportagens, Novas cores e contornos na Universidade brasileira, a cargo de Patricia Mariuzzo; A ciência da reconstrução nacional, conduzida por Paula Gomes; e A tecnologia educacional e seu impacto como meio de transformação social, de Priscylla Almeida.
Compõem a edição, na retranca Opinião, os comentários Universidade do futuro no Brasil, da editora Soraya S. Smaili; Mudanças climáticas: caminhos para o Brasil, de Paulo Artaxo, professor titular do Instituto de Física da USP e vice-presidente da SBPC. E o meu texto Diversidade e direitos humanos na universidade do futuro.
Compartilho o meu comentário:
O presente texto deriva de minha contribuição como expositor no encerramento da 9ª Conferência do Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa (FORGES), realizada de 20 a 22 de novembro de 2019 em Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília (UnB), tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”, com o título: “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”.[1]
Aqui destaco alguns excertos do que está publicado, na medida em que guardam conexão com o tema proposto para esta edição de Ciência & Cultura – “Universidade do Futuro no Brasil” – e mais propriamente com o que trato em meu artigo “Diversidade e Direitos Humanos na Universidade do Futuro”.
Iniciei a minha saudação aos participantes da 9ª Conferência com uma evocação. Presente em Coimbra, na Sala dos Capelos, da vetusta universidade, nos começos da década de 2000, para um Congresso Portugal-Brasil, guardo em mim até hoje o sentimento marcado pela disposição de todos ali presentes, de construir caminhos para a uma história comum: “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos”.[2]
Essas palavras, ditas pelo então presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, logo a seguir, seu vice-reitor, o professor António José Avelãs Nunes, assinalaram as distinções entre o Portugal português e o Brasil brasileiro, no que tange aos seus caminhos, nas condições daquele congresso. Mas se prestam também para designar as distinções entre o Portugal português e os países que formam a comunidade de povos de língua portuguesa, presentes nesta 9ª Conferência (Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e certamente entre os participantes, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste) no que tange aos seus próprios e intercruzáveis caminhos, em que pese, lembra Eduardo Lourenço, “cada povo só o é por se conceber justamente como destino”.[3]
Temos, sim, os povos que se expressam em língua portuguesa, essa história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias. Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossos destinos?
Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções atuais do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.
Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração. Retomo Avelãs Nunes: Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.
É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer “paraíso perdido”, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a atual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis dessa civilização fim-da-história.
Assim como essa globalização não é um “produto técnico” deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projeto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas “leis naturais” do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores e empenhado em objetivos que o “mercado” não reconhece nem é capaz de prosseguir.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disso mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.
Até aqui, discorri seguindo Avelãs.[4] Mas, nesse diapasão, trata-se, pois, de indagar-se de que desenvolvimento se cuida, quando falamos em desenvolvimento. Essa é a questão proposta por Roberta Amanajás Monteiro, em tese defendida na Faculdade de Direito da UnB, sob minha orientação em 2018. Com o tema “Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? A Hidrelétrica de Belo Monte e seus impactos nos direitos humanos dos povos indígenas”, a pesquisadora apresenta exatamente a tensão entre o desenvolvimentismo e os direitos humanos a partir do estudo de caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e os seus impactos aos indígenas Arara da Terra Indígena Volta Grande e Juruna, da Paquiçamba. A pergunta central de sua tese interpela como ocorre a tensão entre projetos de desenvolvimentismo e os direitos humanos dos povos indígenas, e se os conflitos se inscrevem na matriz colonial de poder. Fundamentada na teoria da Colonialidade do Poder de Anibal Quijano e nos autores do pensamento decolonial, a metodologia eleita por Roberta Amanajás apoiada em investigação empírica, fornece os argumentos da constatação da incidência da ideia de raça no percurso do licenciamento ambiental do empreendimento.
Para a autora, numa aproximação sociológico-jurídica, a compreensão de que é a partir da ideia de raça que é negada a condição de sujeito de direitos e de conhecimento aos povos indígenas, consequentemente dos seus direitos de território, natureza, modo de vida e direito à participação e consulta prévia, a conclusão leva, necessariamente, à expectativa militante de construção de elementos de desenvolvimento a partir dos próprios povos indígenas.
Em Avelãs Nunes, a aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.
Abri essa linha de problematização exatamente com um autor português, até para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis.
Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, a desumanização não é destino.
“A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”[6]
Com efeito, embora afirmem Ana Claudia Rozo Sandoval e Luís Carlos Santos[7] que:
“a disputa pela realidade é um traço comum dos filósofos, seja ele interpretando, desconstruindo, criando conceitos, mas o que está em causa é disputar a realidade. E para isso colocamos em crise o solo em que se pisa, como um lugar produzido à imagem e semelhança da produção de um discurso que legitimou historicamente a exploração e dominação, e o conflito estabelecido ao buscar filosofar-se caiu na armadilha da representação. Este é um dos primeiros elementos que precisam ser descortinados, a representação. Pois a imagem que se traduziu nos discursos era apenas a europeia. O exercício de pensar-se, o que é próprio da filosofia encontra-se no poço sem fundo, no beco sem saída da armadilha da representação europeia moderna, ocidentalizada na contemporaneidade. A perspectiva decolonial (ou estudos Modernidade/colonialidade) e as filosofias africanas colocam em discussão o epistemicídio e o semiocídio cultural. O conhecimento, e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer filosofia. Problemas não considerados filosóficos começam a ser problemas de interesse de outros sujeitos que foram negados pelo sistema mundo eurocentrado”.
Todavia, o núcleo de minha argumentação, busca em Boaventura de Sousa Santos sua proposição feita no espaço do Fórum Social Mundial de Porto Alegre uma bem elaborada proposta para a constituição de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, atenta a essas exigências de um conhecimento emancipatório. Em Boaventura isso significa constituir oportunidades de emancipação que deem conteúdo eficaz a mecanismos do estado de direito, da democracia e dos direitos humanos para que não se contrafaçam em artificialismos enganosos que esvaziem “alternativas positivas geradas por um pensamento alternativo de alternativas e todas as possibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas aptas a realizar a tarefa política de superar a dominação capitalista, colonialista e patriarcal”.[8]
E o faço para salientar que esses pontos correspondem, em seus fundamentos, às expectativas que defendem uma universidade aberta à cidadania, preocupada com a formação crítica dos acadêmicos e mais democrática. Uma universidade, como lembrava Boaventura de Sousa Santos em sua recente visita à UnB, consciente de que “o que lhe resta de hegemonia é o ser um espaço público onde o debate e a crítica sobre o longo prazo das sociedades se podem realizar com muito menos restrições do que é comum no resto da sociedade” e que encontra no exercício da pluralidade tolerante a mediação apta a torná-la uma “incubadora de solidariedade e de cidadania ativa”.
Um modelo assim já se apresenta como proposição interpelante da universidade convencional, desde que ela se abra a, pelo menos, duas condições. A primeira é o dar-se conta da natureza social do processo que lhe cabe desenvolver. Não é condição trivial, porque ela implica opor-se à tentação de mercadorização do ensino e da pesquisa e consequente redução do sentido de indisponibilidade do bem Educação, constitucionalmente definido como um bem público, processo dramático e cruento em curso autoritário em muitos de nossos países, num projeto claramente hostil à ideia de universidade como valor social e ao conhecimento crítico como elemento nutriente de práticas e de pensamentos democrático e emancipatório.
A outra condição, é a de interpelar a universidade para que ela se abra a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos, a exemplo das políticas de ações afirmativas. Possibilita, assim, alargar o âmbito das pautas pedagógicas que desenvolve e fazer circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes.
Ao fim e ao cabo, concluindo com o recorte que trouxe para meu artigo, na temática proposta para esta edição de Cultura & Ciência, pensar Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória, algo que, a meu ver, transparece nos debates acerca dos compromissos da instituição com a realização dos direitos humanos, é que libertar-se, emancipar-se, dizemos nós em nosso projeto acadêmico que denominamos O Direito Achado na Rua: “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito de emancipar-se é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, para nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”.[9]
Pensar a diversidade e os direitos humanos na universidade do futuro é cuidar de problematizar os modos de os conhecer e de os realizar, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos.
Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.[10]
Reproduzo também as Referências, conforme os números que indicam a ordem de aparecimento no texto.
[1] REVISTA FORGES. n. Especial (2020): NÚMERO COMEMORATIVO DO 10.º ANIVERSÁRIO DA FORGES Publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8).
[2] Boletim da Faculdade de Direito – STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000.
[3] LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade Seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[4] NUNES, Antonio José Avelãs. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.
[5] MONTEIRO, Roberta Amanajás. Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, 2018.
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 11ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
[7] SANDOVAL, Ana Claudia; SANTOS, Luis Carlos. Estudos Decoloniais e Filosofia Africana: por uma Perspectiva Outra no Ensino da Filosofia. Revista Páginas de Filosofia, v. 6, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2014.
[8] SANTOS, Boaventura de Sousa. Universidade Popular dos Movimentos Sociais – UPMS – Forum Social Mundial, Porto Alegre, 2003; Fórum Social Temático 2012, Porto Alegre, 24-29 Janeiro https://www.boaventuradesousasantos.pt/pages/pt/upms.php, acesso em 08/03/2023; A universidade popular dos movimentos sociais: entrevista com o prof. Boaventura de Sousa Santos, entrevista concedida a Júlia F. Benzaquen. Imagens & Palavras • Educ. Soc. 33 (120) • Set 2012; SANTOS, Boaventura de Sousa. Descolonizar: abrindo a história do presente. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Boitempo, 2022.
[9] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Movimentos Sociais nos 50 Anos da UnB: Construindo uma Universidade Emancipatória. In RÊSES, Erlando da Silva (Organizador). Universidade e Movimentos Sociais. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2015.
[10] ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016; 2ª reimpressão 2019.
Bate-papo online marcou o lançamento da primeira edição do ano da revista Ciência & Cultura sobre “Universidade do Futuro no Brasil” Bate-papo online marca lançamento da primeira edição do ano da revista Ciência & Cultura sobre “Universidade do Futuro no Brasil” Qual a universidade que o Brasil precisa? Esta foi a pergunta discutida durante o bate-papo online realizado nessa quarta-feira (22) para marcar o lançamento da primeira edição de 2023 da revista Ciência & Cultura, que tem como tema “Universidade do Futuro no Brasil”.
A íntegra do evento pode ser recuperada em https://www.youtube.com/watch?v=qzqxF4J5nZs. Para os moderadores do evento e editores desse número da revista Ciência & Cultura, Soraya S. Smaili e Naomar Almeida Filho, este é o momento ideal para se discutir o ensino superior no País. Smaili, tal como já o fizera no editorial da publicação de Ciência & Cultura defendeu que o tema é de grande relevância nesse período de início de reconstrução, para podermos resgatar os valores mais elevados das universidades. “Precisamos nos apropriar de qual cenário temos hoje para refletir e projetar as propostas que nossas universidades produzirão com maestria.” Uma síntese do bate-papo foi preparada por Chris Bueno – editora executiva da Ciência & Cultura, em especial para o Jornal da Ciência (http://www.jornaldaciencia.org.br/edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/2-mais-inclusiva-e-engajada-especialistas-discutem-qual-a-universidade-que-o-brasil-precisa/&utm_smid=10475183-1-1).
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).