Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Willy da Cruz Moura. Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. CEAM/Universidade de Brasília, 2022, 145 folhas.
É grande a coincidência, mas a defesa da Dissertação tema da Coluna Lido para Você, perante Banca na qual tomei parte como docente arguidor e que foi formada pelos Professores Alexandre Bernardino Costa – Orientador, da Universidade de Brasília – UnB, Manuel Gándara Carballido – membro externo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Menelick de Carvalho Neto –suplente, da Universidade de Brasília – UnB, aconteceu um dia depois da publicação de sentença lavrada pelo Juiz Carlos Frederico Maroja de Medeiros, da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF, em processo de reintegração/manutenção de posse (Processo número: 0003872-11.2015.8.07.0007), na qual reconheceu que o Movimento Ocupação Cultural Mercado Sul Vive atende “ao interesse social e às diretrizes constitucionais e legais relativas à função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade” e negou a remoção forçada dos artistas e produtores culturais.
Logo depois da defesa, aprovada a Dissertação e mobilizado pela decisão do juiz Maroja, escrevi e foi no mesmo dia publicada, minha coluna quinzenal no Jornal Brasil Popular, com o título Mercado Sul Fica! (https://www.brasilpopular.com/mercado-sul-fica/), oportunidade para relacionar o objeto de decisão e o trabalho contido na Dissertação.
Com efeito, inseri no artigo uma nota acentuando essa proximidade, ao dizer que o trabalho de Willy da Cruz Moura, “Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o o Direito Achado na Noite”, o autor sustenta, num aspecto que guarda relevância com a Sentença do Juiz Maroja, que pode-se falar em espaço político, o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, nesse passo citando a mim e a meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016) como lugares de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.
Aludi assim, aspecto que levantei em minha arguição, que espaços de cidadania, como sustenta Milton Santos, formam “cidades educadoras”, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Aí aonde bebe, teórica e politicamente, o agir interpelante e comprometido com a emancipação, dos jovens militantes da Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho e da Assessoria Jurídica Popular Candanga que promovem a causa do Movimento Ocupação Cultural Mercado Sul Vive.
Para os estudantes da UnB e os advogados populares, que acompanham a causa, decisão reconhece que o movimento requalificou o espaço como equipamento cultural e como tal deve ter a proteção do Estado: “Por isso, seguiremos esperançando e cobrando do governo ações que fortaleçam a produção cultural realizada ali”. Pois, na Sentença, o Juiz qualifica a Ocupação Cultural Mercado Sul Vive, representada nos autos do processo por artistas, artesãos, produtores culturais, repudiando os termos depreciativos dos pretensos proprietários da área abandonada, acolhendo o argumento de “não ter havido invasão, já que o espaço estava abandonado há mais de dez anos, servindo apenas de especulação imobiliária, além de propiciar a propagação da dengue; menciona que os ocupantes são pessoas reivindicando direito constitucional à moradia, cultura e exercício profissional; enfim, a ocupação é antiga, sendo o espaço conhecido como Beco da Cultura, de modo que o Movimento Cultural Mercado Sul Vive apenas para estabelecer função social ao local”.
O juiz considerou, de fato, que o imóvel litigioso tendo permanecido em estado de franco abandono por razoável período de tempo, donde despontou a oportunidade para a ocupação perpetrada pelos réus. Embora ilegal em sua forma e origem, a ocupação acabou por revitalizar o imóvel até então abandonado, tornando-se um reconhecido centro de produção e reprodução de cultura. O imóvel outrora abandonado agora passou a acolher ateliês, luthiers e outros artistas, além de se tornar palco de eventos dedicados à cultura e lazer, requalificando, na prática, toda uma região que até então era vista pela comunidade apenas como um lugar degradado e perigoso. Antes de ser ocupado, o imóvel abandonado encontrava-se em acelerada deterioração. Sendo um imóvel de razoável proporção, sua deterioração impactava diretamente sobre a região onde está situado, causando notória degradação de todo o espaço urbano local.
Para o juiz, “são deveras conhecidas as externalidades negativas sobre o espaço urbano causadas pelo abandono e degradação de imóveis da cidade. Deveras representativo do que se está a falar é a célebre teoria das janelas quebradas (“broken windows theory”), tão conhecida pelos criminalistas: se uma janela de um imóvel não é prontamente consertada, parte da população se sente estimulada a quebrar outras, ocasionando uma desordem crescente no ambiente urbano. Embora tematizada entre os criminalistas a partir de uma leitura simbólica, a teoria das janelas quebradas é também uma abordagem de direito urbanístico, pois enfoca exatamente a influência do uso e conservação dos imóveis urbanos sobre todo o ambiente social e, por conseguinte, do bem-estar da comunidade (interesse primordial das ponderações urbanísticas): regiões degradadas e abandonadas tendem a contaminar todo o entorno, expandindo a degradação urbana, em prejuízo crescente ao bem-estar da população, inclusive da situada no entorno dos locais abandonados”.
Assim, segundo a Sentença, “o imóvel litigioso hoje tem a nítida função de bem cultural da cidade, e é assim reconhecido pela comunidade. A relevância do bem cultural é característica inerente ao próprio bem, que não carece da chancela de atos formais como o de tombamento ou registros (os quais têm caráter meramente declaratório, ou seja, apenas certificam a relevância preexistente do bem cultural)”. Portanto, ele conclui, “no caso concreto, é inequívoco que o imóvel assumiu a condição de bem cultural, o que atrai a exigência legal ora referida de se prover a sua proteção e preservação. O mesmo princípio ora enfocado é também consagrado no art. 312, VI, da Lei Orgânica do Distrito Federal, como instrumento da política urbana distrital”.
Em resumo, para a sentença, “é inequívoco que a posse exercitada pelos réus atende, em muito maior medida, ao interesse social e às diretrizes constitucionais e legais relativas à função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade, o que impede o acolhimento da pretensão autoral”.
Claro que a Dissertação, um trabalho acadêmico rigoroso e inédito, trabalha uma articulação teórico-política com um alcance epistemológico num patamar inédito e avançado. Basta ver o resumo da Dissertação:
Desde o início deste Século, Brasília vem experimentando o incremento de reiteradas ações contra a sua cena sociocultural noturna e boêmia vivida em bares, festas e espaços públicos. Verifica-se especialmente por parte da Administração a expedição de normas repressivas, restritivas ou proibitivas — afora as omissões —, executadas de forma arbitrária e autoritária, bem como a adoção de políticas públicas indiretamente (bastante) nocivas, notadamente as voltadas a um mercado imobiliário residencial que afasta as atividades notívagas culturais e comerciais para lugares cada vez mais distantes e inóspitos. As iniciativas do Estado, porém, são apenas um braço mais evidente de um comportamento que se retroalimenta junto a uma parcela hegemônica, conservadora e influente da sociedade e a agentes econômicos, principalmente os que se beneficiam do comércio imobiliário. A noite, compreendida — para além de mera temporalidade — como espaço construído social e culturalmente por seus boêmios, artistas, empresários e trabalhadores, coalhada da transgressão representada nas festas e da criatividade expressa na arte, sobretudo música, afigura-se palco de disputas e conflitos entre processos culturais de viés emancipatório e processos reguladores que reforçam a ideologia impositiva. O contexto do neoliberalismo, infletindo lei, cultura e subjetividade política na realidade, revela-se indispensável chave de compreensão do problema, na medida em que os eixos político-administrativo, econômico-financeiro e moralista tradicional extraídos da motivação das medidas hostis ao espaço-noite articulam-se dinamicamente entre os projetos moral e de mercado desse sistema normativo capitalista. Outrossim, a progressiva recrudescência desse cenário adverso nos últimos vinte e cinco anos no Distrito Federal conferiu-lhe uma visibilidade que despertou consciência coletiva e mobilização em atores interessados em conferir dimensão política à sua existência notívaga e suas respectivas manifestações socioculturais: a luta pelo direito à cultura, à cidade e ao trabalho vem-se afigurando não apenas como postura passivo-reativa a aguardar violações ou a pleitear o simples acesso a bens públicos e a bens culturais, mas como processo cultural popular, construtivo e criativo que traduz a prática de direitos humanos e aponta para uma utopia de liberdade lúdica e artística, de solidariedade e comunhão
O trabalho, de resto, se desenvolve pelo eixo teórico-político a que aludi, conduzido por um sofisticado sumário, compreendido entre uma introdução e considerações finais, que convida ao conhecimento de uma realidade em conta de desafiar novos conceitos provocados por um peculiar modo de construir narrativas apropriadoras da concepção de Brasília, cidade e espaço político que envolve relações humanas e suas formas de produção social.
CAPÍTULO 1. VIDA NOTURNA EM BRASÍLIA
1.1. A noite de Brasília como espaço: definição e recorte da pesquisa
1.1.1. Antes um recorte que uma definição
1.1.2. Festa
1.1.3. Noite como espaço
1.1.4. Boemia
1.2. Administração Pública e políticas nocivas à vida noturna em Brasília, de 1999 aos dias de hoje
1.2.1. Antes de 1999
1.2.2. Governo Roriz 1999-2006. Ações negativas (repressivas, restritivas, proibitivas). Moral e bons costumes. Segurança e ordem pública
1.2.3. Gestão Arruda/Paulo Octavio/Rosso 2007-2010. Choques de ordem. Lei do Silêncio
1.2.4. Governo Agnelo Queiroz 2010-2014. Desligam o som
1.2.5. Governo Rodrigo Rollemberg 2015-2018. Golpes de morte
1.2.6. Governo Ibaneis Rocha e a pandemia de Covid
1.2.7. Conformação urbanística do Distrito Federal: avanço do uso residencial sobre setores
mistos e criação de bairros residenciais
1.3. Uma proposta de classificação
1.3.1. Considerações iniciais
1.3.2. Quanto à ação
1.3.3. Quanto à motivação
1.3.4. Quanto ao agente
1.3.5. Considerações finais
CAPÍTULO 2. VIDA NOTURNA E PODER EM BRASÍLIA
2.1. Brasília e contexto cultural
2.2. Brasília: processo sócio-histórico
2.3. Crítica contemporânea ao neoliberalismo: abordagens neomarxista e foucaultiana
2.4. Neoliberalismo e moralidade tradicional
2.5. O Estado, autoritário
2.6. Aspectos econômico-financeiros. Destruição criativa e formação de consenso
2.7. Considerações finais
CAPÍTULO 3. LUTA, RESISTÊNCIA, INSURGÊNCIA
3.1. Direitos humanos como processo e luta. Visibilizar para concretizar.
3.2. Consciência coletiva. Disposição. Mobilização e rotinas de interação
3.3. Questionamentos e possibilidades
3.4. Das festas ocupação à ressignificação de espaços
O Autor assume que o seu estudo se insere “na concepção de direitos humanos como uma construção histórica implementada por meio de ações coletivas voltadas para a conquista da dignidade humana por intermédio da luta cotidiana a garantir e criar novos direitos”. Que a sua guia é demarcada “pela fortuna crítica de Joaquín Herrera Flores, na compreensão dos direitos humanos como produtos culturais, resultantes de processos de luta pela dignidade humana, num continuum de forma a propiciar e consolidar espaços de luta; e na de cultura como processo sócio-histórico, que cria significados e conforma identidades num espaço relacional sem perder sua capacidade de promover emancipação, como crítica e proposta de alternativa a relações dominantes”.
Mas confirma que seu marco teórico ancora-se na formulação de Roberto Lyra Filho, em sua concepção dialética do direito pautada no pluralismo jurídico. Daí que adota “a proposta não dogmática do Direito Achado na Rua, nos sentidos de legitimidade atribuídos ao direito a partir das práticas sociais, da rua, para a construção de uma rede urbana popular e para a própria criação do direito à cidade, em movimento, bem como no seu objetivo central de (i) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; (ii) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e (iii) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas”. Nessa disposição, vale-se de meus enunciados, juntamente com meus co-autores Alexandre Bernardino Costa e Antonio Escrivão Filho, “na medida em que se pretende ler festas como possibilidade emancipatória, a noite como espaço socialmente construído e os sujeitos notívagos como coletivos sociais articulados ou articuláveis. O movimento ainda subsidia este trabalho em suas incursões sobre a peculiaridade da formação sócio-histórica, política e urbanística de Brasília”.
São esses referenciais que vão lhe dar confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos. Nesse passo, anoto sem surpresa, a designação do empírico forjado pelo Movimento Quem Desligou o Som?, a partir de sua atuação tão nitidamente exibida pela caríssima Gabriela Tunes (“Por que perguntamos quem desligou o som?”. In: Cultura Alternativa. 1 mai. 2015. Disponível em: <https://culturaalternativa.com.br/por-que-perguntamos-quem- desligou-o-som-por-gabriela-tunes/>. Acesso em 03 setembro. 2022). Querida amiga Gabriela, ela própria personagem da cena cultural brasiliense, excelente flautista, além de ensaísta sutil e elegante, como se fosse uma João do Rio, a encantar a alma das quadras brasilienses, conforme já procurei mostrar aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/mascaras-no-varal-a-revolucao-e-preta-feminista-e-imparavel/).
Tudo muito bem articulado na discursividade própria e textual oferecida pela leitura da Dissertação e, também, na excelente exposição perante a Banca apoiada em sínteses esclarecedoras contidas nas lâminas do bem posto power point, tal como pode ser conferido na gravação disponível no Canal YouTube (www.odireitoachadonarua.blogspor.com) do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (https://www.youtube.com/watch?v=zMI3bNVfe18).
O que lhe permite concluir que “a noite, nas perspectivas avançadas neste trabalho, é mais que temporalidade: é, pois, espaço político no qual não apenas boêmios solitários afogam suas mágoas, mas onde sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua. A noite é objetivo, mas também é meio e processo. E é a Rua que se afigura, ontologicamente, como espaço de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização”.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55