Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Wagner Amorim Madoz. Sistema Punitivo e Direitos Fundamentais: Paradoxo das Penas Radicais. Tese de Doutorado em Direito. Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Brasília: UniCEUB, 2022, 365 f.
Voltei ao exame dessa densa Tese, para a sua sabatina final, na sessão de defesa, presidida pelo ilustre Orientador Professor Inocêncio Mártires Coelho e integrada pelos Professores Antonio Henrique Graciano Suxberger, Arnaldo Sampaio de Moares Godoy e Alexandre Araújo Costa.
Eu já participara do exame de qualificação e considero que as observações que fiz foram todas consideradas pelo Autor para a versão definitiva, com zêlo de atualização. No que me concerne, tal como aparece nas Considerações Finais, abertas com uma referência a artigo de conjuntura em Coluna que mantenho no Jornal Brasil Popular, publicado ainda neste mês de junho. Não obstante a característica de texto de opinião, o Autor abre suas conclusões, convalidando seu fundamento humanista dialético estribado na pré-inscrição cogente dos direitos humanos, base de todo direito fundamental.
Conforme está escrito: “Do mesmo que entendo que existe um direito fundamental a não morrer de fome, existe um direito fundamental a não morrer na cadeia, no cumprimento de uma sentença condenatória à pena radical ou absurda. Isso decorre da inconstitucionalidade que reconheço desses tipos de penas criminais que hipotecam a vida do condenado, uma vez que a Constituição Federal proíbe as penas de caráter perpétuo”.
A referência está na nota 706, com um acréscimo de sentido trazido pelo Autor: “Inspirado na lição do professor José Geraldo de Sousa Junior, “O direito de não passar fome”, publicado no Jornal Brasil Popular/DF em 9 de junho de 2022: “Eis aí uma consideração que aponta para o núcleo ético de satisfação da liberdade de não passar fome, direito fundamental exigível e justificador de qualquer ação que vise a realizá-lo, inclusive, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que segue lícita ainda quando compelida, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão. Como dissemos na abertura do livro, é irrenunciável o dever de ‘Exigir Direitos, [para] Alimentar a Vida’”.
Reconheço na referência a força inafastável da exigência de uma disposição humanista, inscrita na concepção filosófico-criminológica de Roberto Lyra Filho, tão presente na Tese, até porque é dela que vem a possibilidade de estabelecer-se critérios e indicadores do exame de condutas cuja orientação se dá numa clara de disputa de pontos de vista sobre o social, para fixar o que injuria a convivência em co-existência e o que no comum pode legitimamente constituir o social em sentido mais amplo e o comunitário em perspectiva concreta, até o limite do lícito e do ilícito e do tipificável como delito ou crime.
Lembrando o critério de Chambliss, adotado por Roberto Lyra Filho, conforme explicitarei adiante. O que desejo por em relevo aqui, seguindo a tomada de posição do Autor da Tese, é o não se deixar arrastar pela derrocada do humano, alienado de de sua historicidade e portanto de seu projeto de contínua humanização, seguindo Hegel, para quem o humano não é uma derivação de sua origem biológica, mas uma experiência na História, um permanente fazer-se humano, na trama de suas interrelações e agência de redenção.
Não nos serve de aviso o que está no Gênesis 4, 9-22, mesmo no paradigma do “olho por olho, dente por dente”?:
Genesis 4, 9-16: 9Então o Senhor perguntou a Caim: “Onde está seu irmão Abel?”. Respondeu ele: “Não sei; sou eu o responsável por meu irmão?”. 10Disse o Senhor: “O que foi que você fez? Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando. 11Agora amaldiçoado é você pela terra, que abriu a boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão. 12Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo”. 13Disse Caim ao Senhor: “Meu castigo é maior do que posso suportar. 14Hoje me expulsas desta terra, e terei que me esconder da tua face; serei um fugitivo errante pelo mundo, e qualquer que me encontrar me matará”. 15Mas o Senhor lhe respondeu: “Não será assim; se alguém matar Caim, sofrerá sete vezes a vingança”. E o Senhor colocou em Caim um sinal (estigma), para que ninguém que viesse a encontrá-lo o matasse. 16Então Caim afastou-se da presença do Senhor e foi viver na terra de Node, a leste do Éden…
Exilado do Éden, à leste, a marca não inibiu e não o travou Caim de formar e uma descendência. Caim e sua geração foram fundadores de cidades e forjadores dos ofícios e atributos dos que realizam projetos de sociedade:
Em 4, 9-17 temos que Caim fundou uma cidade, à qual deu o nome do seu filho Enoque… descendentes seus, 4, 9-20. Jabel foi o antepassado dos pastores nômades; 4, 9-21. Jubal foi o pai dos que habitam em tendas e têm gado… 4, 9-22. Tubalcaim, foi mestre de toda a obra de cobre e ferro.
Tenho que, ao delinquir, ainda que descolado de suas relações inter-subjetivas, desassistido da solidariedade que os coletivos sociais proporcionam, ainda que excluídos do alcance das conquistas dos movimentos que ativam no social o democrático e instituem direitos, o sentenciado, de qualquer modo punido, conserva uma reserva inalienável de cidadania, irredutível à incriminação, e que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Negociar com Facção Criminosa? In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008), no que o Autor, por sua vez, refere ao encarcerado como sujeito de direito por vida e dignidade.
A pesquisa aborda a relação entre o sistema punitivo e os direitos fundamentais, situando no centro da análise as penas criminais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, em contraposição à proposta de limitação das penas radicais. Busca observar as penas previstas ou aplicadas em condenações criminais que estão em conflito com os princípios que a ordem constitucional procura salvaguardar, através da punição, e que pode revelar um desprezo ao direito à vida (biológica e social) do condenado criminalmente.
O Sumário, deixando de lado os elementos pré-textuais e os relativos à metodologia e a introdução, organiza o conteúdo da Tese em três Partes.
Na Primeira Parte, os pressupostos teóricos – Fundamento da Punição Criminal, compreendendo: A Justificação da Punição Criminal; Prometeu Acorrentado; Punição e Religião – A Pena como Expiação; Punição em Platão ou a Virtude do Castigo; O Iluminismo Penal de Cesare Beccaria; A Fundamentação Moral do Castigo em Kant; A Dialética da Punição em Hegel; A Prevenção do Crime Segundo Jeremy Bentham; Feuerbach e a Coação Psicológica; O Sonho de von Liszt e a Prevenção de Crimes; A Punição na Teoria Sistêmica; Observações de Primeira e Segunda Ordem; O Funcionalismo Radical de Günther Jakobs; Racionalidade Penal Moderna; A Teoria Unificadora ou Dialética da Pena de Claus Roxin; Teoria Agnóstica da Pena.
Ainda na Primeira Parte, sob a rubrica Sociedade, Crime e Punição: Função das Penas, compreendendo: O anti-humanismo de Michel Foucault; O banimento do suplício; A prisão como pena; A arquitetura da punição; Os precursores da vigilância e controle na Inglaterra e França; Punição e Estrutura Social; O princípio da less elegibility; A evolução da prisão como pena criminal; Modos de confinamento; O nascimento da prisão sob a perspectiva de Cárcere e Fábrica; Pequena análise da formação histórica do Brasil; O nascimento da prisão no Brasil; O pensamento criminológico no Brasil; As punições antigas até as modernas prisões atuais; A Criminologia Dialética e a Criminologia Radical; A criminologia da Libertação; A sociologia do castigo e as punições na sociedade moderna; A sociologia das prisões e as sociedades dos cativos; Sociedade dos cativos do Brasil; O código dos condenados na sociedade dos cativos como folkways e mores; A importância da abordagem histórica da pena de prisão; A função da punição no Estado Democrático de Direito; Superando o maniqueísmo ideológico, positivismo e jusnaturalismo, na punição; O Humanismo Dialético; Conflito entre punição e direitos fundamentais e apelo ao Direito Natural; Política criminal e direitos fundamentais: Justiça como balcão de valores?; Opções trágicas da punição: maximizar a dor dos maus para garantir a felicidade dos bons; História das penas como história da irracionalidade e crueldade humanas?.
Sob a rubrica O Sistema Constitucional de Garantias Penais, explicita o Sumário, nessa Parte: O ponto cego das teorias das penas; Teoria da Pena no Código Penal- Teoria Mista ou Unificadora da Pena; A busca da pena na medida justa; Penas Radicais e Absurdas; Frustração quanto ao estudo das comunidades epistêmicas.
Na Segunda Parte – O Cativeiro em Números, o quadro cruento do Sistema Penal Brasileiro: Sistema Penitenciário Brasileiro: Penas e seu cumprimento; O efeito retardado do novo limite de execução de pena de reclusão; Dados até junho de 2022: a. População Carcerária Nacional; b. Regime de cumprimento; c. Déficit de vagas no sistema prisional; d. Divisão das penitenciárias segundo a destinação; e. A população carcerária segundo as penas; f. Quanto ao espaço físico; g. A cor da pele, raça e etnia; h. Quanto ao estado civil; i. Classificação quanto ao grau de instrução; j. Classificação da população carcerária pelo tipo penal; k. Encarcerados com doenças transmissíveis; l. A população carcerária pela faixa etária; m. Morrer na cadeia.
Na Terceira Parte, passando para o plano de aplicação: Tentativas de Contenção da Punitividade. Nessa Parte os enunciados: Propostas estudadas: alternativas ao grande encarceramento: a. O que fazer com os perversos?; b. O olhar das vítimas no espelho infiel; c. Estado de coisas inconstitucional – inconstitucionalidade e inconvencionalidade; d. Contagem em dobro das penas em ambiente degradante (Decisões da Corte IDEH e STJ sobre cumprimento de pena em ambiente degradante); e. Inconstitucionalidade das penas radicais e absurdas; f. Penas radicalíssimas?; g. Revogação da Súmula 715 do Supremo Tribunal Federal; h. Opção pela ressocialização como finalidade da pena; Nothing Works? – A cultura do linchamento. Como não ser cruel? Manifestos Anticarcerários; O novo panóptico: futuro da prisão?..
Seguem-se as Considerações Finais, Referências e Apêndices.
Valendo-me da indicação do próprio Autor, conforme ele expõe na Introdução, a pesquisa que resultou na Tese aborda a relação entre o sistema punitivo e os direitos fundamentais, situando no centro da análise as penas criminais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, em contraposição à proposta de limitação das penas radicais. Busca observar as penas previstas ou aplicadas em condenações criminais que estão em conflito com os princípios que a ordem constitucional procura salvaguardar, através da punição, e que pode revelar um desprezo ao direito à vida biológica e social do condenado criminalmente.
O aparente paradoxo das penas radicais pode se revelar ou se manifestar nas longas penas previstas, proposições legislativas, ou aplicadas, sentenças condenatórias, para além da vida biológica do condenado, além da utilização dos direitos humanos para impor mais punição e, assim, causar mais sofrimento.
A questão que se coloca é fundamentalmente saber se é possível, tendo em conta aqueles valores baseados em princípios basilares da ordem constitucional, impor penas de reclusão a condenados além de sua vida biológica.
Procura, ainda, refletir sobre a possível existência de barreira epistemológica para a construção do direito criminal na perspectiva dos fundamentos dos direitos humanos, adotando, no entanto, a atitude crítica – utilizando a hermenêutica da suspeita, conceito elaborado por Boaventura de Sousa Santos para designar as contradições da previsão e aplicação dos direitos humanos.
Para o Autor, “o resultado de todo o longo percurso histórico e doutrinário identificou enormes desafios que a sociedade brasileira enfrenta e terá que enfrentar, no que se refere à punição criminal e ao grande encarceramento que dela resulta, principalmente quando se tem em vista os fundamentos vinculantes que a Constituição Federal estabeleceu. Essa compreensão foi fruto da exaustiva análise dos dados do sistema criminal, do ambiente prisional, da população carcerária ou da sociedade dos cativos como a utilizava Sykes. Do confronto desses dados com os pressupostos teóricos que abordei, os quais serviram de bússola para navegar no rico processo histórico, de significações decorrentes de embates em torno da justificativa do castigo, tanto do porquê quanto do para que castigar, e o papel que a punição estatal, como modalidade de sanção criminal, ocupa na sociedade brasileira atual”.
O Autor, justifica ter verificado ao longo da construção de sua Tese “a existência de fascinantes períodos da humanidade, onde se buscou o exercício, ou pelo menos a afirmação desse discurso, de pleno exercício da inteligência, na luta contra um mundo de obscurantismo, seja religioso, como o medieval, seja pelas tiranias secularizadas. O triunfo sobre as perversidades da cultura – principalmente a intolerância institucionalizada e a repressão aos costumes -, parecia ter sido completa. A história e a rebelião dos fatos mostraram, entretanto, que aqueles sentimentos que embasavam a crueldade no trato dos seres humanos voltam, num movimento pendular, o que sugere que eles fazem parte da condição humana”.
Por outro lado, diz ele, “o Direito Penal e a Política Criminal repressora que ele veicula, como vimos, pode ser concebido como um instrumento para conter a bestialidade humana, da vingança popular, sob as mais diversas modalidades, por esse motivo ele, sob todos os protestos, parece ainda ser necessário, como controle social, sem o qual não teria a sociedade meios racionais de conter os massacres, as rebeliões de presos, os justiçamentos, os linchamentos, os espetáculos de horror e brutalidade, em nome de uma justiça primitiva, cujas imagens percorrem o mundo com a facilidade dos dispositivos digitais, mas também como forma de combater aqueles criminosos, perversos descobertos, que praticam crimes absurdos, com requintes de crueldade, como o torturador e assassino de uma ditadura militar, ou pedófilo e assassino que matou várias crianças, como analisamos”.
Estaremos diante de uma disposição ingênua, frágil e conformista em face das tensões, conflitos e impasses críticos que se armam no social? Regressamos a uma ancestralidade de terra sem males, edênico, numa ciranda comunitária, constituída pelo trabalho de todos e a satisfação plena das necessidades? Estamos intelectualmente imobilizados num pensamento utópico, retido numa continuidade ahistórica sem fim?
Há 50 anos da publicação da obra copernicana de Roberto Lyra Filho, A Criminologia Dialética, estamos eu próprio, com meus colegas professores Salo de Carvalho e José Carlos Moreira Silva Filho, preparando uma obra de celebração, já no prelo (Lumen Juris), com a contribuição notável de grandes pensadores, da Criminologia e da Teoria Crítica do Direito. O professor Inocêncio Coelho, ilustre Orientador, ofereceu um belo texto para a Coletânea: Roberto Lyra Filho e Miguel Reale: Duas Visões da Dialética Jurídica.
De minha parte, me incumbi também do Prefácio da Obra – Criminologia Dialética de Roberto Lyra Filho, 50 anos: Um Manifesto Crítico à Crítica Criminológica (Um Prefácio). Nesse texto, valho-me de referências da Tese de Wagner Maldoz, que dou já como aprovada, e o organizo, recuperando de Lyra Filho a exigência de autorreflexividade para exercitar um pensamento diligente, que se atualize.
Enquanto isso, na sua autorreflexividade, Roberto Lyra Filho, pelo fecho da síntese dialética que propôs para a sua Criminologia, continua a sua diligência cognitiva no mesmo impulso de autorreflexão. Sara da Nova Quadros Côrtes em um texto instigante – A ‘Dignidade Política do Direito’ e a ‘Dignidade Jurídica da Política’. No Caminho de Roberto Lyra Filho – coloca essa questão, a partir do próprio Roberto Lyra Filho:
Continua o pensamento de Roberto Lyra Filho a ser marginal? Está ainda mais na periferia, hoje, do que no seu tempo ou conseguiu penetração na comunidade jurídica? A força da sua crítica foi aproveitada de forma autêntica no pensamento jurídico brasileiro?
Para alguns, a força do pensamento de Lyra ficou represada no seu momento histórico, que foi superado, fato que ele mesmo anuncia no segundo trecho. Pergunto se o pensamento deste autor não foi afastado por alguns juristas sem ter nem mesmo sido estudado ou absorvido no processo dialético, em vista da violência que vivemos nos anos 90, especialmente, na construção do conhecimento, com o celebrado fim das utopias, o fim da história e instalação de um pensamento único.
Por outro lado, vimos o desenvolvimento do seu pensamento em todo o País, assistimos na década de 90 a reformulação do ensino jurídico seguindo as linhas do pensamento deste autor, rejeitando a matriz dogmática e técnica como eixo dos cursos, reinventando o perfil dos estudantes de direito, inserindo, como obrigatórias, que leva a reprodução ideológica da prática profissional no ensino do direito. Vimos ainda, nesta década, o surgimento de contradições dentro das instituições, como a magistratura com o movimento do direito alternativo e Juízes para a Democracia fruto da reflexão acerca do papel do Poder Judiciário na realização da justiça social.
Entendo que a força de seu pensamento não se encontra presa no seu momento histórico, pois ainda estamos vivendo as repercussões deste momento e desenvolvendo as contradições geradas por ele, especialmente, no que tange ao ensino do direito. Acredito que é preciso estudar mais este autor, reafirmando a sua atualidade utópica, demonstrando o quanto de utopia já se concretizou no processo histórico, utilizando a força do seu pensamento para qualificar o processo de libertação e quiçá, atualizando sua obra no que efetivamente tenha sido superado, não pelo ceticismo, mas pelo processo dialético, ‘segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem.
Essa autorreflexividade, originalmente dirigida pelo próprio Roberto Lyra Filho (“para atualizar-me, sem risco de desatualizar a atualização, ao fazê-la, seria preciso deter a minha elaboração”, mesmo movendo-se no cipoal das controvérsias político-epistemológicas, sendo e não sendo (aqui alusivo ao Prefácio que fez para o livro de Gylberto Freire Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo), se projeta também para o movimento que ele animou, com articulação de um coletivo de pensamento jurídico crítico, que ele denominou Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR.
Foi no arranque dessa articulação que se engendrou o Projeto O Direito Achado na Rua, denominação também de Roberto Lyra Filho. Na experiência dessa elaboração vale por em relevo O Seminário Internacional 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, ocasião para balanço e projeção de continuidade da própria experiência. Refletindo sobre as tradições do Coletivo O Direito Achado na Rua, mas também, debatendo e projetando seu futuro, sobressaiu de modo forte entre os participantes, a mesma ordem de inquietação: teria o Coletivo o Direito Achado na Rua sido represado em uma concepção teórico-conceitual e política temporalmente limitada? Ou haveria espaço para novas reflexões, proposições, perspectivas, e, portanto, possibilidades de contribuição para o enfrentamento de desafios presentes e futuros?
Essa ordem de indagação, que se inscreveu na convocatória do Seminário, apareceu em várias intervenções. Tomamos aqui, notadamente, entre tantas, as de Maurício Azevedo e de Sara da Nova Quadro Côrtes, porque de modo contundente se apresentam com a demanda direta de buscar o “achado”, em questões emergentes, em revisitações e em desafios que levem a travessias possíveis.
Ambos, por sua inserção originária e cogente na constituição de O Direito Achado na Rua, em sua prática política e em sua fortuna crítica, carregam a percepção amigável porque internos ao projeto, mas sem qualquer concessão, mantendo a atenção aguda, crítica, autorreflexiva para o desafiar. E em ambos, vivamente presentes, os elementos de atualização para indagar temas ainda não trabalhados que se estendem temporalmente para além dos recortes usuais, e que recuperam o acervo analítico inscrito no pensamento decolonial do qual extraem as aporias “às agências” do epistemicídio, do escravismo e do racismo.
Em Maurício, na sua apresentação durante o Seminário dos 30 anos, o chamamento, a partir de seu texto de apresentação – “Enegrecendo a teoria crítica do direito: Epistemicídio e as novas epistemologias jurídicas na diáspora” – é no sentido de “ocupar e abrir caminhos”: [que] o “pensamento jurídico negro desloca os espaços de saber e poder na teoria crítica do direito, tanto na afirmação de teóricos negros e negras em um ambiente masculino e branco, como na crítica racial e decolonial dos encobrimentos, silenciamentos e práticas de interdição de seus saberes e experiências. Ao apontar a necessidade de uma teoria que dê conta do direito e as relações raciais, as epistemologias jurídicas negras inserem-se no campo crítico do direito, aponta os limites e projeta o desafio de construção de uma teoria crítica negra que aponte horizontes emancipatórios a partir de saberes e práticas gestados na diáspora negra, pois como salienta Samuel Vida “Quem dorme com os olhos dos outros, não acorda a hora que quer”.
O contexto de afirmação das lutas negras, “o processo de implementação de políticas afirmativas na graduação, pós-graduação, concurso de docentes e carreiras jurídicas e a consolidação de uma epistemologia jurídica afrodiaspórica, permitem a ampliação de juristas negros e negras e a ascensão de outros olhares sobre o Direito. Oxalá que possamos romper com o epistemicídio e construir uma nova cultura jurídica onde o Direito seja encontrado na rua, nos terreiros, nos quilombos, nas favelas, periferias, malocas, guetos e nas encruzilhadas”.
Em Sara respondendo a uma interpelação por ela própria dirigida ao pensamento fundante de Roberto Lyra Filho. Refutando, o que cuidei de fazer também em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, contra alguns que viam datadas e esgotadas na conjuntura pós-constituinte as proposições de O Direito Achado na Rua e, portanto represadas no seu momento histórico, já superado, Sara mais desconsidera tais objeções, porque para ela, essas posições revelam críticos que sequer chegaram a estudar ou absorver “no processo dialético, em vista da violência que vivemos nos anos 90, especialmente, na construção do conhecimento, com o celebrado fim das utopias, o fim da história e instalação de um pensamento único”.
Mas em Sara, sobretudo, a disposição desafiadora vem embalada numa armadura que anuncia um combate político-epistemológico, uma vez que, afastando o conjunto raso de uma crítica exterior facilmente refutável, a de a força e antidialeticamente querer inserir O Direito Achado na Rua no nevoeiro metafísico, ela põe a descoberto o “Achado” da expressão, por dentro da epistemologia que nos junta, identificando-o como “o elo fraco” de O Direito Achado na Rua, sua concepção e sua prática.
É importante, conforme diz Sara “levantar agendas de pesquisa que possam perguntar sobre o sentido metodológico e político do elo “achado” do “Direito Achado na Rua”. Em texto publicado no volume 10, da Série O Direito Achado na Rua, – “Direito achado na Rua: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do Direito no Brasil?” – há menos eloquência discursiva que na performance oral na sessão do Seminário, mas não menos rigor propositivo: “No que nos cabe neste trabalho penso ser importante levantar agendas de pesquisa que possam perguntar sobre o sentido metodológico e político do elo “achado” do “Direito Achado na Rua”, não para, numa erudição estéril, criar questiúnculas metodológicas, mas sim para perguntar quem achou o que e onde? Esta questão alimenta um imaginário para dar vida longa a esta que, se configura, ainda hoje, como uma das mais potentes e permanentes escolas de pensamento crítico pois articula e orienta gerações na atuação da assessoria jurídica aos movimentos sociais. Em tempos de rupturas sociais e políticas profundas o questionamento sobre o “sujeito que acha” e qual o sentido do “achado” são tão importantes quanto o debate sobre o “direito” e a “rua” para alimentar uma vida longa para esta escola”.
Tanto mais quanto essa agenda, ainda que reorientada para a perspectiva mais ampla da emancipação pela mediação do jurídico e dos direitos humanos para pensar um projeto de sociedade, não descura, o plano originário dos impasses que se expressam em realidades extremamente marcadas por conflitos de uma sociedade desigual e hierárquica, pelo seu lastro colonial. Mesmo nesse âmbito, no qual a questão do processo de criminalização está posto, do que se cuida é, diz Lair Gomes de Oliveira, “o revisar o problemas apresentados e a verificação das hipóteses levantadas pelo pensamento lyriano” aplicado ao direito penal e à criminologia.
Tal como o próprio Lyra Filho ao fazê-lo, contudo, tendo em mira que “todo domínio que sacrifica os direitos dos indivíduos, classes e grupos é, em si, uma violência, inerente à estrutura social, uma espoliação ou opressão ilegítima, determinando o conflito, na medida em que as classes e grupos espoliados e oprimidos conscientizam a sua posição de inferioridade social e lutam, em defesa de seus direitos sacrificados, pressionando os dominadores. A dialética social do Direito começa na infraestrutura econômica”. Para ser apreendida, diz Marilena Chauí, “no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes [o que] permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Nesse aspecto, é bem sugestivo o estudo de Paula Pereira Gonçalves Alves, rastreando as narrativas brasileiras em torno da criminologia. O estudo de Paula Alves tem tanto mais interesse quanto ela procura “mapear discursos relacionados às criminologias da reação social e críticas, com o fim de refletir significados e eventuais problemáticas em termos dessa temática no Brasil”, por meio de “uma pesquisa empírica realizada por meio de entrevistas semidirecionadas, cujo recorte amostral para seleção dos interlocutores iniciais foi construído a partir da ‘Carta a um Jovem Criminólogo’, escrita por Roberto Lyra Filho em 1979”.
O curioso é que a Carta representa a virada de Roberto Lyra Filho em seguida à Criminologia Dialética, para desembaraçar-se da própria infradialetização que ele pressentiu pudesse estar em seu fecho, passando ela a representar, no debate que travou com as mais fortes expressões da criminologia crítica, aquelas mais radicais, de orientação marxista; e aquelas mais inscritas no pensamento liberal de defesa e reação social, mesmo que tenham trazido o aporte da crítica, de resto, por se tratar de uma carta aberta, que preservou em anonimato o interlocutor, se constituiu num programa avançado de abordagem dialética, ao tratar de teoria, práxis e táticas atuais.
A reserva de anonimato na publicação e na atitude de Roberto Lyra Filho enquanto vivo, compartilhada por seus colaboradores mais próximos, não impediu que o seu mais destacado destinatário – Álvaro Penna Pires – se identificasse ele próprio nessa qualidade. De fato, em encontro circunstancial em Brasília, no Ministério da Justiça, ao nos conhecermos, ele logo se apresentou como o jovem criminólogo interpelado por Lyra Filho.
Em seguida, ele o fez expressamente, em entrevista publicada na Revista de Estudos Empíricos em Direito:
Além disso, durante todo o meu mestrado mantive trocas epistolares com o Roberto Lyra Filho. Eu lhe enviei a minha tese de mestrado que ele adorou e também outros trabalhos de curso. Ele recebia, lia e mandava comentários. Uma dessas trocas foi até muito divertida e deu bastante “pano pra manga”, no sentido de ter dado todos os elementos para uma viva discussão intelectual entre nós sobre a criminologia crítica, sempre com esse pano de fundo de uma grande e sólida amizade, mas no plano intelectual, a troca de argumentos era feita sem concessão. O ponto de partida foi justamente um paper escrito para o seminário do Baratta (em 1978) com o título “La criminologie à la recherche de son objet: dualisme vs monisme critiques”. O Roberto não se conformou com esse trabalho e chegou a publicar uma longa carta que me escreveu (e que quis que ficasse completamente anônima, embora eu o tivesse autorizado a me nomear). A carta saiu com o título “Carta aberta a um jovem criminólogo”. Essa carta foi muito interessante e eu fiz também uma longa resposta, mas como ficou decidido em favor do anonimato, nem me lembro mais o porquê exatamente, a resposta nunca foi publicada. Claro, mais de 30 anos depois, não me lembro de grande coisa. Só me lembro que achei que ele não havia percebido bem a minha hipótese central naquele paper. Lembro-me também que fiz uma crítica à criminologia marxista alemã, excluindo o Baratta, e que tratei da “invenção do crime”, nos termos do Foucault em A Verdade e as Formas Jurídicas. O Roberto que era mais ligado à formação dialética hegeliana, me disse: “não Álvaro, está muito cedo para tirar essa conclusão!”. Me deu um esculacho histórico nessa carta, mas nada disso nunca abalou nossa amizade. Dois planos diferentes. E eu respondia e ele aceitava também a discussão. Aprendi muito com ele.
Com muito zêlo, no cuidado conceitual, aliás sob a supervisão de orientação de Gisálio Cerqueira Filho, com quem Roberto Lyra Filho manteve longa, intensa e rica correspondência, João C. Galvão Jr mergulhou profundamente no programa dialético que Lyra Filho propôs para a Criminologia, e produziu uma alentada dissertação – Lyra Filho, Meu Amigo: Diálogo com Roberto sobre Direito, Criminologia e Dialética. O título de certo modo uma paráfrase ao livro de Roberto Lyra Filho Karl meu Amigo, Diálogos com Marx sobre o Direito. Na Dissertação, o autor quer “demonstrar a importância dos conceitos de Direito, Crime, Dialética e conceitos afins em Roberto Lyra Filho a partir de uma Teoria Dialética do Direito e Teoria da Criminologia ou Teoria Dialética do Crime”. E o faz, movendo-se com diligência para não incidir em qualquer sorte de apriorismo, positivo ou metafísico, que não desborde do critério adotado por Lyra Filho, nesse tema, extraído de Chambliss, segundo o qual, diz Lyra “o valor da Criminologia Crítica é precisamente este: acabar com a mania de ‘definir o crime’ no prólogo dos tratados, uma forma idealista e burguesa de pensar. O conceito de crime, na medida em que trata dos conteúdos incriminados, passou para o interior da disciplina, como nota Chambliss. Não se parte mais de – ‘o crime é isso’ – para seguir perguntando: ‘por que ele ocorre?’. Parte-se do processo de normação, incriminação e desincriminação, isto é, da Sociologia do Direito”. E arremata: “O deslocamento não cria, como tu pensas (dirigindo-se diretamente ao jovem criminólogo), um impasse. O impasse está no idealismo, que precisa saber, primeiro o que é ‘bem’ e o que é ‘mal’, o que é ‘dever ser’ e o que é ‘ser’, destacados e isolados da totalidade e do movimento”. Em Galvão Jr, “nesse processo histórico dialético do Direito e do Crime, toda síntese refletiria de certo modo um verdadeiro e legítimo Direito, considerando-o um instante histórico de libertação”.
Ao contrário, ele oferece perspectivas para o alternativo, construindo um pensamento crítico da alternatividade, que não seja uma mera troca de sinais, para articular condições sociais e possibilidades teóricas que tragam consistência para os operadores do direito no discernir e aplicar seus fundamentos, como procurou mostrar Marcos José de Oliveira Lima Filho, em sua Dissertação de Mestrado Uma Investigação Acerca da Validade da Teoria Dialética do Direito a Partir da Verificação de sua Utilização pelos Advogados Populares.
Numa conjuntura de lawfare, com táticas jurídicas no contexto de guerras híbridas, penso que um tanto desse apelo ao midiático, reduzido ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo, explica o esgarçamento institucional em curso no país. Esse desvio esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção – erigida em metonímia da categoria criminalidade – reunidas no PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o Número: 1017/16 24/08/2016-16).
Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto (conferir o inteiro teor do depoimento conforme as notas taquigráficas da sessão, arquivadas no Departamento de Taquigrafia e acessíveis pela WEB, comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo é uma leitura de um sentido civilizatório., cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva, revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão. Em texto precioso, ele traz para nossa atenção uma leitura do então Ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente: “Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão”.
Em Roberto Lyra Filho, segundo ele mesmo, como está na Carta Aberta, se encarna a dupla missão dos intelectuais: “a inflexibilidade dos princípios e a flexibilidade conjuntural das táticas”, pois, “se afrouxam os princípios a caverna platônica os engole; se enrijecem as táticas, ajudam sem querer o adversário, pelo triunfalismo arrogante com que escondem a própria impotência”, sobretudo quando, em realidades como atualmente no Brasil, “a alienação nunca é morna; é escaldante e dramática. A realidade queima, as repressões são brutais; a miséria popular, extrema; a demissão, um escândalo. É preciso a inconsciência absoluta ou a completa falta de caráter para dormir no ‘berço esplêndido’”. Por isso ele chama a atenção para “teorias despistadoras, o distinguo solerte dos intelectuais desfibrados e autocomplacentes, as erudições de fachada”, e adverte para “as concessões [que] adquirem boa consciência, porque se apresentam como abordagem matizada, complexa, cheia de manhosas ‘divergências’, ante a forma reta do pensar, [para lembrar] A Curva da Estrada, a magistral obra de Ferreira de Castro que lhes descreveu a origem e o desfecho”.
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).