por José Geraldo de Sousa Junior – Jornal Brasil Popular/DF
O título alude a uma frase-conceito do Marechal Rondon (Candido Mariano da Silva Rondon), personagem fascinante da História do Brasil. Militar, cientista, estrategista, sertanista, pacificador, o Marechal Rondon percorreu milhares de quilômetros no Centro-Oeste e Norte do Brasil na virada do século 19-20.
Não por acaso, a emocionante admiração que lhe devotava Darcy Ribeiro. Na UnB, no Memorial Darcy Ribeiro, podemos visualizar a máscara mortuária, moldada pelo próprio Darcy, para perenizar a face de seu indigenista inspirador.
Com efeito, defensor dos índios e da propriedade sobre suas terras, ele ensinava aos seus soldados e colegas oficiais que eles deveriam se considerar os invasores, durante a implementação de estradas e linhas telegráficas, e que os índios tinham razão em defender suas famílias:“Sejamos fortes contra nosso sentimento de vingança e tenhamos abnegação bastante para resistir à tentação do orgulho para sacrificar certos preconceitos e melindres inerentes ao espírito militar”.
Que falta faz um Rondon, mas ainda bem que se pôde ouvir, nesses dias, 14/4/22, as reivindicações de mais de 8 mil lideranças de 200 povos indígenas, de todas as regiões do Brasil reunidos no 18º Acampamento Terra Livre – ATL, respondendo ao chamado de sua mais elevada instância de representação nacional – a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e de suas organizações regionais: ‘Viemos a Brasília para colorir a capital federal de urucum e jenipapo, com as múltiplas cores de nossos cocares e para demonstrar ao país e ao mundo que, assim como aprendemos com nossos ancestrais, seguimos e seguiremos juntos, resistindo contra os distintos projetos de extermínio que as elites, donos ou representantes do capital e seus sucessivos governantes e aliados no Poder Legislativo têm articulado contra nós ao longo desses 522 anos” (ver o texto completo em https://bit.ly/ATLIndígenasUnidos”.
Na formação econômico-social brasileira, houve de fato um tempo em que as forças armadas contribuíram para forjar a identidade nacional e se afirmarem como Instituição. Há nomes com registro obrigatório.
Benjamin Constant, adepto do positivismo, em suas vertentes filosófica e religiosa difundiu essas ideias entre a jovem oficialidade do Exército brasileiro, ele que foi um dos principais articuladores do levante republicano de 1889, tendo sido nomeado Ministro da Guerra e, depois, Ministro da Instrução Pública no governo provisório. Na última função, promoveu uma importante reforma curricular.
Amigo de Rondon e de Constant, Euclides da Cunha nos legou uma obra fundante do pensamento e da cultura nacionais, entre elas Os Sertões, uma daquelas dez obras segundo Antonio Candido, necessárias para entender o Brasil. É em Os Sertões que Euclides vai nos apresentar o Marechal Bittencourt, Ministro da Guerra, que fechou a campanha de Canudos, após o fracasso de artilheiros, infantes e cavalarianos, alguns treinados na Guerra do Paraguai, ele que era da intendência, aliás, ainda hoje o seu patrono.
Cito contrafeito o Marechal Bittencourt, pois a História mostra ter sido ele responsável pela morte de centenas de prisioneiros de guerra, entre homens, mulheres e crianças, inclusive pessoas que haviam se rendido com bandeira branca e que haviam recebido promessas de proteção em nome da República, degolados, na forma da chamada “gravata vermelha”.
Mas o faço para lembrar que no Brasil é ao menos curioso o comissionamento de marechais. Há até a “lenda”, de que a abolição dessa comissão – sabendo-se que marechais não são postos de carreira, mas comissionamentos em teatro de operações – Kutuzóv, depois das Batalhas de Borodinoe de Maloyaroslávets, com Napoleão escorraçado do solo russo; Montgomery e Patton, no teatro europeu das operações aliadas na 2ª Guerra; Rommel, na África, MacArthur, na Coréia – se deveu ao pedido de uma garoto russo que colecionava biografias de marechais e nos anos 1980, para incluir brasileiros no seu catálogo, pediu ao Ministério da Guerra, gerando grande constrangimento, e logo a extinção funcional da comissão, o rol dos nossos marechais, “seus feitos, batalhas que haviam liderado, os depoimentos de incontestes reconhecimentos internacionais…”.
Uma época, mesmo para um pacifista, em que, para aludir ao panfleto de Victor Hugo – Napoleónle Petit – o ethos ainda não se apequenara. Em todas as dimensões, até para incluir nesse elenco, Luis Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança e Miguel Costa e a marcha da Coluna Prestes (ou Coluna Miguel Costa-Prestes), como expressão de um movimento político-militar brasileiro ligado ao tenentismo (1924-1927), para afirmar reivindicações modernizadoras como a exigência do voto secreto, a defesa do ensino público e a obrigatoriedade do ensino secundário para toda a população, além de acabar com a miséria e a injustiça social no Brasil.
Nesse horizonte de grandeza, é que se podia convir com o sentimento de Castro Alves, o poeta precursor dos direitos humanos em nosso País, que em “Quem Dá aos Pobres, Empresta a Deus”, poema dedicado ao Gabinete Portuguez de Leitura, por ocasião de oferecer o produto de um benefício às famílias dos soldados mortos na guerra, proclama uma singular fraternidade:
Duas grandezas neste instante cruzam-se!
Duas realezas hoje aqui se abraçam!…
Uma — é um livro laureado em luzes…
Outra — uma espada, onde os lauréis se enlaçam.
Nem cora o livro de ombrear co’o sabre…
Nem cora o sabre de chamá-lo irmão…
Quando em loureiros se biparte o gládio
Do vasto pampa no funéreo chão.
Quantas vezes não admirei essa estrofe feita consigna das obras da Editora Biblioteca do Exército, trazidas por meu pai que era sócio, ele próprio daquela geração de formação do Ministério da Aeronáutica, que me apresentou a tantas obras dessa estante, além de Glenn Miller, que sempre ouvia acantonado em sua formação para a recém-criada força, nos anos 1940, nos Estados Unidos.
Por isso não surpreendia que Pandiá Calógeras, engenheiro, geólogo e político, civil, tivesse sido ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, Ministro da Fazenda, chefiado a delegação brasileira à Conferência de Paz de Versalhes, ao término da Primeira Guerra Mundial, para ser, ao retornar ao Brasil, nomeado ministro da Guerra pelo presidente Epitácio Pessoa. Foi o primeiro e único civil a exercer o cargo de ministro da Guerra na história republicana brasileira, período em que foi criada a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército Brasileiro.
Agora, o que vê é o varejar na burocracia e no orçamento, com voracidade inaudita, até chegar à descabida aquisição de comprimidos de viagra, mas não só, também (https://revistaforum.com.br/politica/2022/4/14/defesa-licitou-r-37-mil-em-bisnagas-de-gel-lubrificante-intimo-112994.html), medicamentos para disfunção erétil, calvície e botox, além de próteses penianas infláveis de última geração e bisnagas de gel lubrificante íntimo, segundo informações encontradas agora no Portal da Transparência.
Algo que causa ainda mais repulsa quando isso se segue ao veto presidencial à distribuição de absorventes a estudantes e pessoas pobres, conforme Agência Senado, 07/10/2021 10h4 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/07/bolsonaro-veta-distribuicao-de-absorventes-a-estudantes-e-mulheres-pobres.
Me dou conta do desalento que se abateu sobre Victor Hugo, e não é outra a percepção da pequenez, até entre os pares, ao menos aqueles que se inspiram em Rondon. Conforme anota a Carta Capital (https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/eu-nao-posso-usar-o-meu-viagra-po-questiona-mourao/?utm_source=terra_capa&utm_medium=referral), é lapidar (de lápide) a frase ao rés do chão, questionadora do general vice-presidente, na onda desdemocratizante, desconstituinte e desinstitucionalizadora em curso no País: ‘Eu não posso usar o meu Viagra, pô?’
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)